Justiça do Trabalho

Competência para (des)autorizar o trabalho infantil

Autor

  • José Roberto Dantas Oliva

    é juiz Diretor do Fórum Trabalhista e Titular da 1ª Vara do Trabalho de Presidente Prudente (SP TRT-15) mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP membro da Comissão de Erradicação do Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho (CSJT-TST) e do comitê gestor do Programa de Combate ao Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho (CSJT-TST).

16 de outubro de 2012, 14h21

Enfim, o que pode fazer um homem válido e na força da idade, não será equitativo exigi-lo duma mulher ou duma criança. Especialmente a infância, — e isto deve ser estritamente observado — não deve entrar na oficina senão depois que a idade tenha desenvolvido nela as forças físicas, intelectuais e morais; do contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á murchar com um trabalho demasiado, precoce, e dar-se-á cabo da sua educação.

O alerta não foi feito ontem. Data do início da última década do século XIX. Uma súplica para o mundo, do Papa Leão XIII, que consta da Encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891. Em outubro de 2012, estamos ainda discutindo os malefícios do trabalho infantil, mas precisamos acreditar que logo ele será apenas fato histórico, como asseverou o ativista indiano Kailash Satyarth, indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2006, na conferência de abertura do Seminário “Trabalho Infantil, Aprendizagem e Justiça do Trabalho”, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) e pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), de 9 a 11 de outubro de 2012, no Plenário do TST em Brasília-DF, que contou com cerca de 1.600 inscritos. Trabalhemos incansavelmente para isto.(*)

O evento, do qual tive a honra de participar como painelista, foi definido pela ministra do Estado da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, como acontecimento preparatório importante para a 3ª Conferência Mundial sobre trabalho infantil a ser realizada no Brasil em outubro de 2013.

O fato é que, em pleno século XXI, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2011, do IBGE, recentemente divulgada, dá conta que no Brasil ainda existem cerca de 3,7 milhões de crianças e adolescentes com idade compreendida entre 5 e 17 anos trabalhando, muitos em condições análogas às de escravos.

No mundo, segundo dados da OIT, são 215 milhões de explorados na mesma faixa etária.

São pessoas em peculiar condição de formação e desenvolvimento que têm seus direitos humanos elementares violados. Há mobilização planetária para tentar curar essa moléstia social, mas as dificuldades são enormes, pois tal qual vírus que se propaga com rapidez, mitos de que o trabalho precoce é bom recrudescem e são extremamente contagiosos, infectando incautos que são estimulados por mal-intencionados. Para que não virem epidemia, é necessário que permaneçamos em estado de vigília.

E a conscientização da sociedade, por meio de eventos como o que foi promovido pelo TST/CSJT, é remédio importante para o combate eficaz desse mal.

Em 2006, o Brasil assumiu, perante a Organização Internacional do Trabalho, o ambicioso compromisso de, até 2015, erradicar as piores formas de trabalho infantil e, até 2020, todas as formas.

O Judiciário brasileiro tem um papel importante, ao lado de outras instituições e organismos públicos e privados, a cumprir para a consecução dos objetivos traçados. O CSJT e o TST, ao instituírem — por meio de seu presidente, ministro João Oreste Dalazen — uma Comissão Nacional permanente de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalho Decente do Adolescente, hoje presidida pelo ministro Lélio Bentes Corrêa, que dedicou sua vida ao tema, engajam-se e à Justiça do Trabalho, definitivamente, nesta luta que é e deve ser de todos.

O propósito, neste trabalho, é discorrer sobre a competência para autorização — na verdade, mais para desautorização! — de trabalho infanto-juvenil: se do juiz da Infância e da Juventude, como estabelecido na própria legislação trabalhista, ou do juiz do Trabalho, como parece ser certo, notadamente após o advento da EC 45/2004, que ampliou consideravelmente a competência da Justiça do Trabalho para torná-la aquilo que sua própria denominação anuncia: uma Justiça de todos os trabalhadores, e não apenas de empregados (ou desempregados, como é mais comum, considerando o momento em que normalmente é procurada).

Antes de tratar da competência, porém, necessário assentar, desde logo, algumas premissas que considero fundamentais, a fim que não haja incompreensão do que será dito:

1)                Nenhuma autorização judicial de trabalho pode ser dada para quem ainda não completou 16 anos de idade, pois há vedação — constitucional e infraconstitucional — que resulta em absoluta impossibilidade jurídica do pedido;

2)                Excepcionalmente e com garantias de proteção integral e prioritária do artista infanto-juvenil, é possível a autorização individual de trabalho inferior à idade mínima, em razão do que prevê o artigo 8º da Convenção 138 da OIT (de modo absolutamente regrado, o que, aqui, não será debatido, dada a estreiteza do tema proposto);

3)                Nenhuma autorização judicial pode ser dada para trabalho em ruas, praças e logradouros, ou quando o trabalho a ser desenvolvido for noturno, prejudicial à moralidade, insalubre, perigoso ou penoso, para quem ainda não completou 18 anos de idade, em razão de proibição — constitucional e/ou infraconstitucional —, o que configuraria, também, impossibilidade jurídica do pedido;

4)                Se for aprendizagem verdadeira, não há necessidade de autorização judicial para exercê-la a partir dos catorze anos; se o trabalho não envolver riscos e não for noturno, prejudicial à moralidade, insalubre, perigoso ou penoso, também não há necessidade de autorização judicial para quem já completou 16 anos de idade. Assim, seria carecedor da ação aquele que ingressasse em juízo para pleitear autorização em quaisquer dessas situações, porquanto não teria interesse processual (fundado no binômio necessidade/utilidade do provimento), uma vez que a Constituição e a lei já o permitem.

Diante disto, a discussão acerca da competência perderia então sua relevância, ou se cingiria à hipótese de autorização judicial para trabalho infanto-juvenil artístico? A resposta, evidentemente, é negativa. Ainda que haja diminuição dos pedidos quando aumentar a conscientização dos malefícios do trabalho precoce e a família, ou na sua falha a sociedade e o Estado, passarem a cumprir efetivamente seu dever constitucional de proteção prioritária e integral de crianças e adolescentes (também agora de jovens, a partir da EC 65/2010), até para extinguir qualquer feito sem resolver o mérito — por impossibilidade jurídica ou falta de interesse processual — ou mesmo negar a autorização solicitada, há que se decidir qual seria o juiz competente, uma vez que os pedidos continuam a ser formulados em Juízo.

Aliás, dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego, apontam que, entre 2005 e 2010, 33.173 autorizações judiciais para trabalho em idade inferior à legalmente permitida teriam sido concedidas no país, sendo o Estado de São Paulo o campeão, com nada menos que 11.295 permissões. Ainda que hoje já se saiba que tais números foram inflados por empregadores inescrupulosos que declaravam falsamente a existência de alvarás na RAIS para que a contratação formal irregular de crianças e adolescentes não fosse detectada, os dados, de qualquer modo, continuam alarmantes.

Hoje, a Secretaria de Inspeção do Trabalho anuncia que faz um trabalho de varredura das empresas que declaram a existência de alvarás, autuando os infratores que informam incorretamente a RAIS. Aliado a isto, trabalho de conscientização, sensibilização e de repressão, encetado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e outras instituições que integram a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, propiciou redução significativa do número declarado de autorizações judiciais.

Em 2010 eram 7.421 e em 2011, 3.134 autorizações judiciais para crianças e adolescentes de 10 a 15 anos trabalharem, uma queda de 58% ou 4.287 permissões a menos que no ano anterior.

De qualquer modo, não se concebe a ideia de uma única autorização que seja fora dos estreitos limites mencionados anteriormente. O que dizer de mais de 3 mil ainda existentes?

Neste passo, uma nova questão precisa ser enfrentada.

Pedidos dessa espécie constituem o que se denomina jurisdição voluntária, que, para parte da doutrina tradicional não seria propriamente atividade jurisdicional, mas mera administração pública de interesses — ou direitos — privados.

Perfilho, entretanto, o entendimento de que, como estabelece o próprio Código de Processo Civil já no seu artigo 1º, a cognominada jurisdição voluntária, ao lado da contenciosa, constitui sim, parcela de jurisdição, conquanto os efeitos de uma e de outra não sejam exatamente os mesmos.

A partir desta concepção, entendo que, desde o advento da Emenda Constitucional 45/2004, que ampliou substancialmente as matérias que estão afetas à apreciação da Justiça do Trabalho, não é mais do Juiz da Infância e da Juventude a competência para analisar pedidos de autorização judicial para trabalho infanto-juvenil artístico ou mesmo daqueles que, segundo a CLT, poderiam ser realizados em ruas, praças e outros logradouros por adolescentes com mais de 14 anos de idade.

Estes, como já vimos, não podem mais existir. Note-se que, primeiro, a CLT, quando os autoriza, condiciona a permissão judicial a que a ocupação seja indispensável à própria subsistência do adolescente ou à de seus pais, avós ou irmãos. Ora, só isto subverte, totalmente, o princípio da proteção integral. A família, a sociedade e o Estado é que devem proporcionar proteção prioritária e integral a crianças e adolescentes, e não impingir-lhes dever de sustento, inclusive de familiares. Outra exigência: do exercício da atividade não poderá advir prejuízo à formação moral. Como, se a rua é palco de arregimentação até mesmo para o tráfico de drogas?

Deste modo, a busca do reconhecimento de competência, como já dito — e isso implica trabalho sério de debates e discussão interna aprofundada — é mais para desautorizar do que para autorizar. Os limites, aliás, não são estabelecidos pelo Juiz, pois este jura, ao tomar posse, cumprir a Constituição Federal e as leis (as últimas, claro, desde que não colidam com princípios constitucionais, pois, aí, será lícito afastá-las).

Desde 2005, quando defendi minha dissertação de mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sustento referida competência. Apresentei tese, em maio de 2006, no Congresso Nacional de Magistrados do Trabalho, promovido pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), em Maceió-AL, que foi então aprovada. Hoje, esta é uma bandeira também da Anamatra.

Mais de seis anos depois, tendo de enfrentar ao longo do caminho olhares de assombro e desaprovação, sinto-me hoje em posição de relativo conforto, apesar da responsabilidade que me foi confiada. A estrada, antes esburacada, já está pavimentada. O asfalto é da mais alta qualidade. Já na abertura do Seminário, quando Sua Excelência, ministro João Oreste Dalazen, deixou claro, como já o fizera em ocasiões anteriores, que entende ser da Justiça do Trabalho a competência, vibrei e pensei: diante do peso desta manifestação, está facilitada a minha defesa.

Também o procurador-geral do Trabalho, Luís Antonio Camargo de Melo, dizendo não entender por que, em matéria de autorizações judiciais, magistrados da Justiça do Trabalho abrem mão de sua competência, concitou: “Não podemos abrir mão de competência ou atribuição!”

Sucederam-se no mesmo Seminário manifestações, no mesmo sentido, dos Drs. Sandra Regina Cavalcante e Rafael Dias Marques.

Diante da autoridade de tais pronunciamentos, resta-me apresentar, como pequeno contributo para reflexão de todos e na tentativa de corroborar tão lúcidas e abalizadas posições, alguns argumentos complementares, que embasam cada vez mais meu entendimento de que a competência é trabalhista.

Não se olvidou ou olvida que a CLT atribui ao “Juiz de Menores” referida competência. Nem que o artigo 149 do ECA, quando trata de trabalho infantil artístico, embora se refira apenas a “autoridade judiciária” competente, sem especificá-la, estipula, no artigo 146, que “a autoridade a que se refere esta Lei é o Juiz da Infância e da Juventude, ou o juiz que exerce essa função, na forma da lei de organização judiciária local”.

Entretanto, mesmo antes de ingressar na análise constitucional do tema, importante lembrar que a Lei Complementar 75, de 20.05.1993, ao tratar no artigo 83 da competência do Ministério Público do Trabalho, estabelece (grifei):
“Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho:
[…]
III — promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos;
[…]
V — propor as ações necessárias à defesa dos direitos e interesses dos menores, incapazes e índios, decorrentes das relações de trabalho”

Note-se, portanto, que desde 1993, é possível afirmar, a partir da competência estabelecida ao Ministério Público do Trabalho por Lei Complementar (hierarquia superior à de leis ordinárias, como a CLT e o ECA), tanto no plano metaindividual como individual, quaisquer questões relacionadas ao trabalho envolvendo até mesmo crianças ou adolescentes são de competência da Justiça do Trabalho, tendo sido revogadas, ainda que tacitamente, disposições contrárias.

De qualquer modo, o artigo 114, I, da Constituição Federal, agora é de clareza solar: tratando-se de relações de trabalho (lato e não mais stricto sensu), compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações que delas se originarem. A expressão relação de trabalho deve ser entendida como continente, do qual a relação de emprego é apenas conteúdo, ou seja, gênero que comporta múltiplas espécies, sendo a relação empregatícia só uma delas.

Nada excepcionando a Carta, com ela também colidem as regras infraconstitucionais que outorgam ao juiz da Infância e da Juventude competência para permissões de trabalho infanto-juvenil, inclusive o artístico. E vários são os motivos justificadores da referida competência.

Em primeiro lugar, estando as consequências do trabalho afetas à Justiça do Trabalho, não há o que justifique que a autorização que o precede possa ser dada por juiz que, ulteriormente, será incompetente para analisar tais efeitos.

A questão é jurídica, de lógica, envolve a necessidade de unidade de convicção e interpretação sistemática. Antes da modificação do artigo 114 da Constituição Federal, havia autêntica pulverização de competência em diversas matérias envolvendo inclusive trabalho infanto-juvenil. Hoje não mais. Tudo se concentra na Justiça do Trabalho. Vejamos:

1.                   Se antes, em razão de uma autorização judicial, se formasse apenas uma relação de trabalho e não de emprego, a competência seria da Justiça Comum Estadual ou do Distrito Federal para resolver quaisquer litígios dela decorrentes; hoje, não mais, pois, ainda que não haja ou se pleiteie reconhecimento de vínculo empregatício, e mesmo que tenha de recorrer ao Código Civil, é o juiz do trabalho quem solucionará todas as questões que envolverem trabalho humano individualmente prestado;

2.                   Caso a criança ou adolescente, no exercício de trabalho autorizado judicialmente, sofresse eventual dano — material ou moral —, se derivado de relação que não fosse empregatícia, a competência seria da Justiça comum estadual e do Distrito Federal; havia, não faz muito tempo, questionamentos até sobre se seria da Justiça do Trabalho quando houvesse relação de emprego. Hoje, a teor do artigo 114, VI da Constituição Federal, não há dúvida que, em ambas as situações, será competente apenas a Justiça do Trabalho;

3.                   O contratante de pessoa em peculiar condição de desenvolvimento, criança ou adolescente, está sujeito à fiscalização e sanções administrativas por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, conforme previsão contida nos artigos 434 e 438 da CLT; antes, qualquer insurgência a respeito teria que ocorrer na Justiça Federal. Agora, se houver penalidade administrativa imposta por órgãos de fiscalização das relações de trabalho e o contratante quiser discuti-la em Juízo, terá também de fazê-lo perante a Justiça do Trabalho, conforme artigo 114, VII, da CF/88;

4.                   Nos termos do inciso VIII do mesmo artigo 114 da CF, a Justiça do Trabalho é competente também para a execução de ofício das contribuições previdenciárias decorrentes das sentenças que proferir, mesmo em relações de trabalho sem vínculo empregatício, quando, antes, a tarefa era da Justiça Federal;

5.                   Na hipótese de sofrer a criança ou adolescente acidente no trabalho, trazendo-lhe este consequências danosas, tanto materiais como morais: se antes a competência era da Justiça Estadual e do Distrito Federal, hoje, inequivocamente é da Justiça do Trabalho, conforme pacificado, aliás, pela Súmula Vinculante 22 do STF.

Ora, se em quaisquer destas hipóteses e até mesmo em outras não divisadas, será o juiz do Trabalho o competente para instruir e julgar eventual ação ajuizada, não há explicação plausível para que as autorizações de trabalho que originaram tais efeitos tenham sido dadas por quem não poderá apreciá-los, não sendo razoável manter-se a competência do Juiz da Infância e da Juventude, conforme lhe atribuem textos infraconstitucionais.

Há quem assevere também que, em se tratando de jurisdição voluntária, tradicionalmente tida como administração pública de interesses (ou direitos) privados, não haveria propriamente competência a ser aferida, mas simples atribuição, que poderia ser perfeitamente do juiz da Infância e da Juventude, conforme prevê a legislação ordinária.

Pois bem! O legislador pátrio tratou a jurisdição civil como gênero que comporta duas espécies: contenciosa e voluntária. E ao analisar, como no caso de autorização para trabalho infanto-juvenil, qual solução se lhe afigura a mais justa ou menos prejudicial, estará o juiz sim, a meu ver, exercendo parcela da jurisdição.

Assim, apesar do respeito devotado à corrente contrária, entendo, faço questão de reiterar, que estamos, em hipóteses tais, diante de autêntica jurisdição, e que esta é do juiz do Trabalho.

Aliás, tal convicção foi externada, recentemente, pelo Conselho Nacional de Justiça e também pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Em pedidos de providências formulados pelo Ministério Público do Trabalho contra decisões judiciais e pareceres de Promotores de Justiça que resultaram nas milhares de autorizações já mencionadas para trabalho em idade inferior à mínima constitucionalmente permitida, ambos os Conselhos entenderam que a matéria não era administrativa, mas jurisdicional, não lhes cabendo, por isto, interferir.

De qualquer modo, reconhecendo a relevância da questão, e aderindo à manifestação da conselheira Morgana Richa, o conselheiro Jorge Hélio Chaves de Oliveira, Relator do voto condutor da v. decisão no CNJ, negou provimento ao recurso administrativo interposto contra sua decisão monocrática em que não conhecia do pedido de providências, mas recomendou aos Tribunais de Justiça que adotem medidas que visem a adequação das diretrizes pertinentes às atuações conjuntas com o Ministério Público do Trabalho, objetivando combater o trabalho infantil.

Já o CNMP, acatando à unanimidade o voto da conselheira Sandra Lia Simón, deu procedência parcial ao Pedido de Providências, para expedir Resolução, que contempla a obrigatoriedade de o membro do Ministério Público que se manifestar favoravelmente ao trabalho de crianças e adolescentes com menos de 16 anos, encaminhar, por meio eletrônico, cópia do parecer à Comissão para Aperfeiçoamento da Atuação do Ministério Público na área da infância e juventude do CNMP.

Por entender que a matéria é jurisdicional, preocuparam-me, confesso, os pedidos de providências formulados, por neles vislumbrar precedentes perigosos para a própria sociedade e para o Estado Democrático de Direito, pois não se concebe interferência administrativa em atuação jurisdicional, que só pode ser combatida pela via do recurso às instâncias superiores.

Reconheço, sem dúvida, que o móvel dos expedientes utilizados foi nobre. Embora os fins não justifiquem os meios, porém, os resultados, inegavelmente, foram altamente satisfatórios, especialmente para a causa da abolição do trabalho infantil. Os dois Conselhos trataram o tema como matéria jurisdicional, nele não se imiscuindo diretamente, mas acabaram por adotar medidas de conscientização que, não tenho dúvida, contribuíram com a redução das autorizações já anunciada.

Acerca da competência, os temas processuais não empolgam ou sensibilizam tanto quanto questões materiais. Por vezes geram dúvidas como a de que se não seria melhor atuar de forma complementar?

Bom lembrar que estamos diante de competência absoluta, e qualquer decisão proferida por juiz materialmente incompetente, para autorizar ou negar trabalho, será nula de pleno direito. Essa a razão pela qual se torna necessário definir, de vez, de quem é a competência.

Por questão de honestidade intelectual, necessário reconhecer que o C. Superior Tribunal de Justiça tem decidido que a competência é da Justiça comum. A última decisão a respeito foi proferida no final de agosto passado. Necessária, portanto, defesa jurídica intransigente com o fito de mudar a jurisprudência daquela Corte. E isto, embora de forma vagarosa, vem acontecendo.

Já houve cancelamento até de súmulas e aguarda-se, para breve, o de outras, que inserem, no âmbito da justiça comum, matérias que sabidamente são da Justiça do Trabalho, como competência para apreciar questões envolvendo processo eleitoral sindical (4), ação de cumprimento de ACT/CCT (57), contribuição sindical (222) e contribuição sindical rural pela CNA (396).

O melhor mesmo, como diz Homero Batista Mateus da Silva, juiz do Trabalho da 2ª Região e professor da USP, seria uma lei ordinária pôr fim à discussão sobre autorização excepcional do trabalho da criança e do adolescente.

É evidente, acrescenta ele em obra de sua autoria, “que a matéria está afeta à Justiça do Trabalho, visto que seus magistrados se especializaram não somente no cotidiano das atividades profissionais, mas também nos fundamentos do direito do trabalho, incluindo-se as várias razões jurídicas, sociológicas e médicas que impedem a utilização da mão de obra infantil”.

Nem todos, como também por ele lembrado, parecem dispostos a executar tão longo raciocínio como o que aqui expus, para se chegar à conclusão de que a competência é da Justiça do Trabalho. Entretanto, as coisas começam a mudar, como se viu no Seminário do CSJT/TST.

Aliás, em 22 de agosto de 2012, durante o Seminário Nacional para a Erradicação do Trabalho Infantil realizado conjuntamente pelo CNMP e CNJ, tive a felicidade de, por delegação da Comissão Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalho decente do adolescente, defender o mesmo tema aqui exposto, no grupo 1, que tratou da Autorização Judicial para o Trabalho Infantil, e teve por coordenador o então juiz auxiliar do CNJ, Nicolau Lupianhes Neto.

O ministro Lélio Bentes Correa, na ocasião, proferiu conferência tratando do “Panorama Internacional sobre Trabalho Infantil” e houve, em cada grupo, a presença de um membro da Comissão Nacional do CSJT/TST, tendo sido debatidos temas da mais alta relevância. Referido seminário teve a participação de promotores e juízes da Infância e da Juventude de todo o país, Ministério Público do Trabalho, defensores públicos, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e da Secretaria de Direitos Humanos.

Acerca do tema aqui abordado, duas foram as conclusões:

I. Não cabe autorização judicial para o trabalho antes da idade mínima prevista no artigo 7º, do inciso XXXIII, da Constituição Federal, salvo na hipótese do artigo 8º, in. I, da Convenção 138 da OIT.

II.A competência para a autorização judicial é da Justiça do Trabalho, e quando indeferida a petição inicial ou indeferido de plano o pedido, o juiz do Trabalho observará o disposto no artigo 221 do ECA.

Pelo que se vê, quando o juiz do Trabalho não conceder a autorização pretendida, remeterá cópias ao Ministério Público, do Trabalho, Federal ou Estadual ou do Distrito Federal, conforme o caso, podendo se vislumbrar, aí sim, uma relação de complementaridade, pois caberá ao juiz competente, após as providências tomadas, determinar as medidas prioritárias e de proteção integral cabíveis na espécie. Tudo isto sem prejuízo de outros comunicados e/ou medidas que podem ser adotadas por toda a rede de proteção.

Por fim, a prevalecer — o que não acredito — a tese de que a jurisdição voluntária teria natureza jurídica tipicamente administrativa (e aí estaríamos diante de atribuição e não de competência jurisdicional), conquanto isto tornasse possível a apreciação de pedidos de alvarás judiciais tanto por Juízes da Infância e da Juventude como por Juízes do Trabalho, por critérios de conveniência, de unidade de convicção e de maior familiaridade com o tema, enfim, por todas as razões já expostas, penso que aos juízes do trabalho tão somente caberia analisar tais pretensões, tendo em vista que serão os únicos com competência jurisdicional para apreciar quaisquer efeitos advindos dessas autorizações.

De qualquer forma, como já decidido reiteradas vezes pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, notadamente quando aprecia conflitos entre decisões de juízes do Trabalho, no exercício de atividade jurisdicional, e juízes corregedores de Registros de Imóveis, em típica atividade administrativa, a jurisdição se sobrepõe à decisão com cunho administrativo. Assim, conquanto isto possa gerar desconforto, o juiz do Trabalho que entender que a natureza da autorização judicial seria administrativa, poderia afastá-la, por exemplo, no âmbito de uma Ação Civil Pública que visasse a coibir trabalho infantil, ainda que autorizado.

Esta é a minha singela contribuição para o debate sobre o tema.

O diretor-adjunto do Programa Internacional para Erradicação do Trabalho Infantil (IPEC), da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Geir Myrstad identificou uma vantagem brasileira no combate ao trabalho infantil: a existência de Tribunais do Trabalho. Segundo afirmou por ocasião da conferência de encerramento do Seminário, a questão está ligada ao Judiciário trabalhista, o que, a meu ver, reforça os argumentos aqui expendidos.

Por ocasião do comovente encerramento do Seminário, foi lida pelo Presidente do TST/CSJT, ministro João Oreste Dalazen, a Carta de Brasília, que dentre seus 12 (doze) enunciados, traz um acerca da competência:

5. afirmar a competência material da Justiça do Trabalho para conhecer e decidir sobre autorização para trabalho de criança e do adolescente, nos termos do artigo 114, I, da Constituição Federal, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional 45/2004, seja ante a natureza da pretensão (labor subordinado em favor de outrem, passível, em tese, de configurar relação de trabalho), seja ante a notória e desejável especialização da matéria;

Lembrando que a competência é mais para desautorização de trabalho infantil, inclusive artístico, indico excelente vídeo (clique aqui para ver) produzido por queridos alunos da graduação, e encerro com um poema nele contido do aluno Vinicius Flores Branco, um dos componentes do grupo, apresentado em Seminário interclasses sobre trabalho infantil que realizo anualmente na Faculdade de Direito da Toledo de Presidente Prudente e que cada vez mais me surpreende positivamente:

A gente fingia que era médico, doutor, jogador/
A gente sabia que ia ser o que a gente ainda não era/
Nos sonhos, quando dormia, a gente sabia decor/
Uma certeza de menino que não sabe que outro destino, por ele espera/
Não caíra o último dente, já precisei levantar tijolo, levantar cedo/
Faltava leite, faltava luz. O escuro é vergonha que deveria ser velada, não fosse já, de todo, ignorada/
Quando, da boca, os dentes não mais caíam, esvaiam-se os sonhos, em segredo/
A escola era longe, custava tempo. Viver é caro, e custa dinheiro. Sonho não se come, então não vale nada/
Começou logo a crescer a barba. Não vale muito para quem, já faz tempo, é homem/
Daí em diante, o tempo é fugaz, como cachaça para inebriar/
É esse, o resumo da história de um trabalhador precoce. Brigadu doutô por me ajudá/
Essi poema não fui eu que escrevi, que não sei se rimá sei bem. Pra mim, homi só rima com fómi.


(*) Adaptação, com acréscimos, da palestra proferida no dia 11.10.2012, no Seminário “Trabalho Infantil, Aprendizagem e Justiça do Trabalho”, realizado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) e Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), no Plenário do TST, em Brasília-DF.

Autores

  • Brave

    é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho e diretor do Fórum Trabalhista de Presidente Prudente (TRT 15ª Região), membro da Comissão Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalho Decente do Adolescente do CSJT/TST, mestre em Direito das Relações Sociais (subárea Direito do Trabalho) pela PUC-SP e professor das Faculdades Integradas "Antônio Eufrásio de Toledo" de Presidente Prudente (SP).

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