Observatório Constitucional

Ação afirmativa: uma jurisprudência em evolução

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13 de outubro de 2012, 8h00

Spacca
No último dia 10 de outubro, a Suprema Corte dos Estados Unidos ouviu as sustentações orais de um dos casos mais importantes deste ano judiciário: Fisher v. University of Texas at Austin, que definirá o futuro das políticas de ação afirmativa para ingresso em suas universidades. Diante disso, enquanto o mundo jurídico americano tenta prever as inclinações pessoais de cada um dos juízes desse tribunal (os quais certamente já realizaram uma votação preliminar na sessão fechada do último dia 12 de outubro), no Brasil, desvinculados que somos de qualquer resultado, podemos tirar importantes lições da análise desse caso e de sua relação com aqueles que o precederam.

Diante da evolução brasileira sobre o tema — iniciada com a adoção de políticas de ação afirmativa com critérios pela Uerj em 2003 e pela UnB e Prouni em 2004, e que tem capítulos fundamentais na recente confirmação de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 186, ADI 3.330 e RE 597.285) e na sua regulação geral quanto às universidade federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio pela Lei 12.711/2012 — há três aspectos de Fisher que merecem particular atenção.

Em primeiro lugar, a forma como os parâmetros estabelecidos pelas decisões anteriores orientaram a elaboração de políticas de ação afirmativa e pautaram os próprios termos de futuros questionamentos. Em segundo, a maneira como o processo de evolução jurisprudencial levou a sério os termos das decisões anteriores em sua dinâmica de reafirmação e revisão de pressupostos. Por fim, a relação entre as especificidades do sistema de seleção de candidatos por universidades americanas e as justificativas constitucionais de tais políticas.

O caso Fisher só pode ser adequadamente compreendido diante de precedentes estabelecidos por pelo menos seis outro casos. (i) Em Sweat v. Painter, decido em 1950, em uma época em que segregação ainda era legalmente permitida nos Estados Unidos, Herman Sweat, afro-americano, contestou sua não admissão na Faculdade de Direito dessa mesma Universidade do Texas (então “só-para-brancos”). Nesse caso, que estrategicamente ainda não questionava a doutrina segregacionista do “separate but equal”, Sweat — cuja família agora figura como amicus em Fisher — venceu sob o argumento de que a instituição análoga oferecida pelo Estado para “não-brancos” violava mesmo tal doutrina segregacionista por não ser equivalente à Universidade do Texas — um precedente importante no caminho árduo até a declaração, quatro anos depois, da inconstitucionalidade de políticas de segregação em (ii) Brown v. Board of Education (1954).

Vinte e quatro anos depois, diante de uma contínua realidade de exclusão, em (iii) Regents of the University of California v. Bakke (1978) a Suprema Corte estabeleceu os parâmetros da constitucionalidade de políticas de ações afirmativas para admissão em universidades. Nesse julgamento, em vista de um impasse entre dois grupos de quatro juízes, o voto condutor do Justice Powell, dividindo a diferença, rejeitou o sistema adotado pela Universidade da Califórnia, mas afirmou que o objetivo de ter um corpo discente diverso seria constitucionalmente permitido a uma instituição de ensino superior — autorizando políticas como a de Harvard (que figurava como amicus no caso), em quea etnia de um candidato é considerada em meio a um processo holístico de seleção. Essa decisão, entendida nos termos do voto de Powell, guiou com segurança a (re)formulação posterior de políticas de ações afirmativas até que, (iv) em Hopwood v. Texas (1996) a Corte Federal de Apelação do 5o Circuito afirmou que, diante da dispersão de votos em Bakke, o voto condutor de Powell não era vinculante, declarando a inconstitucionalidade do programa de ação afirmativa da Faculdade de Direito da mesma Universidade do Texas.

Apesar de o recurso de Hopwood não ter atingido a Suprema Corte, em 2003 esse tribunal rejeitou Hopwood ao decidir paralelamente (v) Gratz v. Bollinger, em que declarou a inconstitucionalidade do programa de ação afirmativa da Universidade de Michigan por esse não considerar adequadamente as contribuições de cada candidato para a diversidade do corpo discente de maneira individualizada, e (vi) Grutter v. Bollinger, em que declarou a constitucionalidade do programa de ação afirmativa da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, com a reafirmação no voto da Justice O’Connor — agora falando em nome de uma maioria — dos termos previamente estabelecidos em Bakke por Powell, segundo os quais ações afirmativas voltadas a minorias sub-representadas poderiam levar em conta a etnia do candidato em uma análise holística e individualizada de cada candidato.

Agora, com Fisher, retornamos à Universidade do Texas, a qual, além de ser personagem proeminente desde o início dessa história, teve seu programa de ação afirmativa diretamente afetado por Hopwood e, posteriormente, redesenhado de acordo com os critérios estabelecidos em Grutter. Assim, após a rejeição do programa de ação afirmativa da Universidade do Texas em Hopwood, em 1998 o estado do Texas editou lei regulando o processo de ingresso, estabelecendo que os primeiros 10% de cada uma das escolas do estado receberiam admissão automática na universidade. Pretendia-se assim estabelecer uma política que não considerasse critérios étnicos expressamente, mas que, diante da continua segregação de fato das escolas americana, garantiria o ingresso de representantes de minorias nas universidades.

Enquanto cerca de 75% dos alunos da Universidade do Texas são admitidos por meio desse processo, o restante é admitido por um processo paralelo que considera individualmente cada candidato, valorando positivamente diversos critérios acadêmicos e características pessoais. Apesar de a decisão em Hopwood ter levado a universidade a reformular seu processo de admissão e não mais considerar etnia em seu procedimento de seleção, após Grutter, em vista de uma sensível diminuição da representação de minorias em seu corpo discente pós-Hopwood, a universidade alterou mais uma vez seu processo de admissão e voltou a considerar etnia entre as características relevantes dos candidatos tentando admissão que não foram aceitos pela política dos dez por cento. Em Fisher o que se questiona é a constitucionalidade dessa política atual de ação afirmativa, requerendo-se a declaração da incompatibilidade de tal processo de admissão com os parâmetros estabelecidos em Grutter ou, alternativamente, a rejeição desse precedente.

Em Fisher e nos casos que o precederam, merece destaque o dialogo institucional pelo qual, por um lado, decisões judiciais pautaram o desenho de programas de ação afirmativa e, por outro, programas criativamente elaborados para atender a jurisprudência da corte influenciaram decisões posteriores, ao demonstrar como parâmetros constitucionais abstratos podem ser concretizados de maneira coerente na elaboração de critérios de admissão. Essa saudável relação entre Direito e realidade requer uma corte que valorize seus próprios precedentes e que seja de capaz fornecer à sociedade balizas seguras em decisões claras e internamente coerentes, não só quanto ao seu dispositivo, mas também quanto às linhas argumentativas apresentadas nos votos de seus diversos membros.

Requer assim, acima de tudo, o tipo de responsabilidade e humildade expressos durante a audiência de Fisher em questionamentos como: “Por que rever o entendimento de um caso [Grutter] em que houve tanta consideração e esforço e em que tantas pessoas pelo país dependeram?” (Justice Breyer); “Há milhares de agentes de admissão nos Estados Unidos, milhares de universidades, e o que é que vamos dizer aqui que já não foi dito em Grutter e que não vai afetar centenas e milhares dessas pessoas e levar juízes federais a ditar a política de admissão dessas universidades?” (Justice Breyer); e “Então agora nós vamos dizer as universidades como gerenciar e como pesar qualificações também?” (Justice Sotomayor).

Há mais a ser aprendido a partir dessas indagações e do sentimento que as instigam do que de qualquer resposta que a Suprema Corte dos Estados Unidos eventualmente venha a dar nesse caso.

Em relação aos parâmetros específicos estabelecidos pelas decisões americanas e os modelos de ação afirmativa desenhados em sua resposta, para além de qualquer fetichismo com as conclusões específicas da Suprema Corte americana ou qualquer outro tribunal estrangeiro, o que deve ser apreendido é a profunda relação entre a especificidade da realidade americana e as soluções encontradas. De tal forma, qualquer análise comparada entre a jurisprudência e as políticas de ação afirmativa brasileiras e aquelas desenvolvidas nos Estados Unidos não pode deixar de considerar:

(i) O histórico americano de segregação racial legislativa, pelo qual critérios étnicos foram utilizados de maneira expressa como meios de exclusão e subordinação de uma parte de sua população, e a sua relação com suspeição quanto à utilização do modelo de quotas (refutado desde Bakke) nas políticas de ação afirmativa para admissão universitária;

(ii) A perversa relação direta entre a contínua presença na sociedade americana de segregação residencial de fato e, consequentemente, escolas públicas, e a viabilidade de um plano como o adotado pela legislação do estado do Texas ser capaz de gerar certa diversidade étnica sem, no entanto, se valer expressamente de critérios étnicos — algo que mesmo em tal situação peculiar se mostrou insuficiente;

(iii) A dependência da opção pela consideração de etnia entre outras características pessoais em meio a um processo de avaliação holística de cada candidato em relação ao modelo de admissão universitária dos Estados Unidos, em que funcionários da universidade consideram subjetivamente cada candidatura — um modelo completamente oposto àquele de exames escritos e sem qualquer identificação do candidato que predomina no ambiente brasileiro.

Enfim, se há algo a ser aprendido a partir da análise das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o tema de políticas de ação afirmativa, é necessário considerar tudo aquilo que temos em comum e tudo aquilo que nos diferencia, ou seja, é necessário, também quanto a isso, uma análise holística da sua jurisprudência e sua relação com especificidades da história e da sociedade americana.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

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