Direito & Mídia

"Jornalismo de antecipação" vale para qualquer assunto

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10 de outubro de 2012, 16h27

Spacca
Relendo meus guardados encontrei um texto antigo em que comentava a tendência da mídia em “armar o circo” para incrementar a receita (os ingressos publicitários entram na medida em que o jornal, a emissora de rádio ou o canal de televisão oferecem maior audiência). De olho nas vendas e no lucro, jornais, mesmo os de estirpe, e emissoras de TV buscam o inusitado, o que faz barulho, deixando de lado a tradicional missão de filtrar e dar informações confiáveis e úteis, necessárias para o cidadão tomar decisões, seja a da prosaica escolha do caminho alternativo para evitar congestionamentos, seja de como aplicar suas economias.

Em vez disso, os meios de comunicação passaram a apostar no exagero, seguindo o que deveria ser a receita das revistas de entretenimento — aquelas em que casamentos de astros esportivos com modelos em busca de fama se tornam “acontecimentos da década”, ou “do século”, que afinal qualquer exagero vale. A velha regra, nos tempos do Repórter Esso, era a notícia enxuta, sem adjetivos.

Como resultado dessa tendência, a mídia foi abrindo espaço para o “jornalismo de antecipação”. A partir da década de 90, os cadernos de cultura, para ficar num exemplo, em vez da análise crítica de espetáculos apresentados ou livros publicados, passaram a falar dos lançamentos a acontecer. Virou rotina lermos, na véspera de estréias, que o novo filme do Batman será o acontecimento do ano. Na semana seguinte, sem que o filme provoque maiores frissons por parte dos espectadores, o jornal silencia: nenhum comentário crítico —afinal, a atenção já estava posta na próxima novidade que será “o acontecimento da década”. De algum modo, o jornalismo cultural se transformou em boa parte na reprodução de releases —e a narrativa enxuta do jornalismo de informação deu lugar à linguagem enfática dos textos publicitários, aqueles que prometem que “você faz maravilhas com o Leite Moça”, com o devido respeito ao produto da Nestlé.

O problema é que essa trajetória ladeira abaixo não fica por aí. A prática do “jornalismo de antecipação” contamina também os cadernos de política e de economia e negócios. E a tendência vale para qualquer assunto, das pesquisas de preferência eleitoral à redução decretada pelo FMI para o crescimento de nosso país para este ano bissexto de 2012.

E este ano bissexto é ano eleitoral. Via ontem à noite, na mesa da sala dos professores da faculdade, a manchete de um jornal de circulação gratuita garantindo que os 34% de intenção de voto no candidato à Prefeitura de São Paulo, Celso Russomanno, era incontornável. A data: 4 de outubro. Um professor de ciência política por quem tenho o maior carinho passou um intervalo inteiro tecendo previsões que garantiam ao candidato, hoje fora da disputa, a cadeira da Prefeitura: o terceiro colocado, excluído do segundo turno, jogaria contra o adversário do líder das pesquisas. Uma sábia professora de português mencionou Fernando Henrique Cardoso, posando antecipadamente para uma revista semanal, aboletado na cobiçada cadeira. Teve de engolir a teatral dedetização realizada por Jânio Quadros, o candidato eleito, do trono de alcaide.

Esse clima de antecipação chegou à saturação nos três dias prévios à eleição. Recolhi no YouTube a fala do senhor Nivaldo Cordeiro. Segundo ele, “a presidente Dilma Rousseff esteve ontem [o autor não esclarece o dia, talvez seja 1º de outubro, quando a chefe de Estado participou do comício de Haddad em Itaquera] em São Paulo discutindo com Lula o cenário das eleições paulistanas. E aproveitou para antecipar a entrada na campanha, a fim de reverter a desesperadora situação de Fenando Haddad nas pesquisas. O PT colhe o que plantou: a arrogância de Lula em escolher um candidato desconhecido, rifando nomes consagrados, como Marta Suplicy, e também os frutos do mensalão. A classe média de São Paulo acompanha atentamente o plenário do STF e é inevitável concluir que o julgamento tirou votos e os tirará ainda mais. Se as eleições fossem hoje Fernando Haddad estaria fora do segundo turno. Não há mais tempo para reverter o quadro. O segundo turno será entre Celso Russomano e José Serra”. Trabalhar com previsões dá nisso.

Mas a boa notícia é que teremos uma excelente oportunidade de escolher entre dois bons candidatos —radicalizações à parte (e sem querer antecipar, imagino o festival de baixarias que, como nuvens negras, se armam no horizonte). Vamos a algumas ponderações.

Como escrevi na semana passada, essa foi uma campanha eleitoral sem brilho na capital bandeirante, uma das mais inócuas de muitas décadas, pela total falta de discussão de rumos para nossa cidade. Foi um festival de jingles, musiquinhas de apelo fácil e rima pobre. Espera-se que os dois candidatos que foram para o segundo turno debatam agora projetos com ânimo sereno. Afinal, ambos têm “projetos, apoios, sabem fazer e gostam de trabalhar” —estou me apropriando da fala da presidente Dilma Rousseff, embora ela se referisse apenas ao ungido de Lula, mas o texto se aplica igualmente a Serra. A chefe de Estado alfinetava comentando que “seu candidato” é jovem e ao mesmo tempo experiente e testado na administração pública (aqui, com respeito, ponto para a maior experiência do opositor, que até por não ser mais tão jovem não cairá na tentação de abandonar a Prefeitura antes do tempo, como já fez, mesmo com documento em cartório).

Por que essa disputa não teve o brilho das ideias? Um problema causado pelo protelamento da reforma eleitoral —uma das muitas que vão sendo tocadas pela barriga, pois não interessa mudar o que dá bons resultados para os interessados, mesmo que isso sangre a vida política brasileira. A participação de 12 candidatos em disputa pela Prefeitura de São Paulo faz a campanha virar uma chicana. A eleição fechou com Serra marcando 30,75% dos votos, Haddad 28,98%; Russomanno 21,60%; e Chalita com 13,60%. Daí é o fundo do poço: 2,65%; 1,02%; 0,63%; 0,32%; 0,21%; 0,12; 0,09%; e 0,02%. E o candidato que atingiu 0,32 conseguiu cancelar o debate da TV Globo. Não faz sentido. Ninguém merece ouvir o senhor José Maria Eymael (0,09% dos votos) se creditando no horário eleitoral todos os méritos da Constituição de 1988 —ele foi, sim, um dos 41 Josés da lista, incluído o José Serra.

Outra ponderação: a pasteurização das fórmulas de campanha. Circulou na internet um vídeo irônico, dirigido por Pepe Mendina, “O Candidato”, verdadeiro modelo de “genérico”. Vale a pena assistir a essa fôrma que se repete ad nauseam no horário eleitoral. Discursos que capricham na arte de não dizer nada, com outros candidatos bem-sucedidos da sigla (genérica) dando seu apoio (genérico) ao candidato idem. Espera-se que agora, no segundo turno, haja discussão entre os dois candidatos, com propostas de programas, e não a repetição de roteiros escritos por marqueteiros. Foi justamente por fugir do discurso “genérico” que o favorito das pesquisas cavou seu desastre pessoal. Ao falar da proposta de introduzir o bilhete único proporcional, paga mais quem se locomove mais no transporte coletivo, sua curva se tornou dramaticamente descendente. O peixe morre pela boca, diz o ditado. Celso Russomanno teve de pagar o mico de cancelar a festa programada no Clube Homs, na Avenida Paulista, para a noite de domingo. Mais um ponto contra o jornalismo de antecipação. Veja o vídeo O Candidato.

Gostaria de comentar ainda a diatribe do ex-presidente do PT, José Genoino, que no dia da eleição comparou a imprensa brasileira com a ditadura militar, no bate-boca com os repórteres que estavam ali na seção eleitoral para seu trabalho. Mas vamos deixar o rapaz em paz, já teve o que fez por merecer.

Termino, sim, pontuando duas coisas. Fiz questão por duas vezes de identificar Dilma Rousseff como chefe de Estado. Ela é a presidente de todos os brasileiros, e não dos brasileiros petistas. Por isso, como estadista, deveria ter se preservado e não subir em palanque, meter o bico, como repetiu quatro vezes, na campanha paulistana. Teria evitado o mico que colheu em Belo Horizonte, com a derrota do candidato do PT. A segunda é sobre a incontinência verbal de Lula, ao dizer “O povo não está preocupado [com o julgamento do mensalão pelo STF]. Estamos preocupados se o Palmeiras vai cair para a segunda divisão e se o Haddad vai ganhar”. Como já se disse, o peixe morre pela boca.

PS: duas notícias de ontem, para o leitor refletir; a) O PT e o PMDB fizeram um acordo para encerrar a CPI do Cachoeira sem levar à frente investigações que poderiam elucidar o envolvimento de políticos no esquema do empresário Carlinhos Cachoeira; b) O candidato do PT a prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, chamou a campanha de José Serra (PSDB) de “hipócrita” e acusou o rival e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de “abafar” investigações contra aliados.

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