Observatório Constitucional

A Constituição é aprendizagem, assim como os filhos

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  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

6 de outubro de 2012, 8h00

Spacca
O 5 de outubro de 2012 é dia de comemoração. Para mim, duplamente. É que, além de marcar o aniversário de 24 anos da nossa ainda jovem Constituição da República, este dia agora me revela a plenitude do conceito de família, já que é também o dia em que João Vítor, meu primeiro filho, completa 1 (um) ano. Duas razões para festejar[1].

Mas, para que você, leitor, não se sinta ligeiramente enciumado desta feliz coincidência, que houve por bem de acontecer a um empolgado estudioso do Direito Constitucional, como eu, tentarei explicar melhor a relação entre a Constituição e o elo pai-filho, inspiradas em duas situações, digamos, familiares.

A primeira, colhida em um fabuloso livro, A Constituição Invisível, de um renomado professor de Harvard, que contou sua experiência de explicar o que era a Constituição e qual o seu significado prático a um grupo de crianças. Viu-se diante da questão fundamental: como fazer uma turma inteira de infantes entender a relevância dessa Lei Fundamental no seu dia-a-dia? Teve uma excelente ideia: para falar de Constituição, resolveu não falar dela; propôs à meninada uma brincadeira que consistia em estipular as regras do recreio (gozo, duração, frequência, restrições etc.). Foi um sucesso geral, ele disse. As propostas, as discussões de lado a lado e, por fim, a votação das normas gerais do recreio. E, no final de tudo, restou-lhe apenas a singela revelação: a lei do recreio era a Constituição. O recurso foi genial.

A segunda delas foi lida em um artigo jurídico no qual o autor se valeu de uma analogia, com o ânimo de retratar a complexidade da Constituição na vida política de um país. Que tal se a comparássemos com o casamento? A pergunta, então, seria: Por que as pessoas se casam? Muitas são as respostas, evidentemente. Arrisco-me, porém, com uma delas. A constituição da família, através do casamento, motiva-se fundamentalmente pela pretensão de se viver um projeto de vida em comum: a nossa casa, os nossos filhos, os nossos sonhos, o nosso futuro. A vida a dois pressupõe valores, crenças e princípios compartilhados entre os cônjuges. Ao casarmos, celebramos um pacto do qual se extraem direitos e deveres recíprocos, que mudam substancialmente nossas histórias de vida. Aquela cervejinha com os amigos, talvez, não a possamos tomar com a mesma semanal frequência. Alegria e tristeza também acompanham o casamento, e, não raro, momentos de extrema dificuldade põem-no em xeque.

A Constituição é o casamento da sociedade. Simboliza o projeto comum da sociedade que queremos, com os valores e os princípios mais essenciais: vida, liberdade, dignidade, responsabilidade, moralidade, dentre outros. Como no casamento, a Constituição nos impõe direitos e deveres, os quais, caso ignorados, irromperão na própria dissolução da Constituição, algo não tão inusitado se lembrarmos da história constitucional brasileira.

Não sei, talvez porque sugestionado pela coincidência referida do dia 5 de outubro, penso que o liame pai-filho, conforme o tenho vivenciado ao longo deste primeiro ano, tem um potencial explicativo significativo da nossa relação cidadã com a Constituição, a ponto de valer a pena enfatizá-lo nesta data natalícia. Perdoe-me o leitor se acha que forço a barra, mas o olhar por esse prisma evidencia o lado mais intimista e fundamental que a Constituição deve ter em nossas vidas, já que ela define ao mesmo tempo a esfera pública e privada da vida de cada uma das pessoas. Afinal, a Constituição não é outra coisa senão a própria vida; ou ela serve à promoção de nossa dimensão existencial no sentido mais genuíno do termo, ou não serve para nada.

Antes, porém, gostaria de lembrar um fato curioso. Algo que me chamou muito a atenção e, sob certo viés, revela o vínculo entre a Constituição e a paternidade, em particular entre a Constituição de 1988 e meu filho. Em um dos laudos obstétricos realizados, constava lá, entre tantos “normal” e “sem anomalias”, que meu filho (ainda não nascido) era “constitucional”. Meu pensamento, juridicamente viciado, foi longe: óbvio que ele era constitucional, como poderia ser inconstitucional? Que norma poderia ter ele violado intrauterinamente? Naturalmente, nenhuma. As armadilhas da linguagem médica e jurídica me levaram longe nessa indagação infrutífera, quase ridícula.

Melhor avaliando essas ilações delirantes, hoje creio que até haja alguma ligação nisso tudo. Com efeito, a história do conceito “Constituição” mostra-nos que, antes de ser jurídico ou vinculado à teoria constitucional, esse termo era mais propriamente utilizado nas ciências médicas e biológicas e só posteriormente foi tomado de empréstimo pela política, configurando um processo linguístico que ocorreu com diversas outras expressões do jargão político e jurídico, a exemplo da expressão “corpo político”; é a denominada metáfora do corpo. A Constituição referia-se à compleição física do homem, à constituição do corpo, à sua condição de saúde, que poderia ser boa ou ruim, sã/saudável ou insana/doente. No caso, o ser meu filho constitucional significava estar ele dentro do padrão de normalidade do desenvolvimento intrauterino.

Tal ponto de vista revela um dos muitos indícios da relação entre a Constituição e o filho. Há outros mais interessantes, dentre os quais esboçarei alguns.

Assim como a identidade do pai se configura com o nascimento do filho, a identidade do cidadão se perfaz com a Constituição. O cidadão não se concebe salvo em virtude da Constituição. Meu filho tornou-se o eixo central da minha vida. Tudo o que faço é voltado para ele, é pensando nele. Minhas prioridades mudaram. A própria concepção do tempo mudou: Cronos cedeu assento a Kairós. O futuro e o passado, em alguns aspectos, viraram um grande e interminável presente; são tempos distintos, o meu e o dele, que se aproximam e andam paralelamente. A Constituição, por igual, deve ser o eixo da vida política do país; as lentes pelas quais lemos nossas regras de convivência e compreendemos nossa realidade social para julgá-la. É por meio da Constituição que as gerações passadas conversam com a futura, mantêm suas tradições ou afastam-se delas, evoluindo positiva ou negativamente em suas concepções. É a Constituição que funde os tempos distintos dessas gerações que se sucedem e os faz caminharem em paralelo, configurando uma única comunidade, a sociedade brasileira. O pai se constitui pelo filho, e o filho, pelo pai; o cidadão e a Constituição, também. Sem um ou outro, o elo se desfaz.

Possuir uma Constituição significa não poder desistir dela nunca; ela tem pretensão de eternidade, é para a vida toda. Assim são os filhos. No convívio mútuo e duradouro, sobressai um inerente processo de aprendizagem recíproco: eu estou apto a ensinar a meu filho os meus princípios, os meus valores e a minha experiência, e ele os assimilará segundo seus critérios e valores que ele próprio desenvolverá, a partir de sua vivência pessoal, familiar e social. Por outro lado, também eu já aprendi muito com ele, ao longo de um ano; não me refiro apenas à troca das fraldas ou à difícil arte de fazê-lo comer ou dormir nas horas convencionais, mas, em especial, a ser menos egoísta, mais altruísta e, em sentido mais amplo, pensar em como mudar nossa realidade social para que todas as crianças tenham um futuro melhor que o nosso. A Constituição, talvez, apresente importantes respostas para esse desafio.

A Constituição é, antes de tudo, aprendizagem. Ancorada no passado da sociedade, ela nos ensina e aponta para um possível futuro melhor, que pode ser realizado. Seus princípios e objetivos fundamentais (v.g.: erradicar a pobreza, promover o bem de todos, construir uma sociedade livre, justa e solidária) não devem ser compreendidos como fruto de uma extravagância quimérica dos nossos “pais”, fundadores da Constituição. São normas que devem atuar no mais íntimo de nossas convicções, diante da potencialidade transformadora da realidade, de que a Constituição deve revestir-se.

A Constituição abre nossas mentes e portas ao porvir; ela nos dá esperança. Mas, o inverso é verdadeiro: ao se adaptar à sociedade, a Constituição anuncia toda sua capacidade de reelaborar-se, mantendo-se fiel à sociedade, que poderá ser justa ou injusta, excludente ou inclusiva, democrática ou autoritária, constitucional ou inconstitucional. Tudo a depender do nosso convívio com ela.

Enfim, a Constituição, como meu filho de 1 ano, não anda sozinha; ela precisa de nossas mãos, nosso apoio e nossa atenção integral para progredir e se firmar em pé, pois, do contrário, desmorona, cai. E a queda não faria mal apenas à Constituição em si (a denominada “frustração constitucional”), mas, à semelhança do choro do meu filho que dói no fundo da minha alma, doeria no fundo da alma do cidadão, atingindo seus direitos e garantias mais elementares.

Acreditar no futuro da Constituição e de sua realização em nossas vidas cotidianas pode ser uma utopia, mas é dessa utopia que me alimento para propiciar um mundo melhor ao meu filho. O futuro do meu filho, tampouco o da Constituição, pertence-me, mas sei que sou um sujeito fundamental em sua construção. Comemorar o 5 de outubro, para mim, é, portanto, um gesto de amor cívico à Constituição da República, de 1988, que completa vinte e quarto anos. É, também, e sobretudo, um gesto de amor paternal a meu filho, que completa seu primeiro ano de vida. Parabéns a todos nós!

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Dedico este texto aos queridos amigos André Rufino e Fábio Quintas, cidadãos, constitucionalistas e, sobretudo, pais exemplares.

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