Constituição e Poder

O jurista e os limites à concretização do Direito

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1 de outubro de 2012, 11h12

Spacca
I. As sociedades complexas e as constituições totalizantes
A realidade atual das complexas sociedades de massa está a exigir do jurista, em geral, e do magistrado, em especial, além de uma extraordinária capacidade para o trabalho, uma inédita qualificação intelectual. A quantidade e a diversidade de temas que são diariamente postos à sua apreciação já não permitem que o juiz se restrinja ao conhecimento e a técnica de aplicação das leis eventualmente em vigor, confiante na delimitação dos fatos que as partes, em contraditório, lhe trariam. Por sua vez, essa mesma realidade, como veremos abaixo, passa a exigir um novo perfil de advogado.

O magistrado percebe que a conhecida sentença latina “da mihi factum et dabo tibi jus” vai, nos tempos modernos, perdendo a sua força retórica, pois, para além de soluções juridicamente aceitáveis aos problemas concretos submetidos ao seu julgamento, os tribunais passam a ser confrontados com a configuração de fatos cada vez mais complexos, também eles a exigirem sua interpretação. Aliás, já há algum tempo Karl Larenz nos advertia contra os limites do silogismo jurídico, porquanto, na tarefa de aplicar o direito, o juiz, além de interpretar os textos normativos, ver-se-ia constantemente obrigado a interpretar os próprios casos concretos (ou seja, os fatos) postos à sua consideração.

Nasce também aqui, como já apontei neste mesmo espaço, espaço para uma perigosa tentação para respostas políticas, que o magistrado deve buscar evitar. Com efeito, ao aplicar a lei ao caso concreto, considerando-se que a interpretação é também ato de vontade da autoridade encarregada de aplicar o direito, poderia corromper-se o resultado da interpretação tanto no momento em que se delimita o conjunto normativo a ser aplicado ao caso (desconsiderando, por exemplo, um direito fundamental em jogo), como também ao se delimitar indevidamente o próprio caso concreto submetido a julgamento (desconsiderando, por exemplo, um aspecto fático importante).

Cotidianamente chegam aos tribunais questões tão diversificadas e complicadas como são os problemas de meio ambiente, pesquisas genéticas, economia, administração pública, previdência, saúde, vida e morte (aborto e eutanásia), e, se tudo isso já não fosse bastante, têm os juízes que dar respostas adequadas a cada vez mais intrincadas questões de criminalidade empresarial, financeira e tributária. No âmbito da Justiça Federal, por exemplo, pode-se dizer que esses são temas absolutamente recorrentes.

Os problemas que surgem de uma tal conjugação de fatores são de ordem considerável, sobretudo num quadro de uma sociedade como a brasileira em que, por força de sua Constituição, através de um rol quase infinito de direitos fundamentais, parece pretender-se uma questionável proteção universal de quase toda forma de manifestação de infortúnio humano. Não é por outra razão que o Professor Canotilho tem advertido quanto aos perigos de um certo totalitarismo constitucional que constituições dirigentes (como a nossa), não obstante suas indiscutíveis qualidades, podem manifestar.

De um lado, consoante o que se buscou com nosso texto constitucional, quase toda conduta, ou forma de desenvolvimento humano, goza da proteção de uma específica norma de direito fundamental; de outro, na mesma proporção, cada vez mais, variados, sutis e não menos consideráveis perigos existenciais põem sob ameaça esses mesmos bens e liberdades constitucionais, sobretudo, através dos riscos cotidianos oferecidos pelas atuais sociedades industrializadas.

Com isso tornam-se evidentes as dificuldades em que se envolvem, em geral, a manifestação e a proteção dos direitos fundamentais e, em especial, a tarefa (judicial) de lhes conferir concretização nos casos concretos.

Diante de tudo isso, ao magistrado e aos tribunais parece não bastar conhecer o direito e a ciência de sua aplicação, sendo-lhes também reclamado algum conhecimento, ainda que rudimentar, das demais ciências que explicam e governam a sociedade como um todo (sociologia, ciência política, economia e filosofia).

Como já escrevi em outro lugar, mal se pode imaginar um bem protegido constitucionalmente que, no âmbito da sociedade, das relações privadas ou no espaço do meio-ambiente natural, não esteja sendo colocado sob alguma ameaça ou perigo. A AIDS, o aborto, a energia atômica, a ocupação indevida do solo urbano e rural, o abuso de crianças, a destruição das florestas e toda espécie de novos e antigos riscos e perigos que espreitam a existência humana são alguns dos atuais temas de permanente preocupação, precisamente, porque acabam por envolver de forma destrutiva algum bem garantido por alguma norma de direito fundamental (saúde, vida, meio-ambiente e propriedade) e para o qual exigimos do Estado – em especial, do Judiciário – uma resposta juridicamente adequada e materialmente eficaz.

Mas, onde exatamente se situam o Estado e o Judiciário, assim como o seu dever de agir para proteger o indivíduo? Onde começa e termina o seu dever de intervir para proteger a vida de seus cidadãos? Está o Estado-Juiz obrigado a conferir a todos – sempre que isso for possível – uma prestação universal de proteção e segurança? Têm e podem ter os direitos fundamentais essas funções (de proteção e prestação)? Se isso parece indiscutível, fica ainda a incômoda questão: mas em que medida? Em outros termos, é possível aquilatar a medida de inconstitucionalidade do Estado, quando se refira ao seu dever de prestação e proteção do cidadão, em cada caso concreto? Existe um standard para uma tal avaliação? Se sim, ainda remanesceria a questão de saber, em cada caso, como, quanto e a que exatamente está obrigado o Estado? Se existe um direito fundamental à segurança social em sentido genérico, até onde ela vai em cada uma de suas manifestações específicas (saúde, trabalho, educação, moradia, segurança)?

Em resumo, qual a resposta correta a que está obrigado o magistrado em cada uma dessas incontáveis questões trágicas, às quais, nada obstante, dizem a tradição e o direito, ele não pode negar uma solução?

O problema da resposta correta em questões jurídicas será sempre um fantasma a assustar todos aqueles que tenham como ofício a aplicação de normas jurídicas abstratas a casos concretos. Antes de tudo, há de se dizer que nenhuma resposta racionalmente aceitável a essas questões se bastará no âmbito de um discurso de mera subsunção ou de descoberta ou revelação do resultado juridicamente adequado. No direito, na verdade, como já escrevi aqui, a questão suporta respostas absolutamente antinômicas: enquanto alguns, tomados por um sonho nobre e maravilhoso, acreditam que as respostas corretas em direito são sempre possíveis e determináveis, mesmo em casos difíceis, para outros, no meio de um pesadelo, essa capacidade do direito é simplesmente uma ficção[1].

II. Colisão e justificação das normas jurídicas

Mas não é só. Com frequência o magistrado tem ainda que confrontar-se, num quadro de proteção totalizante dos infortúnios humanos, com o fato de normas de direitos fundamentais entrarem em permanente colisão com outros bens e direitos constitucionais, convertendo a função de aplicar o direito numa tarefa ainda mais complexa. De fato, tudo se mostra ainda mais complexo ao magistrado, num contexto onde, por perceber inviável densificar, de forma consistente, as soluções para os conflitos humanos, percebe-se uma significativa revolução no afazer legislativo, sobretudo do legislador constituinte, já que, não sem razão, ao invés de regras (posições normativas definitivas), o legislador, mediante os textos normativos que edita, prefere a prescrição de condutas sob a forma de princípios (posições normativas prima facie, isto é, normas que se abrem à colisão e, por conta disso, à ponderação das possibilidades do caso concreto).

Tudo isso, obviamente, confere àquele que deve aplicar o direito ao caso concreto (sobretudo o juiz) um espaço de discricionariedade bastante considerável nas decisões que, na realização de suas funções, deve produzir. Mais poder, é certo. Entretanto, também muito maior dificuldade e responsabilidade na realização de suas funções.

Como se vê, há aqui claramente uma fratura com uma visão até então livre de discussão nas escolas de direito, já que a aplicação da ordem jurídica não mais se limita a uma operação de mera subsunção de fatos a normas.

O magistrado já não se restringe, desviando-se da clássica doutrina da separação de poderes, à função de um mero aplicador de normas facilmente oferecidas pelas fontes bem delimitadas pelo legislador a fatos também razoavelmente bem dispostos pelas partes.

Como disse acima, além de delimitar e interpretar as normas, é inegável que, diante da multiplicidade de fatos cada vez mais complexos e multifacetados, o magistrado – como regra – acaba também interpretando os próprios fatos. Por outro lado, isso implica uma redobrada responsabilidade para o advogado contemporâneo: nunca como agora ele teve que se revelar tão tecnicamente habilitado (excepcionalmente bem qualificado) para delimitar e submeter o problema concreto ao magistrado da maneira mais adequada e precisa possível, e isso tanto do ponto de vista normativo, como fático.

Por seu turno, o magistrado deve estar preparado para, além de “demonstrar” como “descobriu” o resultado de sua interpretação, justificar e motivar as próprias premissas de sua decisão. Por isso é que se diz que, cada vez mais, saímos de um mero “contexto de descoberta” (context of discovery) das normas jurídicas a serem aplicadas ao caso concreto para um complexo “contexto de justificação” (context of justification) das próprias premissas[2].

Antes, as normas jurídicas estavam justificadas pelo fato mesmo de serem válidas, isto é, pertencerem validamente à ordem jurídica. Uma vez “descobertas” nas fontes de direito, bastava a sua consequente aplicação (juízo de subsunção). Entretanto, num contexto de colisão de normas e direitos com assento constitucional, em que normas válidas aplicáveis à espécie podem ser preteridas por outras normas válidas e de mesma hierarquia, são as próprias normas que passam a carecer de justificação para a sua aplicação a um caso concreto. Nesse quadrante, o discurso de aplicação automática (subsunção) vai cedendo lugar ao discurso de justificação e argumentação persuasiva (ponderação).

Não é, pois, de todo imotivada uma certa insegurança e descrença quanto à capacidade do magistrado de oferecer respostas juridicamente consistentes aos problemas do mundo e da vida. Contudo, desconfio que grande parte do problema não esteja apenas no sujeito (magistrado), mas sim no objeto (o próprio Direito contemporâneo). A questão é saber se, com a mudança das sociedades simples (de comportamentos humanos relativamente previsíveis) para as contemporâneas de sociedades complexas e de risco (de consequências e condutas humanas acentuadamente imprevisíveis), é ainda possível acreditar num direito que nos ofereça estabilidade e segurança. A única resposta que, na condição de professor de direito constitucional, tenho oferecido aos meus alunos é a de que essa é uma daquelas lutas que, pela importância e pelo valor jogo (segurança jurídica), devemos travar mesmo sem a certeza do resultado.


[1] H.L.A. Hart, “American Jurisprudence Through English Eyes: The Nightmare and the Noble Dream”, in Essays in Jurisprudence and Philosophy, Clarendon Press, Oxford, 2001, p. 132 y ss.

[2] Eveline T. Feteris. Fundamentals of Legal Argumentation, p. 10.

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