Salto civilizatório

Ayres Britto contribuiu para a mudança de rumos do país

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30 de novembro de 2012, 14h23

O passado, já se disse, não é o que passou; o passado é o que ficou do que passou. A história, individual e coletiva, é um julgamento do tempo sobre o legado de pessoas e instituições. A memória é a prova de que não vivemos em vão.

A profícua passagem do professor Carlos Ayres Britto pelo Supremo Tribunal Federal interferiu de maneira expressiva sobre os destinos da Nação e contribuiu para a alteração de diversos dos nossos mais arraigados costumes políticos e sociais. A ocasião de sua aposentadoria é um rito para celebrarmos não o que passou, mas o muito que ficou de seus quase 10 anos de serviços prestados na mais alta Corte de Justiça do país.

O destino brindou o ministro Ayres Britto com a relatoria de casos importantes e emblemáticos. Seu voto timoneiro conduziu, por exemplo, a confirmação da liberação das pesquisas médicas com células-tronco embrionárias no Brasil. Ninguém poderá se esquecer do Plenário do STF tomado por pessoas portadoras de todo tipo de deficiência, que ali encontraram um seguro espaço para manifestação de sua esperança no progresso da ciência.

Foi igualmente inesquecível a atuação de Ayres Britto no julgamento que validou a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça no sentido de por cobro à nomeação de parentes para cargos em comissão no Judiciário, o que por vezes resvalava para o puro nepotismo. Por seu engenho também, tal medida acabou estendida para todos os Poderes da República, com a edição da Súmula Vinculante 13, numa ruptura histórica com a nossa tradição patrimonialista.

As uniões homoafetivas foram legalizadas por decisão unânime do STF, cujo voto condutor do ministro Britto evidenciou o direito a tal forma de união estável como imperativo de igualdade entre todos os cidadãos, independentemente de sua orientação sexual. Naquele importante julgamento, Ayres Britto também enfatizou o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal na defesa de minorias historicamente discriminadas pelo processo político majoritário.

Caso à parte, por sua relevância para a democracia, foram os votos em casos que versavam sobre a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. No julgamento que sepultou a velha Lei de Imprensa, entulho autoritário do regime militar, o voto de Ayres Britto reconheceu, pela primeira vez entre nós, a posição preferencial das liberdades de expressão e comunicação e a sua relação de interdependência com a democracia. “Elas estão permanentemente ligadas por um cordão umbilical: uma não vive sem a outra.” Com o desassombro de praxe, o ministro asseverou o caráter impositivo da liberdade de imprensa perante os três Poderes, afirmando que a Constituição de 1988 proscreve não apenas a censura administrativa, mas também as censuras legislativa e judicial.

Em outro caso, julgado em momento imediatamente anterior às eleições presidenciais de 2010, o ministro Britto afastou a esdrúxula proibição que pesava sobre artistas e jornalistas de exercerem a sua liberdade de crítica, ainda que com uso do humor, em relação a candidatos e partidos políticos durante o período eleitoral. Lembrando um de nossos maiores cartunistas, Ayres registrou que “o humor não consiste apenas em fazer rir; o humor é uma visão crítica do mundo, e o riso é o efeito que ele provoca pela revelação inesperada da verdade.” Já quanto à liberdade de crítica jornalística, assentou que ela vale inclusive durante o período eleitoral (que não pode ser tratado como um estado de sítio), devendo ser assegurada e até incrementada, como forma de esclarecer os eleitores sobre a conduta de candidatos, partidos e coligações.

No exercício da presidência do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça, Ayres Britto procurou aparar arestas e produzir os consensos mínimos necessários para o regular funcionamento dos dois órgãos de cúpula — no âmbito jurisdicional e na esfera político-administrativa — do Poder Judiciário. Destaco a mudança de foco dada ao CNJ, que de uma instância meramente correcional, assumiu a sua verdadeira vocação de órgão de governança e planejamento estratégico do Poder Judiciário brasileiro. A visão global da Justiça, a produção de informações de qualidade e a capacidade de interação e diálogo são contribuições da gestão de Britto à frente do CNJ.

Finalmente, coube ao ministro Ayres Britto criar as condições para o julgamento do mensalão. Com mão firme, mas pleno respeito às garantias processuais dos réus, Britto conduziu magistralmente as intermináveis sessões, administrando os ânimos mais exaltados em nome do bom andamento do julgamento. O resultado foi a reafirmação da independência do Judiciário em relação aos demais Poderes e a criação de um novo paradigma no combate à corrupção e à impunidade. Embora ainda não tenhamos alcançado o patamar da certeza da punição a todos os infratores da lei, ao menos superamos a fase da certeza da impunidade. Um verdadeiro salto civilizatório para o Brasil.

Concluo com uma nota pessoal. Sempre sereno, sem ser frio, e intenso, sem ser agressivo, Ayres Britto marcou seu período no Supremo pelo convívio afetuoso com seus pares, seus servidores e com os advogados em geral. Tudo dentro do mais salutar espírito republicano, sem perseguir ou privilegiar quem quer que fosse. Com visão de estadista e alma de poeta, Carlos Ayres Britto inscreveu seu nome no panteão dos grandes brasileiros que serviram à causa da justiça, da democracia e da liberdade.

A gratidão é a memória do coração. Que a memória afetiva do povo brasileiro seja sempre grata a Carlos Ayres Britto.

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