Redistribuição de receitas

Veja argumentos para luta por royalties no STF

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28 de novembro de 2012, 11h02

Se a estratégia da presidente Dilma Rousseff for deixar para o Supremo Tribunal Federal a decisão de manter ou não a nova lei que redistribui os royalties do petróleo, aprovada pela Câmara dos Deputados no início do mês, a corte deverá se debruçar sobre a existência de direito adquirido dos estados e municípios produtores,  isonomia entre beneficiários e não beneficiários dos royalties e violação de contratos já celebrados na vigência da atual legislação. É o que afirmam especialistas e representantes de envolvidos na disputa.

O texto aceito pelos deputados reduz as receitas de estados e municípios produtores e eleva a dos demais. Um Mandado de Segurança de 50 parlamentares pedindo a suspensão da tramitação do projeto de lei aguarda, há um ano, manifestação do Supremo. O processo é de relatoria do ministro Luiz Fux, que ainda não apreciou a liminar.

Ainda são grandes as chances de Dilma vetar a parte polêmica do texto. Na Lei 12.351/2010, a primeira que trouxe a discussão da mudança nos critérios, as modificações propostas pelo Congresso Nacional estavam sintetizadas em um único dispositivo, o artigo 64, que foi vetado pelo então presidente Lula. O quadro agora é diferente. A nova lei trata da distribuição de royalties em dois artigos principais: o seu artigo 2º confere nova redação a dispositivos da Lei 12.351/2010, fixando a alíquota para o pagamento de royalties para a exploração do petróleo do pré-sal e definindo critérios para a sua distribuição aos estados e municípios; e o seu artigo 3º modifica a Lei 9.478/1997, que disciplina a exploração de petróleo sob o regime de concessão, aplicável às áreas já licitadas e em produção. A polêmica relativa à quebra de contratos e a prejuízos imediatos a estados e municípios produtores está restrita aos dispositivos legais modificados pelo artigo 3º. Assim, o veto parcial do texto aprovado apenas quanto ao artigo 3º agradaria aos estados e municípios produtores, além de permitir a realização de novos leilões para a exploração do petróleo do pré-sal.

Caso isso não aconteça, já está pronta uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a norma, de autoria do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB). Nesta segunda-feira (26/11), o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB) e o prefeito da capital, Eduardo Paes (PMDB), se reuniram a representantes de outros estados afetados, como São Paulo e Espírito Santo, em ato público pedindo o veto. Cerca de 200 mil pessoas participaram da manifestação pelas ruas do Rio. 

Redistribuição do bolo
Compensação recebida por estados e municípios por danos e riscos ambientais causados pela exploração do petróleo e do gás, os royalties hoje são divididos entre União, estados e municípios produtores à razão de 30%, 26,25% e 26,25%. Os não produtores recebem pequena parcela. Com o novo texto, aprovado no último dia 6 de novembro, esses índices cairiam para, a partir de 2013, 20%, 20% e 15% respectivamente. No caso dos municípios produtores, a porcentagem cai para 4% a partir de 2019. As cidades afetadas por embarcações, que hoje recebem 8,75% dos royalties, teriam de se contentar com 3% em 2013 e 2% a partir de 2017.

Já os demais estados e municípios teriam aumento. Atualmente, estados recebem 7% e municípios, 1,75%. Em 2013, estados e municípios ficariam com 42% do bolo, sendo metade para cada esfera. Até 2019, a participação sobe para 27% para estados e também 27% para prefeituras. Eles ganharam ainda um fundo especial que, a partir de 2012, distribuirá cerca de R$ 4 bilhões para estados e o mesmo tanto para municípios, segundo os mesmos critérios do Fundo de Participação. Até 2020, esse valor tende a dobrar. A justificativa da maioria dos parlamentares é que a exploração que ocorre no oceano deve beneficiar a todo o país e não apenas ao município ou estado mais próximo, já que o mar é de propriedade da União. O texto aprovado aguarda sanção da Presidência da República. O prazo termina nesta sexta-feira (30/11).

O problema é que essas divisões não são do que vier a ser explorado de acordo com as próximas licitações, ligadas ao pré-sal, mas valem para os contratos já assinados, o que mexe diretamente nos orçamentos dos estados e municípios produtores. No entanto, devido ao desgaste do governo com as votações, há rumores de que a presidente Dilma pretende sancionar a norma sem vetos, na esperança de que ela seja derrubada pelo STF mais tarde.

No Supremo, o Mandado de Segurança 31.031 aguarda julgamento há um ano. O pedido de liminar, feito por 50 parlamentares do Rio de Janeiro e do Espírito Santo representados pelo advogado Humberto Ribeiro Soares, foi para que a tramitação do projeto de lei fosse suspensa. Mas o relator do caso, ministro Luiz Fux, ainda não se manifestou sobre o pedido de liminar.

A ação elenca dez inconstitucionalidades do texto e alega que sequer pode tramitar projeto que altere cláusula pétrea da Constituição — previsão do artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, da Constituição, que prevê as chamadas "limitações constitucionais". Segundo o pedido, ao mexer em receitas dos municípios, o projeto interfere na constituição financeira desses entes, violando a "forma federativa do Estado", prevista em cláusula pétrea. 

Bases dos protestos
Para o advogado Rodrigo Bornholdt, que representa na Justiça municípios que perderam royalties devido a mudanças de interpretação da legislação da Agência Nacional do Petróleo, a questão envolve violação de direito adquirido dos municípios produtores. "A Constituição garante, em seu artigo 20, parágrafo 1º, o pagamento de compensação a estados e municípios afetados pela exploração", afirma. "Não há como negar que cidades próximas a plataformas são afetadas. Nem que a legislação já consolidou a norma constitucional."

Segundo ele, é possível admitir redução dos percentuais em relação ao pré-sal, que ainda não foi explorado, desde que o valor recebido pelos entes federados não caia, mas não a alteração de valores já recebidos. "Os precedentes do Supremo protegem direitos adquirdos e estendem a proteção de direitos fundamentais a entidades de Direito Público", diz. "E o STF tem já manifestações de que os royalties são receitas orginárias dos municípios e de que representam compensação pelos impactos econômicos, sociais e ambientais da exploração de uma riqueza finita."

Os julgados da corte a respeito tratam da CFEM, a compensação paga por mineradoras e repassada pelo governo federal aos municípios. São as decisões nos Recursos Extraordinários 228.800, 381.830 e no Agravo de Instrumento 453.025. Segundo o advogado, esse tipo de exploração interfere na vocação econômica das cidades e definem investimentos em serviços públicos e educação, o que justifica as compensações. 

É o que também afirma o procurador do Espírito Santo Claudio Penedo Madureira. "A Constituição atribuiu competências aos estados e aos municípios, mas lhes conferiu, em contrapartida, recursos orçamentários para a cobertura dessas prestações. Ocorre que os estados e municípios produtores são diretamente impactados pela indústria do petróleo e, por isso, assumem despesas extraordinárias, que decorrem do exercício dessa atividade econômica, como com a construção e manutenção de estradas e com os impactos da indústria do petróleo sobre o ambiente urbano. Os royalties existem para a cobertura dessas despesas extraordinárias. Sem essa verba, esses entes terão de lançar mão de recursos ordinários para fazer frente às despesas extraordinárias. A transferência de royalties para os estados e municípios não produtores retira a autonomia do gestor dos estados e municípios produtores para decidir como gastar as suas receitas ordinárias", explica.

Com as mudanças, o Espírito Santo estima uma perda na arrecadação de R$ 3,7 bilhões entre 2013 e 2020 para o estado e de R$ 1,5 bilhão para os municípios. "A cidade de Macaé, por exemplo, mais que dobrou sua população de 1970 até hoje por conta da exploração."

É por isso que o Espírito Santo já tem uma minuta de ADI para ajuizar no Supremo assim que a lei for publicada, caso não haja vetos. Para o procurador, embora os royalties sejam pagos pelas empresas sobre a quantidade de petróleo efetivamente extraída das reservas, é o impacto sobre os municípios que justifica o pagamento. "Havendo ou não exploração, temos impacto", diz. 

Caso a lei seja sancionada, Bornholdt também pretende levar o caso dos municípios à Justiça Federal e ao Supremo, por meio de ingresso das prefeituras como amicus curiae em possíveis ações de inconstitucionalidade.

"Ao alterar a Lei 9.478, de 1997, que disciplina a exploração do petróleo pelo regime de concessão, a nova lei provoca quebra de contratos", diz Madureira. Segundo ele, embora os contratos tenham sido assinados entre a ANP e as empresas exploradoras, a agência é preposta dos beneficiários dos royalties, que seriam prejudicados. "Os royalties atualmente pagos aos estados e municípios produtores resultam de contratos assinados sob a vigência da lei pretérita, que se qualificam, portanto, como atos jurídicos perfeitos. Esses pagamentos são, então, efeitos desses contratos, que não podem ser atingidos pela lei nova, precisamente porque a Constituição, no inciso XXXVI do seu artigo 5º, veda a interferência do legislador no ato jurídico perfeito", defende. 

O procurador, que trata do tema no livro Royalties de Petróleo e Federação, publicado pela editora Fórum, lembra ainda de outros contratos que seriam prejudicados com a mudança. "Rio de Janeiro e Espírito Santo tinham problemas financeiros e obtiveram recursos junto à União, dando por garantia antecipação de receitas com os royalties. Desse modo, a União, se lhes retirar essas receitas, estará voltando contra seus próprios passos, incorrendo, assim, em violação à boa-fé objetiva", diz.

Ele também aponta inconstitucionalidade no fato de estados e municípios não afetados receberem royalties. "A Constituição, como interpretada pela doutrina jurídica e pela jurisprudência do STF, vincula o pagamento de royalties aos estados e municípios aos reflexos da exploração", afirma. 

O princípio da isonomia é outro elemento constitucional ignorado pela proposta aprovada na Câmara, segundo Madureira. Ele afirma que os estados produtores não podem cobrar ICMS pela circulação de petróleo e gás por conta da imunidade prevista no artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea "b", da Constituição. "Não é isonômico que estados e municípios não produtores fiquem com o ICMS incidente sobre a exploração de petróleo e que recebam royalties da mesma forma que os estados produtores, que não auferem essa receita tributária."

Boa parte desses argumentos foram mencionados pelo constitucionalista Luís Roberto Barroso em parecer apresentado em 2010 contra a chamada "Emenda Ibsen", que redistribuía os royalties e acabou vetada pelo presidente Lula. Para Barroso, essas verbas são receita originária e "direito subjetivo constitucional" dos estados e municípios produtores. Por isso, redistribuí-la a entes federativos não afetados na produção viola o princípio da isonomia, por tratar de maneira igualitária situações desiguais e por romper a sistemática de compensação entre royalties e ICMS, e também o princípio da segurança jurídica.

"A retirada dos royalties dos estados produtores configura quebra da lealdade federativa e violação à autonomia dos estados. No caso do estado do Rio de Janeiro, envolve exercício abusivo de poder por parte da União, já que parcela substantiva dos royalties é vinculada ao pagamento de dívida com o governo federal", diz o parecer — clique aqui para ler.

Já para a consultora e autora de quatro livros sobre regulação do petróleo Maria D’Assunção Costa, a divisão dos royalties é uma questão política. "Não há segurança do recebimento futuro de qualquer valor porque se a perfuração da petroleira não obtiver êxito, não haverá valores a dividir entre estados e municípios", afirma. Segundo ela, as verbas são repassadas pelas empresas apenas enquanto há exploração — o que tem impedido, por exemplo, os repasses relativos ao campo de Frade, na Bacia de Santos, explorado pela Chevron, mas que está com atividades paralisadas desde o acidente que causou o megavazamento de 2011.

Precedente do STF
A questão esbarra no Direito Intertemporal, que estuda a vigência de normas sucessivas e conflitantes sobre o mesmo fato. Em 1992, ao julgar a ADI 493, que tratou da validade da Taxa Referêncial (TR), o Supremo afirmou que mesmo que a retroatividade das normas seja mínima — só atinjam efeitos previsíveis posteriores de atos anteriores à sua vigência —, elas são inconstitucionais se violarem direitos adquiridos.

“Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado”, disse em seu voto o ministro Moreira Alves, relator da ADI 493. Para o Supremo, a única hipótese de repercussão imediata de lei nova sobre contratos anteriores é a de normas que alterem a moeda nacional.

Clique aqui para ler o projeto de lei. 

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