Importância dos poderes

O Judicial Review permite um diálogo entre poderes

Autor

  • Leandro Correa de Oliveira

    é advogado doutor em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Unesa-RJ) mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) professor dos cursos de graduação pós-graduação e mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).

23 de novembro de 2012, 6h50

Há atualmente uma grande discussão que ocorre não só nos meios acadêmicos, mas também na grande mídia acerca da “judicialização da política” ou “politização do Judiciário”, que de certa forma, retrata uma temática antiga acerca da proeminência do julgador em detrimento do legislador ou vice-versa, e que ocorrem em resposta a questões prementes, acerca de uma suposta deficiência das instâncias majoritárias e o aparelhamento do Judiciário em abordar questões jurídicas.

Hoje, com a inserção nos ordenamentos jurídicos das Constituições Democráticas, a internacionalização das concepções de justo e a ruptura do Estado de Direito kelseniano percebe-se que o pêndulo, agora, move-se em direção ao Poder Judiciário, que se desneutraliza. Ainda que não seja o objeto deste breve escrito abordar as causas desse fenômeno, é possível perceber alguns discursos corriqueiros, sendo exemplo a visão de que os tribunais atuam num ambiente de fluidez normativa e de imprecisões semânticas, permeado por princípios e que a nova ordem jurídica incorpora a vagueza e a imprecisão de normas do sentido promocional (programáticas), permitindo aos tribunais, quando da interpretação, uma atuação mais ativa na implementação de direitos sociais.

A despeito desta ou daquela visão, é certo que há uma preocupação acerca do papel institucional dos Tribunais no Constitucionalismo contemporâneo. Se a judicialização é contingencial, já que questões de grande repercussão política ou social podem ser levadas ao Judiciário, não poderá esta instância substituir aquelas responsáveis pelas decisões políticas tradicionais, o que nos leva aqui a os mecanismos de revisão judicial.

A discussão passa, quase que inteiramente, numa oposição entre dois polos: a supremacia legislativa e a supremacia constitucional, que decorre do modelo inventado nos Estados Unidos da América e que ainda, em grande medida, influencia-nos. No entanto, falta nesse debate uma percepção, outro modo de olhar, uma nova resposta, que, em termos institucionais, significa um diálogo que vem propor uma terceira via para as interações entre os tribunais e os órgãos responsáveis pela implementação das políticas públicas no âmbito da aplicação e interpretação das normas constitucionais.

Nesse sentido, as teorias do diálogo institucional têm tido consideráveis avanços em um grupo de diferentes países, em razão de um potencial que muitos veem de resolver os problemas da legitimação democrática da revisão judicial, na medida em que rejeitam o axioma central de que as reivindicações da supremacia legislativa e a tutela jurídica efetiva de direitos fundamentais são necessariamente incompatíveis e mutuamente excludentes.

Com o presente artigo, pretende-se, de maneira breve, (1) analisar as experiências alienígenas do Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido a respeito desse diálogo, (2) compreender como essa temática vem sendo posta no modelo norte-americano e, por fim, (3) verificar se há indícios que possam identificar, ainda que de maneira incidental, um diálogo na experiência institucional brasileira pós-1988.

O modelo Marshal, a jurisdição constitucional e a supremacia do Judiciário
Com a Constituição dos Estados Unidos, criada em oposição ao modelo britânico de supremacia do Parlamento, criou-se um sistema baseado na ideia de que o Poder Legislativo é juridicamente limitado, concedendo aos tribunais a aplicação desses limites. Com efeito, essa Constituição (e todas as emendas subsequentes) é o supremo direito nacional, o que significa que prevalece em caso de conflito com qualquer outra norma jurídica, federal ou estadual, não importando nem mesmo o momento de sua criação (Gardbaun, 2010).

Do mesmo modo, a supremacia da Constituição é aplicada pelo Judiciário, que tem o poder e o dever de anular qualquer norma jurídica que com ela venha a conflitar. Ainda que se alegue, por vezes, que o Congresso teria o poder de limitar a jurisdição dos tribunais federais, incluindo aí a Suprema Corte, ao propor, por exemplo, emendas constitucionais, o emprego desse poder não capacitaria o Legislativo a derrubar decisões individuais já exaradas pelos tribunais, a não ser para impedir que determinados pleitos fossem reivindicados no futuro (Gardbaun, 2010). Como adverte Mark Tushnet, “o poder de regular a jurisdição nunca serviu de limite significativo para o poder do judicial review.” (1995) .

Os elementos essenciais desse modelo foram estabelecidos, num primeiro momento, pelo Juiz John Marshall, quando buscava um poder que autorizasse a invalidação de uma legislação que viesse a contrastar com a Constituição, ainda que a própria não tratasse disso de maneira explícita. Para Marshall (1803, p. 177), “ou a Constituição é uma lei superior e suprema, não sujeita a alteração pelos meios ordinários, ou se encontra no mesmo nível das leis ordinárias, e, como qualquer outra lei, pode ser alterada quando o legislativo bem entender.”[1]

Esta é uma observação importante e, muito embora alguns possam considerá-la óbvia, o modelo norte-americano vem substituir um modelo em que o Parlamento não é, de forma alguma, juridicamente ilimitado. Com a supremacia legislativa, os atos legislativos constituem a forma mais elevada de lei no âmbito do sistema jurídico, não havendo aí qualquer lei que não possa ser emendada ou revogada por maioria simples e não tendo nenhuma outra instituição o poder de questionar a validade de quaisquer de seus atos legislativos (Gardbaun, 2010).

Todavia, a supremacia legislativa deixou de ser dominante após 1945, ante a necessidade de os estados expressarem de forma efetiva seu compromisso para com os direitos e liberdades humanos fundamentais contra a interferência de maiorias ocasionais. Vários países, a partir daí, abandonaram a supremacia legislativa para incorporarem em seus ordenamentos jurídicos declarações petrificadas de direitos, com status de lei suprema, que fossem judicialmente aplicadas. Esse foi o caso do Japão (1947), Itália (1948), Alemanha (1949), França (1958), Espanha (1978), Portugal (1982), entre outros (Gardbaun, 2010). Ressalte-se que, em termos gerais, ainda que existissem diferenças importantes nas experiências norte-americana e da Europa Ocidental após 1945,[2] elas se assemelhavam tanto na proteção do conteúdo dos direitos fundamentais quanto na possibilidade do controle de constitucionalidade.

A partir daí, surgiu uma segunda onda de constitucionalização na Europa Central, onde a criação de tribunais constitucionais, que exercem o controle da constitucionalidade, vem se tornando um fenômeno comum a diversos países.[3] Entretanto, há uma crítica essencial ao judicial review: seu déficit democrático. Habermas (1997) aponta, nos locais onde ele existe – restringindo seu foco aos Estados Unidos e Alemanha –, uma série de controvérsias sobre o seu lugar na estrutura de competências da ordem constitucional e sobre a legitimidade de suas decisões, destacando que, em relação às controvérsias acerca de uma concepção liberal de direito, que opera no âmbito da divisão de poderes, a justiça não deveria lançar mão de competências legisladoras.[4] Para o autor,

a prática da decisão esta ligada ao direito e à lei, e a racionalidade da jurisdição depende da legitimidade do direito vigente. E esta depende, por sua vez da racionalidade de um processo de legislação, o qual, sob condições da divisão dos poderes no Estado de Direito, não se encontra à disposição dos órgãos da aplicação do direito. (Habermas, 1997, p. 297).

Jeremy Waldron (2006), por sua vez, indaga: “os juízes deveriam ter autoridade para revogar leis quanto estiverem convencidos de que elas violam direitos individuais?” Após, identifica decisões em que os tribunais foram fundamentais para o enfrentamento de questões de direitos e em que uma boa decisão foi exarada de um processo no qual as reivindicações foram examinadas de maneira firme e séria.[5]


Do mesmo modo, há decisões ruins;[6] surge daí, como afirmado por Alexander Bickel (1986), uma “dificuldade contramajoritária”, que poderia ser assim resumida: quando se declara a inconstitucionalidade de uma lei produzida no Legislativo, há, de certo modo, a frustração da vontade das pessoas que elegeram um Parlamento. Isso porque a vontade do Parlamento é associada à ideia de governo do povo, que elege diretamente seus representantes.

Todavia, não deixa de ser ao menos incômoda a ideia de que esse mesmo Parlamento deva funcionar de acordo com aquilo que pensam os juízes não eleitos. Isso, aliás, não é estranho à realidade brasileira: o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.510, que questionava as pesquisas com células-tronco embrionárias, quando de seu voto, citando Robert Alexy, asseverou que o parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional argumentativamente.” (Brasil, 2005).

Questões assim levam, ao que parece, a uma certa desconfiança do povo, ou dos seus representantes, de que suas decisões podem não prevalecer caso alguém discorde e leve isso aos tribunais. Nesse contexto, o ponto de vista a prevalecer seria o dos juízes; como afirma Ronald Dworkin (1996, p. 74), em relação a “questões intratáveis, controvertidas e profundas de moralidade política que filósofos, estadistas e cidadãos têm debatido há muitos séculos”, o povo e seus representantes têm de “aceitar os pronunciamentos de uma maioria de juízes, cujas reflexões sobre essas grandes questões não são tão espetaculares.” (p. 74).

Esse raciocínio parte de uma desconfiança com relação aos Parlamentos, que, pelo fato de não sofrerem as contenções contramajoritárias, estariam sujeitos a maiorias ocasionais e argumentos retóricos e ideológicos de todo tipo, que fariam ruir o edifício dos direitos fundamentais. A construção teórica da petrificação destes em declarações de direitos, em que a teoria constitucional não seria uma simples teoria da supremacia das maiorias, destina-se a proteger os cidadãos (ou grupos de cidadãos) contra certas decisões que a maioria pode querer tomar, mesmo quando essa maioria age visando ao que considera ser o interesse geral ou comum (Dworkin, 2002).

Nos Estados Unidos, essa prática foi adotada e defendida pelos liberais, em oposição aos conservadores, que se opunham aos direitos que os tribunais liberais sustentavam. Algumas conquistas significativas são marcos do constitucionalismo moderno, como o caso Marbury v. Madison e Brown v. Board of Education, quando os tribunais, e não os legisladores, encabeçaram o ataque às leis segregacionistas. Na experiência brasileira, podem-se citar, entre todas, a decisão que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo e a impossibilidade de, no Estado Democrático de Direito, existir de cidadãos de primeira e de segunda classe.[7]

Hoje, a crítica ao judicial review parte dos liberais, que não querem ver conquistas da política legislativa liberal serem derrubadas por cortes conservadoras, como ocorreu com a Corte de Rehnquist, que derrubou parte da Lei de Violência contra a Mulher, decidindo que o Congresso não tinha autoridade para legislar uma proibição à posse de armas num determinado perímetro de uma escola (Waldron, 2006). De qualquer modo, é de se indagar se essa oposição seria algo do momento, tendendo algumas pessoas a defendê-la, quando concordam com os resultados, ou atacando-a, quando não.

Quanto a isso, o caso Roe v. Wade é emblemático; trata-se de um caso paradigmático que chegou à Suprema Corte norte-americana no ano de 1973 e cujo objeto de discussão era a existência de direitos inerentes à privacy que pudessem ser atribuídos a uma mulher que desejava realizar o aborto por uma gravidez indesejada. Inicialmente, a gravidez teria sido indicada como decorrente de um estupro, mas acabou sendo um argumento que não foi utilizado no decorrer da demanda. A questão relevante é que a Suprema Corte decidiu por maioria que a cidadã tinha direito à interrupção da gravidez, por uma proteção à sua intimidade (Post, 2007).

Alguns viram na decisão certo retrocesso, considerando que a decisão teria um viés excessivamente privado em detrimento da proteção coletiva da Constituição. A oposição justifica-se pelo temor de que, com o amparo dos tribunais, possam-se fazer incursões injustificadas nos direitos de legisladores conservadores (Post, 2007). Para Jeremy Waldron (2006), essa vulnerabilidade dá-se nas duas frentes, por não fornecer o instituto uma maneira pela qual a sociedade possa claramente enfocar as questões reais em jogo, quando os cidadãos discordam sobre direitos.

Desse modo, surge uma nova crítica, que ultrapassa a questão de como os tribunais decidem[8] (e da qualidade das decisões: se boas ou más, ou se ativistas ou não), em que o foco da questão não mais seria a (i)legitimidade do instituto ou de ser ele contramajoritário ou não, mas seria outro: o tipo de judicial review que pode ser justificado numa democracia deliberativa, que se situa em patamares mais complexos no âmbito da política, o que acaba por implicar a emergência de uma análise não mais (somente) no âmbito das teorias da interpretação, mas numa perspectiva institucional (Griffin, 2009) dialógica.

A emergência das teorias do diálogo institucional: as experiências do Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido
As teorias do diálogo institucional enfatizam que o Judiciário não pode (de um ponto de vista empírico) e não deve (de um ponto de vista normativo) ter o monopólio da interpretação constitucional, de modo que o exercício do poder de revisão judicial passaria a ser uma interativa e dialética conversa sobre o significado da Constituição ou, ao menos, o julgamento constitucional, idealisticamente, poderia ser produzido através de um processo de elaboração compartilhada entre o Judiciário e os outros atores constitucionais, para que se possa alcançar uma ordem constitucional representativa e legítima (Bateup, 2006).

Essa via passa por outra concepção de equilíbrio na relação entre os poderes políticos. Tem-se, assim, um sistema brando de controle de constitucionalidade, partindo-se da premissa de que a força tem de residir não na jurisdição constitucional, mas nos direitos em si, com sustentáculo nos legítimos detentores dessa competência: o povo e sua representação. Desse modo, descaracteriza-se a associação entre o judicial review e a supremacia do Judiciário, passando a construção do sentido constitucional a demandar uma permanente dialética (Silva, 2010).

Muitos veem, nessas teorias,[9] uma potencialidade em resolver (explicar ou esclarecer) questões sobre a legitimidade democrática da jurisdição constitucional; oferecem, no mínimo, um caminho alternativo para preencher essa lacuna, partindo do pressuposto de que, se as instituições governamentais (e a implementação das policies) e o povo estão aptos para responder a decisões judiciais, de maneira dialógica, o mesmo dar-se-ia com o Judiciário, para que as dificuldades contramajoritárias fossem superadas ou, ao menos, bastante atenuadas.

Nesse quadro, busca-se “o melhor dos dois mundos” (Waldron, 2005) para equilibrar direitos e democracia. Marcos desse novo modelo são as legislações sobre direitos e garantias do Canadá, da Nova Zelândia e do Reino Unido, entre os anos de 1982 e 1998. Estes são países que seguiam o modelo da supremacia legislativa tradicional, mas que adotaram declarações de direitos mais ou menos petrificadas, que, todavia, afastam-se do modelo norte-americano, buscando, cada uma a seu modo, reconciliar e equilibrar reivindicações opostas para criar um meio-termo entre elas (Gardbaun, 2010).

Conforme Stephen Gardbaun (2010), o experimento realizado por estes três países da Comunidade Bitânica para transcender a lei do meio termo excluído de Marshall e para reconciliar o que o paradigma dominantes postula como valores incompatíveis é, obviamente, um experimento interessante e importante, pois, se bem-sucedido, criará um espaço analítico e prático no direito constitucional interno e no comparado que, em geral, pensava-se não existir.

O diálogo possibilitaria uma continuidade, que se alonga da supremacia legislativa absoluta até o modelo norte-americano, mediante soluções distintas. No Canadá, por exemplo, os tribunais exercem o controle de constitucionalidade, mas não estão sujeitos ao poder dos Parlamentos para imunizar leis conflitantes ou reinstituir leis invalidades. Por sua vez, na Nova Zelândia, os tribunais aplicam os direitos fundamentais não através da invalidação das leis, mas pela interpretação que dão a elas, em consonância com os direitos, sempre que possível. Já no Reino Unido, os tribunais, além da interpretação que dão aos direitos fundamentais, têm o poder de questionar uma lei conflitante, declarando-a incompatível com um direito fundamental e provocando a expectativa de que a lei será emendada ou revogada pelo Legislativo (Gardbaun, 2010).

Portanto, o modelo oferece a possibilidade de uma divisão de trabalho, em que os tribunais têm efetivamente a última palavra no que concerne à especificação do padrão constitucional, o que importa, obviamente, um cuidado com a decisão e sua fundamentação, num primeiro momento, e, num segundo momento, competiria aos Legislativos a aplicação desse padrão.

Os benefícios seriam: (1) a desoneração dos tribunais de um fardo político, que seria destinado àqueles mais propensos a suportá-lo: os Parlamentos; (2) a possibilidade da discordância pelos Parlamentos, sem que, com isso, tenha-se uma interferência no âmbito da decisão judicial; e (3) um maior encorajamento dos tribunais na interpretação do conteúdo da aplicação dos direitos, visto que não terão a responsabilidade final de restabelecer o equilíbrio ou de rejeitar os pontos de vista majoritários (Gardbaun, 2010).

A contribuição para o modelo norte-americano: a “nova crítica” ao judicial review


Se o diálogo pressupõe o estabelecimento de “pontes procedimentais e institucionais”[10] por sobre a fissura que separa a supremacia do Legislativo da supremacia do Judiciário, resta saber se os potenciais benefícios também poderiam ser alcançados no modelo norte-americano, sem que, para isso, sejam necessárias reformas ou variações que, ao cabo, poderiam desnaturá-lo, afastando-o da teoria da supremacia judicial.[11]

Uma primeira alternativa seria a teoria minimalista, proposta primeiramente em fins do século XIX por James Bradley Thayer, segundo a qual “apenas quando um legislativo tiver cometido um ‘erro muito claro’ a respeito da constitucionalidade da lei por ela promulgada, ‘tão claro que não se presta a questionamento racional’ deveria um tribunal derrubá-la.” (Gardbaun, 2010). A solução demonstra uma inegável deferência quanto às decisões legislativas, minimizando a tensão entre o controle de constitucionalidade e as decisões majoritárias, tendo sido esta, ao que parece, a alternativa adotada por Alexander Bickel (1986), no sentido de que deveriam os tribunais adotar “virtudes passivas”, pressupondo um ideal limitativo, com a atuação jurisdicional somente diante de presunções mais fortes de inconstitucionalidade.

Cass Sustein, da mesma forma, em seu One case time (Sustein apud Griffin, 2009), adota um posicionamento minimalista; todavia, traz uma diferenciação no âmbito da decisão, que poderia ser estrita ou larga: nesta, residiria a decisão máxima, como o que se deu em Brown v. Board of Education; naquela, a Corte simplesmente decidiria a ação do momento, sem antecipar como outros casos análogos poderiam ser resolvidos, o que poderia deixar margem considerável para o debate político e a discussão.[12]

Ainda, em seu Taking the Constitution away from the courts, Mark Tushnet (Tushnet apud Griffin, 2009) traz a ideia de “Constituição fina”, interpretada por meios populares com base na Declaração da Independência e no Preâmbulo da Constituição, uma vez que tais princípios ainda possuem grande força persuasiva nas discussões públicas acerca do significado da Constituição, podendo servir de um entendimento alternativo àquele dado pela corte. Sua temática parte, então, de como tais questões constitucionais são decididas fora dos tribunais, comparando as habilidades do Congresso às dos tribunais para aplicar a Constituição.[13]

De qualquer modo, e nisso há que se concordar com Stephen Griffin (2009), os posicionamentos anteriores apontam em direção à ideia de que foi aberto um espaço institucional de diálogo, em que os direitos constitucionais podem ser seguramente definidos através do próprio processo democrático. Desse modo, o judicial review é exercido em uma “democracia de direitos”, cujas características seriam as seguintes: (1) direitos legais constitucionais e individuais são importantes e úteis para todos; (2) todos os três poderes têm sucesso em maior ou menor medida na aplicação e promoção de direitos; e (3) o Poder Judiciário ainda é ponto-chave para o estabelecimento de marcos interpretativos para a agenda de direitos.

Evidências de um diálogo institucional na experiência brasileira?
Diante do que até agora foi visto, é possível notar que as teorias do diálogo institucional vêm ganhando corpo na doutrina alienígena, sobretudo, a norte-americana, ainda que divergindo em muitos momentos acerca do que está a Suprema Corte a fazer e do que deveria ser feito. De qualquer modo, é certo que essa nova crítica é alimentada por novas exigências políticas e democráticas, às quais o Brasil não é refratário. Resta, então, indagar se esse fenômeno faz-se notar na experiência brasileira, independentemente da elaboração de alterações institucionais ou de reformas constitucionais.

Dois bons argumentos contra a ocorrência do “diálogo” seriam: a absoluta incompatibilidade com o nosso modelo, pela existência da regra da supremacia do Judiciário, e a ausência de uma estrutura política ou prática que justificasse a supremacia do Parlamento (Silva, 2010). As razões de ambos são conhecidas: o art. 102, caput, da Constituição da República (Brasil, 1988), ao estabelecer que “compete ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição”, impõe a esse órgão a prerrogativa da última palavra, sendo que o vácuo normativo do Congresso Nacional justificaria, em tese, um comportamento ativista do Supremo Tribunal Federal.[14]

Não se pode negar que há situações em que a prerrogativa da última palavra verifica-se de maneira patente, como se retira do Mandado de Segurança (MS) nº 26.603, sobre a infidelidade partidária e a perda de mandato, ou do Recurso Extraordinário (RE) nº 197.917-8, que tratou do número de vereadores por município, suscitando, para alguns teóricos, uma resposta dialógica da instância majoritária, sobre a qual não concordamos.[15] No entanto, em outros casos, adota a Suprema Corte brasileira um weak judicial review, de modo que não cumpre de maneira tão robusta a sua competência contramajoritária, estabelecendo, com as instâncias majoritárias, um relevante debate democrático institucional,[16] no qual o Supremo Tribunal Federal não questiona que o lócus da representação política seja efetivamente o Poder Legislativo.

Assim, muito embora a corte reivindique para si uma representação discursiva, comporta-se de forma deferente aos Poderes Legislativo e Executivo, quanto à competência do primeiro para legislar, por exemplo, no caso da ausência de leis complementares e do segundo para proceder a escolhas técnicas; bem como vem adotando, a par de medidas já conhecidas (como a posição concretista intermediária, nos Mandados de Injunção – MIs[17]), outras medidas dialógicas relevantes: a interpretação conforme a Constituição (Verfassungskonforme auslegung), a modulação de efeitos das decisões e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.[18]

O uso desses recursos institucionais parece indicar que o Supremo Tribunal Federal preocupa-se com o problema da legitimidade de suas decisões no âmbito do judicial review, adotando, conforme leciona Thamy Pogrebinshi (2011), “uma postura corretiva ou aperfeiçoadora”, que atenua o caráter contramajoritário de suas decisões, com a nítida intenção de preservar o máximo possível a atribuição constitucional do Legislativo. Dessa forma, na esteira do que defende Christine Bateup (2006) (um dialog fusion), percebe-se na prática brasileira uma combinação, ainda que de maneira incidental e aleatória, de duas perspectivas: a legislativa, responsável pela implementação das policies, no contexto majoritário, e a judiciária, destinada a fornecer as balizas interpretativas para as disposições de direitos.

Conclusão
Em face das considerações realizadas, pode-se afirmar que:

1. Atualmente, com os ordenamentos jurídicos constitucionalizados e com a petrificação de direitos e garantias fundamentais, o Poder Judiciário desneutraliza-se, passando a ser de interesse dos mecanismos democráticos as questões do ativismo judicial e da judicialização das decisões políticas, colocando em evidência a oposição entre os sistemas de supremacia legislativa e de supremacia do Judiciário;

2. A reivindicação de uma maior proteção dos direitos e garantias fundamentais por parte de países da Comunidade Britânica, com a petrificação de certos direitos e garantias, mas sem adotar, de maneira forte, o modelo do judicial review norte-americano, vem fazendo florescer um novo debate acerca de um diálogo institucional, mais notadamente entre o Legislativo e o Judiciário, que tem a potencialidade de resolver os problemas da legitimação democrática da revisão judicial;

3. Esse diálogo institucional, para a experiência norte-americana, permite o desenvolvimento de uma “nova crítica”, em que o judicial review é exercido em uma “democracia de direitos”, considerando que todos os três poderes têm um papel importante na defesa de direitos fundamentais e que o Judiciário, sem desperdiçar a experiência dos demais (poderes), ainda é ponto-chave para o estabelecimento de marcos interpretativos para a agenda de direitos;

4. O Brasil poderia se beneficiar desse debate, na medida em que há evidência da ocorrência desse diálogo, não questionando o Supremo Tribunal Federal que o lócus da representação política seja efetivamente o Poder Legislativo, ainda que reivindique para si uma representação discursiva;

5. Muito embora se possa argumentar que o nosso modelo situa-se na supremacia do Judiciário, o Supremo Tribunal preocupa-se com o problema da legitimidade de suas decisões, atuando como agente colaborador e partícipe no âmbito do judicial review, por meio de mecanismos institucionais dialógicos, tais como: a interpretação conforme a Constituição, a modulação de efeitos das decisões e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.

Referências
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______. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Diário Oficial da União, Brasília, 11 nov. 1999.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510, de 31 de maio de 2005. Diário Oficial da União, Brasília, 16 ago. 2010.

DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Massachusetts: Harvard University Press, 1996.

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HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2010.

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POST, Robert C.; SIEGEL, Reva B. Roe rage: democratic constitutionalism and backlash. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, v. 42, p. 373-434, 2007. Disponível em: <http://digitalcommons.law.yale.edu/>. Acesso em: 5 dez. 2011

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[1] Marbury v. Madison, 1. Cranch (5 US) 137 (1803).

[2] Sobre as diferenças, poder-se-ia dizer, sinteticamente, que a Constituição dos Estados Unidos é uma carta de direitos negativos, ao passo que as outras podem apresentar direitos positivos. Há diferenças também quanto às formas de controle de constitucionalidade: a primeira adotando o modelo difuso e as demais, o modelo concentrado como legitimado específico. Por último, nos Estados Unidos, a inconstitucionalidade da legislação só poderia ser contestada após a promulgação final da lei e por tempo determinado, enquanto, em outros lugares, isso poderia ser feito antes, como na França.

[3] Polônia (1986), Hungria (1990), Rússia (1991), República Tcheca (1992), República Eslovaca (1992), Romênia (1992) e Eslovênia (1993) (GARDBAUN, 2010). Convém citar, também, as Constituições Africanas, especialmente a da África do Sul (1996), e a nova experiência latino-americana, a partir do final da década de 1980, com as Constituições da Guatemala (1985) e do Brasil (1988).

[4] Não se farão, neste artigo, a análise da concepção procedimentalista habermasiana e a inserção, nesse cenário, dos tribunais constitucionais e da racionalidade de suas decisões. O escopo é tão somente identificar que o autor também parte de uma desconfiança, digamos assim, da supremacia do Judiciário nos momentos finais e determinantes da interpretação da Constituição.

[5] O exemplo dado é de uma decisão de 2003, em que o Supremo Tribunal de Massachusetts julgou que as leis estaduais regulando licenças para casar violavam os direitos constitucionais estaduais devido ao processo legal e à isonomia, ao limitarem, de maneira implícita, a união entre pessoas do mesmo sexo (Waldron, 2006).

[6] Tal como nos Estados Unidos, a derrubada de 170 leis trabalhistas por tribunais estaduais e federais, no período entre 1880 e 1935, ficou conhecido como Era Lochner (Waldron, 2006).

[7] ADI nº 4.277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132.

[8] Com a afirmação, não se pretende desmerecer a monumental contribuição das teorias da decisão, mas tão somente apontar que o novo constitucionalismo pode estabelecer um novo desenho institucional, dialógico, que também deve ser objeto da preocupação da Academia.

[9] Por exemplo, Cristine Bateup (2006) aponta a existência de duas diferentes teorias de “diálogo constitucional” para propor uma terceira: a teoria do equilíbrio (equilibrium), a teoria da parceria (partnership) e a teoria da fusão (fusion). Pela primeira, tem-se no Judiciário a capacidade de facilitar um alargamento do debate constitucional na sociedade, enquanto a segunda deposita suas atenções mais nas distinções entre as funções legislativas e executivas do que nos diferentes desempenhos da política governamental. A teoria da fusão teria características mistas.

[10] A expressão é de Gardbaun (2010).

[11] Algumas propostas apontam para a necessidade da eleição de juízes, o estabelecimento de mandados com duração fixa ou a seleção dos juízes para as cortes constitucionais de forma plena e direta pelo Legislativo, conforme se percebe em Gardbaun (2010).

[12] Não se tratará, aqui, das sérias divergências trazidas, entre outros, por Stephen Griffin sobre os problemas dessa teoria e, sobretudo, a dificuldade que tem Cass Sustein em demonstrar que a atual Suprema Corte vem adotando um posicionamento minimalista. Tem-se aqui um objetivo bem mais modesto: abordar, de forma geral, essa “nova crítica” ao judicial review.

[13] O posicionamento também é criticado, na medida em que o autor defende, ao menos implicitamente, que o modelo decisório dos tribunais – e suas concepções legalistas – deveria ser o modelo a ser seguido pelo Congresso.

[14] Essa afirmativa não será tratada neste estudo, por não se referir às questões normativas. Remetemos, todavia, o leitor à obra de Thamy Pogrebinshi (2011) sobre a falácia do vácuo legislativo.

[15] Registre-se que autores como Cecília de Almeida Silva (2010), Francisco Moura e Vanice Regina Lírio do Valle entendem ter havido, nesse caso, uma reação dialógica com a discussão, no Parlamento, de Projetos de Emenda à Constituição que dirimissem a controvérsia; quanto a isso, remetemos o leitor à obra Diálogos institucionais e ativismo (Silva, 2010). Discordamos desse ponto de vista, uma vez que o caso é representativo da ausência de um meio-termo: um jogo de forças entre a supremacia do Judiciário e a supremacia do Legislativo.

[16] Citamos como exemplos dessa ocorrência a ADI nº 2.240-7/BA e a ADPF nº 49-5.

[17] Mecanismo pelo qual, julgando procedente o MI, o Judiciário fixa ao Legislativo prazo para elaborar a norma regulamentadora, ao cabo do qual, permanecendo a inércia do Legislativo, o autor passa a ter assegurado o seu direito (MI nº 232-1-RJ, RDA 188/155). Anotamos aqui, contudo, a evidenciar a supremacia do Judiciário, a adoção da posição concretista direta em decisões mais recentes do Supremo Tribunal Federal (MIs nos 670, 708 e 712), sendo importante destacar, porém, que a adoção desse posicionamento dá-se em razão de uma inércia desarrazoada, negligente e desidiosa (LENZA, 2010).

[18] As medidas estão prevista nos arts. 27 e 28 da Lei nº 9.868/99, que dispõem: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão.Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.” (BRASIL, 1999).

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