Direito Comparado

Decisões do Canadá redesenham os direitos autorais

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

14 de novembro de 2012, 11h00

Heribert Ritter von Karajan (1908-1989) ou Herbert von Karajan (seu nome artístico) era um prodigioso regente. Ele dominou a cena da música clássica na segunda metade do século XX. Seus discos vendiam acima da média, assim como suas apresentações eram disputadas como a de um pop-star. Frequentador do jet-set internacional, Karajan era detestado por alguns, em razão de sua propalada arrogância, embora muitos desejassem trabalhar com ele, pois, além de um exímio maestro, tinha o dom de negociar duramente seus cachês e os acordos de direitos autorais sobre suas execuções, o que repercutia em altos pagamentos aos músicos de suas orquestras.

Acima de tudo, Karajan era polêmico. Ao reger, ele interpretava as partituras com tal personalismo que, para muitos críticos, ele se convertia em coautor das composições. E, para outros, ele desfigurava as obras com seu modo de conduzir a execução. Mais que isso, pairava sobre ele o fantasma de ter atuado durante o regime de Hitler. Como ex-membro do Partido Nazista, Karajan caiu no ostracismo no pós-guerra, mas, em pouco tempo, voltou a brilhar na cena erudita internacional.

Há uma foto sua, vestido com seu suéter preto de lã de chasmere com gola rolê (essa moda não começou com Steve Jobs), tendo ao fundo uma clareira, típica da Alemanha meridional, e um avião branco. Ele a escolheu para servir de capa a um de seus discos. Ele está de braços cruzados, com o olhar focado num ponto imaginário, com um leve e irônico sorriso. Ele parece querer dizer: “apesar de todas as restrições que me fizeram, eu venci e vocês compram meus discos, por que sou muito bom!”

Em 1987, extremamente alquebrado, ele regeu a Orquestra Filarmônica de Viena, no tradicional concerto de ano novo. Ao assisti-lo, compreende-se que Karajan era de fato muito bom. Ele conhecia o seu ofício (clique aqui para assistir).

Esse homem tão singular faleceu em 1989. Dez anos antes, inventava-se ocompact-disk (CD). Pouco tempo depois da morte de Karajan, o CD abriu as portas para uma verdadeira “destruição criativa de mercados”, para se recitar a já abundantemente conhecida máxima de Joseph Alois Schumpeter, na indústria fonográfica. A pirataria cresceu exponencialmente. As vendas, já ao final da década de 1990, começaram a desabar. A pá de cal veio com a internet e a vulgarização das músicas na rede, acessíveis de maneira praticamente ilimitada. Os controles de segurança revelaram-se muito pouco eficazes.

Uma das consequências da dramática crise da indústria fonográfica é visível no meio artístico: uma explosão de shows musicais e o retorno de antigas estrelas, que se haviam aposentado, ou de bandas que se reconstituíram para tentar obter alguma renda com apresentações ao vivo. Mesmo que seus integrantes se detestem, o que é bem comum, a necessidade de recompor o patrimônio parece falar mais alto. Propriedades, muitas delas bem exóticas, como antigos castelos, são postas à venda. Não é mais possível manter certos hábitos perdulários. A fonte secou. Agora, é apresentar-se em público, mesmo que seja constrangedor (e pouco saudável) submeter-se a rotinas intensas de espetáculos em uma fase da vida na qual se deseja o otium cum dignitate de que falavam os antigos romanos, pela boca de Marco Túlio Cícero.

No início deste século, o mercado editorial é o novo teatro de operações nessa transformação dos modelos de negócios envolvendo os produtos culturais. A pirataria do livro, a despeito de seu crescimento, não se compara às infinitas possibilidades de acesso ao conteúdo dos chamados livros digitais sem qualquer contrapartida aos autores. Da mesma maneira que ocorreu com a música, o novo suporte dos livros é aberto a uma miríade de utilizações não remuneradas, o que, a longo prazo, implicará a morte do negócio livreiro como hoje é conhecido. Lateral a esse processo, posto que não menos importante, é a situação dos jornais e revistas impressos, com o fim da circulação de periódicos centenários.

Em comum à música, ao livro e ao jornal estão dois elementos.

O primeiro é que, até agora, não se criou um modelo de negócios capaz de responder, de maneira economicamente viável, ao novo cenário tecnológico. Todos ainda estão em busca de uma resposta, mas os custos dessa espera têm sido fatais para muitos. A música, que primeiro conheceu essa realidade perturbadora, fez com que seus agentes criativos voltassem aos padrões pré-indústria fonográfica. Se bem observado, o período de “apogeu dos discos”, com tudo o que isso implica em termos financeiros, não alcançou nem a totalidade do século XX. Vive-se hoje um espécie de retorno às origens, aos tempos em que os artistas da música precisavam percorrer diferentes rincões para assegurar sua manutenção.

O segundo elemento comum a essa crise da chamada indústria cultural em sentido amplo é o Direito, especificamente o regime jurídico dos direitos autorais. É no Direito que se encontra a chave para a conservação ou a morte acelerada do modelo tradicional de comercialização de música e livros. De um lado, há o forte discurso do acesso irrestrito à cultura, o que seria obstado pelos direitos autorais. E, de outro, está a manutenção dos criadores de bens culturais. Se os executores de música conseguiram converter a atividade que se tornou acessória (os espetáculos) em principal, os compositores não possuem idêntica margem de manobra. Em relação aos livros, se for mantida a estrutura de remuneração atual, pouco restará aos autores.

Nessa altura, o discurso em torno do elevado preço dos bens culturais perdeu sua antiga relevância. A facilidade do acesso gratuito recolocou o problema. Não é mais “devo pagar esse preço?” e sim “por que pagar, se posso ter de graça?”

É sempre bom observar como essas questões vem sendo tratadas no Direito estrangeiro. A partir desta coluna, proceder-se-á ao exame de como os direitos autorais vêm sendo interpretados no campo da música e dos livros.

O foco desta semana está em decisões da Suprema Corte do Canadá, de julho de 2012, sobre o direito de cópia de livros para distribuição entre os alunos e a tarifação das músicas baixadas pela internet.[1]

1) Caso Alberta (Education) v. Canadian Copyright Licensing Agency (Access Copyright), 2012 SCC 37. Os professores de diversas escolas canadenses fotocopiavam trechos de livros didáticos para distribuir entre seus alunos para realização de atividades curriculares, como exercícios ou mesmo leituras de caráter complementar.

O art. 29 do Copyright Act admite a produção de cópias de livros para fins de estudo ou pesquisa de natureza privada. O problema é que o Conselho de Direitos Autorais considerou a atuação dos professores como elementar à atividade educacional organizada, o que lhe retirava o caráter excepcional admitido na lei canadense.

A Suprema Corte rejeitou essa argumentação e desenvolveu os seguintes pontos sobre a interpretação do direito de cópia dos livros nas escolas:

1. Nas escolas canadenses, os professores copiam trechos de livros para distribuir com seus alunos em aula. Esse material é coberto por acordos globais decopyright. O último ajuste estabeleceu o aumento dos royalties com base no número de alunos e não sobre o número de páginas copiadas.

2. Quando da renovação do contrato entre os administradores de direitos autorais e as escolas, houve divergências, que foram posteriormente sanadas. No entanto, persistiu a dúvida sobre as cópias tiradas por professores para instruir os alunos em suas atividades curriculares.

3. É artificial separar a atividade do professor e a extração de cópias. Elas constituem-se uma unidade e seu objetivo é educacional, inserindo-se na exceção da lei canadense, que isenta essas reproduções do pagamento de direitos autorais.

4. A definição de “pequenos trechos” da obra, para fins de cópia, não pode levar em conta apenas o critério da quantidade de páginas e sim a relação entre o excerto e a totalidade da obra.

5. A compra de livros para cada aluno não é uma alternativa realista. Assim como não se pode imaginar que as escolas comprem os trechos ou paguem direitos sobre todos os excertos reproduzidos para cada aluno matriculado.

6. As vendas dos livros didáticos, segundo alegado, caíram mais de 30% nos últimos 20 anos. Esse dado, porém, não pode ser objeto de associação causal com as cópias para fins educacionais. A internet, a diminuição de matrículas e a maior durabilidade dos livros podem ter causado essa diminuição das vendas.

Alguns dos juízes manifestaram votos dissidentes dos juízes Deschamps, Fish, Rothstein e Cromwell. No entanto, prevaleceu a tese de que o Conselho de Direitos Autorais deveria reexaminar a questão, levando em conta os fundamentos do acórdão da Suprema Corte.

2) Decisões sobre os direitos autorais sobre músicas. A Suprema Corte do Canadá entendeu que os direitos autorais sobre músicas que servem de trilha sonora para jogos eletrônicos devem ter sua remuneração indistinta se o jogo é adquirido em lojas, por meio de um suporte físico tangível, ou se são baixados pelainternet. Não seria legítimo o tratamento diferenciado em razão da maneira como o produto chega a seu destinatário final, levando-se em conta a base tecnológica.[2] Nessa mesma linha de raciocínio, o tribunal considerou que odownload de músicas por serviços como o iTunes equipara-se à compra feita em uma loja. Em face disso, a exigência de direitos autorais extraordinários sobre essa atividade é indevida.

Em outro acórdão, a Suprema Corte apreciou a questão de saber se eram devidos direitos autorais pelos trechos de música (previews) oferecidos aos consumidores, como forma de degustação, antes da eventual compra da obra ou da música, como se observa em um serviço como o iTunes. O tribunal considerou o previewuma espécie de “amostra grátis”, que serviria para o consumidor realizar uma espécie de venda por amostras. Assim, não se deve pagar direitos autorais sobre essas músicas, nesse modelo negocial.[3]

Por fim, decidiu o Supremo canadense que o music streaming e os sites de rádioson line são considerados novas modalidades de comunicação ou de radiodifusão e, por isso, sujeitam-se às regras preexistentes para ambas as atividades de transmissão de sons, imagens ou dados, conforme a espécie. E, por esse motivo, devem pagar direitos autorais.

A nova orientação do judiciário canadense sobre esses pontos foi saudada como uma “releitura” do conceito de direitos autorais no país. Em alguns casos, diz-se que a Corte pôs a legislação, por meio da jurisprudência, no século XXI.

As lições desses julgados canadenses merecem a necessária reflexão, especialmente quando confrontados, em outra oportunidade, com o Direito brasileiro.

Em conclusão, parece ser a perspectiva mais adequada para o exame desse tema aquela que ressalta o pano de fundo de toda essa controvérsia: a crise de um modelo de negócios. As intervenções do Direito, especialmente o jurisprudencial, podem ignorar as peculiaridades dessas indústrias e o fato de que, bem ou mal, a remuneração dos criadores advém desses direitos. Como visto aqui, a realidade docopyright nos livros é algo recente. E, na música, ela tem uma existência curta, trata-se de um pequeno hiato de 80-90 anos, se comparado à milenar história dessa arte humana. A destruição desse modelo negocial pode representar para os músicos o retorno às apresentações quase diárias para manter sua existência material. E, para os autores e compositores, a volta ao tempo em que eles eram sustentados pela ação generosa de mecenas ou de monarcas. É isso que a civilização deseja? Os defensores da extinção dos direitos autorais ou de sua flexibilização, por outro lado, acenam com as vantagens da ampla circulação de bens culturais.

A única coisa certa desse debate é que, nos dias atuais, dificilmente haveria espaço para um Karajan mirando os compradores de seus discos, com o olhar irônico de quem não apenas venceu como se fez idolatrado em toda parte. Talvez, os grandes astros da música estejam-se convertendo de cortesãos a cortejadores do público.


[1] As decisões são as seguintes: Entertainment Software Association v. Society of Composers, Authors and Music Publishers of Canada, 2012 SCC 34 (July 12, 2012); Rogers Communications Inc. v. Society of Composers, Authors and Music Publishers of Canada, 2012 SCC 35 (July 12, 2012); Re:Sound v. Motion Picture Theatre Associations of Canada, 2012 SCC 38 (July 12, 2012); Society of Composers, Authors and Music Publishers of Canada v. Bell Canada, 2012 SCC 36 (July 12, 2012) e Alberta (Education) v. Canadian Copyright Licensing Agency (Access Copyright), 2012 SCC 37 (July 12, 2012).

[2] Entertainment Software Association v. Society of Composers, Authors and Music Publishers of Canada, 2012 SCC 34 (July 12, 2012).

[3] Society of Composers, Authors and Music Publishers of Canada v. Bell Canada, 2012 SCC 36 (July 12, 2012)

 

Autores

  • é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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