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Consultor Tributário: Será que teremos mesmo paz na “guerra dos portos”?

14 de novembro de 2012, 7h00

Por Redação ConJur

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Alguns contra, outros a favor. Mas, o indiscutível é que a guerra fiscal é dos aspectos mais debatidos quando o tema central da discussão é a óbvia necessidade de haver uma reforma tributária no país.

E uma das várias facetas com que essa guerra se apresenta é aquela que ficou conhecida como “guerra dos portos”, em que estados concedem benefícios fiscais a quem realize importações pelo seu território, atraindo para si, dessa forma, a arrecadação do ICMS incidente na importação, que, não fora tais benefícios, seria recolhido a outro estado.

Assim, em regra, os estados por onde é promovida a importação devolvem ao importador 75% do ICMS que lhes é devido, seja por meio de financiamentos subsidiados ao extremo, seja pela concessão de créditos presumidos.

Decorre dessa prática que a alíquota de 12%, normalmente incidente sobre a operação interestadual que destina as mercadorias importadas ao estado onde localizado o importador originário, é, na prática, reduzida em nove pontos percentuais, diminuindo-se, por conseguinte, para 3% a respectiva carga tributária.

Claro que não há aprovação pelo Confaz para a concessão desses benefícios, o que os torna inconstitucionais.

Essa guerra já sofreu alguns bombardeios.

O primeiro deles ocorreu literalmente há décadas, com a edição de Portarias pelo estado de São Paulo (SP) que, supostamente com fundamento em dispositivos da Lei Complementar (LC) 24/75, vedou créditos de mercadorias provenientes do estado do Espírito Santo (ES) porque “contaminadas” por benefícios fiscais não aprovados pelo Confaz. O ministro Sepúlveda Pertence concedeu liminar em Mandado de Segurança impetrado pelo ES contra a referida restrição, mas ela foi recentemente cassada pela ministra Cármen Lúcia (MS 21.863, em 29.05.2012, DJ de 04.06.2012).

Essa restrição aos créditos de ICMS nos casos de benefícios fiscais não previstos em convênio foi largamente adotada por diversos outros estados e considerada ilegal por jurisprudência pacífica do STJ nos casos em que aplicada anteriormente à declaração de inconstitucionalidade da respectiva norma pelo STF (Resp 1.125.188/MT, Primeira Turma, Ministro Benedito Gonçalves, de 18.05.2010, e RMS 32.453/MT, Segunda Turma, Ministro Herman Benjamin, de 07.06.2011).

O segundo bombardeio se deu contra as denominadas importações fictas triangulares. Nelas, apesar de figurarem nos documentos de importação empresas consignatárias localizadas no estado que concede o benefício fiscal (empresas ‘fundapianas’ no ES, por exemplo), as mercadorias importadas são desembaraçadas no estado por onde elas ingressam fisicamente no território nacional e, em seguida, diretamente destinadas ao estabelecimento da empresa que efetivamente negociou a respectiva importação, sem que as mercadorias circulem fisicamente no estado em que localizadas as empresas consignatárias.

A 1ª Turma do STF firmou jurisprudência no sentido de que o destinatário jurídico da mercadoria importada, cuja localização, no entendimento do tribunal, define a competência para a cobrança do ICMS, será, no caso do parágrafo anterior, aquele a quem, nos termos do negócio jurídico subjacente à importação, é efetivamente destinada a mercadoria, pouco importando onde localizada a empresa que figura como mera representante dos interesses da importadora, simples consignatária dos bens importados (“fundapiana”) [1].

Extintas as operações triangulares, restava, ainda, o bombardeio às importações regulares, em que a empresa importadora, atraída pelos benefícios fiscais à importação, efetivamente se estabelece no estado que os concede.

E esse bombardeio se deu com a edição da Resolução 13, de 25 de abril de 2012, pela qual o Senado Federal determinou que, a partir de janeiro de 2013, a alíquota do ICMS nas operações interestaduais com bens e mercadorias importados do exterior passará a ser de 4% (atualmente, como é do conhecimento geral, as alíquotas que oneram as operações interestaduais são de 7% ou 12%, conforme os estados de origem e destino).

Essa nova alíquota se aplicará aos bens e mercadorias que, importados do exterior, não tenham sido submetidos a processo de industrialização após o desembaraço aduaneiro, ou, caso o tenham, apresentem “conteúdo de importação” superior a 40%.

A Resolução previu que caberia ao Confaz baixar normas definidoras dos critérios e procedimentos a serem observados no processo de “Certificação de Conteúdo de Importação”, e à Camex, a definição, em lista, dos bens e mercadorias importados do exterior sem similar nacional, em relação aos quais as regras e parâmetros referidos no parágrafo anterior não serão aplicáveis (na semana passada, ambos os órgãos, Confaz e Camex, baixaram os atos necessários à regulamentação dessas matérias).

Diante dos óbvios prejuízos que seriam causados à economia local, o estado do Espírito Santo propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade contra as disposições da Resolução 13/12.

Entre outros, destaco os seguintes argumentos que suportam essa ADI e que me chamam a atenção:

1) a competência constitucionalmente outorgada ao Senado Federal se limita à definição das alíquotas aplicáveis às operações e prestações interestaduais e de exportação com o objetivo de repartir receitas entre os estados de origem e destino, e não o de adotar políticas extrafiscais; e

2) mesmo que tal competência tivesse sido outorgada ao Senado, ter-se-ia que observar o princípio constitucional que veda a adoção de tratamento tributário desigual a bens ou mercadorias em razão da procedência ou destino.

Quanto ao primeiro argumento, de fato, a competência outorgada ao Senado Federal foi para definir alíquotas interestaduais com a finalidade específica de repartir receitas entre os estados da Federação. Objetiva-se, com isso, privilegiar o pacto federativo e permitir que aqueles estados menos desenvolvidos economicamente recebam fatia maior da carga tributária incidente na operação interestadual.

De fato, como é notório, quanto menor a alíquota interestadual, maior a arrecadação interna no estado de destino, o que justifica, por exemplo, que tenha sido fixada a alíquota menor de 7% (originalmente para todo e qualquer bem e mercadoria, fossem eles industrializados, importados ou não) para as operações interestaduais originadas nos estados do Sul e Sudeste e destinadas aos estados do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e ES. Essa alíquota reduzida (de 7%) permite que esses estados destinatários, menos desenvolvidos do que aqueles localizados nas regiões Sul e Sudeste, tenham uma parcela maior da arrecadação decorrente da tributação nas operações internas neles realizadas.

A tanto pode ir o Senado. Mas, jamais, extrapolar esses limites, para, por intermédio da fixação de alíquotas interestaduais, pretender definir políticas que visem sanar patologias decorrentes do mau uso de benefícios fiscais. Para esse fim, a Constituição Federal expressamente prevê a criação de mecanismos próprios, já, há muito, previstos pela Lei Complementar 24/75.

Também parece proceder o segundo argumento a que me referi acima. Ao estabelecer alíquota diferenciada para operações interestaduais com bens importados do exterior não industrializados no Brasil, ou com “conteúdo de importação” superior a 40%, a referida Resolução cria exatamente o que a Constituição Federal e os acordos internacionais celebrados pelo Brasil buscam evitar: a adoção de tratamento tributário desigual a bens ou mercadorias em razão da sua procedência ou destino.

De fato, apesar de o tratamento diferenciado ter sido previsto para operação que ocorre internamente no país (operação interestadual), o único elemento que propicia essa diferenciação é exatamente o fato de o produto ter sido importado, ou ter relevante conteúdo de importação, o que, a meu ver, é mais do que suficiente para caracterizar a prática que a Constituição visa coibir.

Se o que se quer é alterar a partilha de receitas entre estados, que se faça de uma vez o que, segundo noticia a imprensa, está sendo proposto pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega: unificação da alíquota interestadual em 4% aplicável indiscriminadamente a todo e qualquer bem ou mercadoria, independentemente da sua origem, e um prazo de oito anos para os estados fazerem a transição do velho para o novo regime, mediante a criação de um fundo de compensação, com recursos do Tesouro Nacional.

Há, ainda, outros aspectos que podem comprometer as novas regras.

Como visto acima, a Resolução em exame delega ao Confaz competência para definir “critérios e procedimentos a serem observados no processo de Certificação de Conteúdo de Importação”. A única forma de interpretar essa delegação de forma a que ela esteja em conformidade com os princípios constitucionais aplicáveis é no sentido de que ela se refere exclusivamente a normas que digam respeito aos aspectos procedimentais e obrigações acessórias que deverão ser observados na aplicação das novas regras.

Contudo, o Confaz extrapolou esses limites, quando, além de regulamentar os referidos aspectos procedimentais por meio do Ajuste SINIEF 20, editou o Convênio 123, publicado em 9 de novembro de 2012, cuja cláusula 1ª, em redação extremamente confusa, parece pretender criar regra no sentido de que as operações interestaduais serão oneradas em percentuais inferiores aos 4% definidos pelo Senado Federal, caso haja benefício fiscal no estado de origem que leve a esse resultado. Ou seja, o órgão estabelece novas alíquotas interestaduais, o que é obviamente inconstitucional.

Diante de tantas polêmicas, a impressão que passa é a de que este último bombardeio à “guerra dos portos” foi feito com balas de festim.


[1] “ICMS – Mercadoria importada – Intermediação – Titularidade do tributo. O Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços cabe ao Estado em que localizado o porto de desembarque e o destinatário da mercadoria, não prevalecendo a forma sobre o conteúdo, no que procedida a importação por terceiro consignatário situado em outro Estado e beneficiário de sistema tributário mais favorável” (RE 268586-SP, Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, em 24.05.2005)