Diário de Classe

"Lá é assim simplesmente porque o juiz quis"

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10 de novembro de 2012, 7h00

Quais os limites da intervenção judicial na esfera da política? Esta é uma questão delicada e que tem sido enfrentada, sobretudo nos últimos anos, por alguns juristas preocupados com a ascensão do ativismo judicial e os contornos que tal fenômeno assume no Brasil, na medida em que envolve um problema de (i)legitimidade democrática.

Esta semana tive conhecimento de outro caso sui generis que serve para ilustrar o tamanho deste problema que vem se intensificando de um modo muito particular  — uma vez que não encontra correspondência, por exemplo, nas experiências verificadas em outros países —, sempre sob o álibi da “necessidade de concretização dos direitos fundamentais”.

Vejamos.

Na Comarca de Júlio de Castilhos, interior do Rio Grande do Sul, a execução penal não ocorre da mesma maneira que no resto do país. Desde junho de 2011, todos os apenados do regime aberto, com serviço externo, cumprem suas penas em prisão domiciliar, de acordo com uma legislação específica e, de certo modo, paralela.

Discuti o caso com meus alunos de Direito Constitucional, que indagaram: “Mas como isto é possível?” “Ora, lá é assim simplesmente porque o juiz quis e, desse modo, resolveu a questão através da edição de uma portaria”, respondi.

Na condição de diretor do Foro, (ab-)usando de suas atribuições legais, o juiz de Direito da Comarca publicou a Portaria 9, de 7 de junho de 2011, considerando: (1) que os presos em regime aberto e semiaberto cumprem pena no mesmo local; (2) que o odor de substâncias entorpecentes é insuportável para quem não é viciado; (3) que a escassez de recursos material e humano impede a construção de albergue; (4) que o entendimento jurisprudencial dos tribunais superiores admite a prisão domiciliar em situações excepcionais; (5) que a legislação federal e estadual proíbe o fumo em locais coletivos.

Segundo o teor da referida portaria, “o apenado em regime aberto, com serviço externo, deverá cumprir a pena em prisão domiciliar” (art. 1°). Obviamente que, ao disciplinar a matéria, o magistrado também estabeleceu as condições a serem observadas: (a) recolher-se em sua residência no período que deveria pernoitar no presídio; (b) possibilidade de ausentar-se da residência apenas para estudar e realizar tratamento médico; (c) não se mudar de endereço sem a comunicação prévia; (d) apresentação mensal em juízo para informar atividades. Caso descumpridas quaisquer das condições, o benefício é revogado, retornando o apenado ao regime aberto, “sem o privilégio do sistema bissemanal” (art. 2°).

Outra inovação trazida pela portaria ao sistema penitenciário brasileiro é a política antitabagista explícita em seu artigo 3°: “É proibido fumar no pavilhão destinado aos regimes aberto e semiaberto, por se tratar de recinto coletivo público.” E, para conferir eficácia à norma, o “juiz-legislador” acrescentou, ainda no mesmo artigo, que a violação do dispositivo caracteriza falta leve e média, sucessivamente, de acordo com a reiteração da conduta transgressora.

Tal regramento será comunicado aos apenados, além de fixado em local acessível para que todos tenham ciência de seus direitos e deveres (art. 4°). A fiscalização acerca do cumprimento das normas previstas, por sua vez, fica a cargo do Comissário de Vigilância e da Brigada Militar, que deverá auxiliar na vigilância dos apenados (art. 5°).

Registre-se, por fim, que a portaria apresenta, ainda, uma citação inicial — uma espécie de “preâmbulo" —, cujo autor (outro juiz) sustenta que “a mantença dos regimes aberto e semiaberto apenas fomenta a criminalidade” e conclui que “a oportunidade de sair do fechado e ir diretamente para seu lar — liberdade condicional — é a única maneira de haver a quebra do vínculo com ex-parceiros de cadeia”.

Observa-se, neste contexto, que o magistrado exerceu sua vocação legislativa e elaborou, de fato, uma norma geral e abstrata relativa à execução penal, na medida em que praticamente aboliu o regime aberto e criou uma nova hipótese de prisão domiciliar, com regramento específico a ser aplicado aos apenados de sua comarca, além da proibição de fumar e suas respectivas sanções.

É verdade que, segundo o Código de Organização Judiciária do Estado (RS), compete ao juiz de Direito que exerce a função de diretor do Foro tomar uma série de providências relativas à administração da Justiça local (art. 74). Tal atribuição autoriza, por exemplo, que o juiz-diretor do Foro edite “portarias”, a serem aprovadas pela Corregedoria-Geral de Justiça, conforme determina a Consolidação Normativa Judicial (art. 20).

Todavia, como se sabe, “portaria” é um “ato administrativo” interno através do qual uma autoridade competente expede determinações gerais ou especiais aos seus servidores, designa funções, abre sindicâncias, instrui acerca da execução de serviços, etc. Por isto, aliás, o nome “portaria”. Tais atos eram fixados nas portas das repartições. Trata-se, em suma, de espécie de “ato ordinatório” que visa a disciplinar o funcionamento da administração. Além disso, cumpre referir que as portarias limitam-se ao âmbito interno das repartições, alcançando apenas os servidores subordinados à autoridade que as expediu.

Como se isto não bastasse, a referida portaria busca amparo legal no artigo 66 da Lei de Execução Penal, invocando expressamente as seguintes competências: “VI — zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança; VII — inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade; VIII — interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta Lei.”

Ora, convenhamos, não há interpretação possível dos mencionados dispositivos que possa autorizar o magistrado a legislar, abolindo uma modalidade específica de cumprimento da pena e criando outra. Do mesmo modo, não lhe compete estabelecer quaisquer sanções àqueles que fumarem nas dependências do presídio.

Em suma, a portaria expedida pelo magistrado evidencia, nitidamente, aquilo que vem se denominando “judicialização da política”, aumentando ainda mais a tensão entre os poderes, na medida em que o Judiciário se levante contra a reiterada omissão do Executivo e Legislativo.

No entanto, não creio que esse grave problema possa ser solucionado através de um “ativismo judicial”, por mais necessário — e contingente — que esse possa parecer, tendo em vista que a “suspensão da lei” (de execução penal) não está à disposição do juiz no Estado de Direito, mas configura flagrante Estado de Exceção.

A título de conclusão.

Primeiro: muito embora ainda se verifique certa imprecisão semântica na doutrina brasileira quanto ao uso da expressão “ativismo”, especialmente em face das especificidades que tal fenômeno assume por aqui, é possível identificar um elemento que justifica o emprego das denominações “ativismo à brasileira” ou, ainda, “ativismo às avessas”: o solipsismo judicial, no qual a interpretação do Direito ainda é entendida como um ato de vontade (ou de poder). Todavia, o problema reside no fato de que, nas sociedades ditas democráticas, os cidadãos não podem ficar à mercê da (boa) vontade dos juízes e tribunais, sob o risco de incorrermos na famosa “Justiça lotérica”: se cair com fulano, a ação será julgada procedente; se cair com beltrano, porém, será julgada improcedente.

Segundo: no último artigo da referida portaria, consta que “ficam automaticamente revogadas todas as disposições em sentido contrário existentes em portarias e/ou ordens de serviços conflitantes com a presente”. Esqueceu-se, todavia, de revogar a Lei de Execução Penal e, quiçá, a própria Constituição, que desde a edição da portaria ele deixara de aplicar. Talvez sua inspiração advenha da peça de Martins Pena, O juiz de paz na roça (1842), em que o magistrado entende por bem derrogar a Constituição (sobre o tema, a última coluna de Arnaldo Godoy, Embargos Culturais).

Terceiro: isto nos permite concluir que, não obstante todos os avanços trazidos pelo constitucionalismo democrático, ainda não conseguimos compreender a necessidade de desenvolver uma teoria das fontes adequada às transformações promovidas pelo paradigma do Estado Constitucional. Lamentavelmente, continuamos atrelados ao paradigma jurídico liberal, em que a Lei vale mais do que a Constituição (nesse sentido, recente Coluna de Lenio Streck, Senso Incomum). E a portaria, aqui, se sobrepõe a ambas. Vivemos no império das portarias, instruções normativas e resoluções (do Banco Central, da Receita Federal, do Ministério da Educação, do Denatran, da Anvisa, da Capes, etc.)!

Quarto: se é verdade que funcionamento da legislação e da administração depende em grande medida da supervisão por parte do Poder Judiciário à qual o Legislativo e o Executivo estão sujeitos, o mesmo ocorre com a atividade do Judiciário, enquanto intérprete da Constituição, que deve ser submetida à análise e crítica desenvolvidas pela doutrina. Dito de outro modo: no paradigma garantista, a ciência jurídica também pode ser concebida como uma garantia, na medida em que tem a função de denunciar — e, portanto, impedir — a violação dos direitos e a usurpação dos poderes. Ocorre que, para isto, ela deve assumir uma função pragmática — a crítica interna do direito — e, assim sendo, exercer o constante constrangimento epistemológico a que devem estar submetidas às atividades dos tribunais. Este é, afinal, o papel que o cientista do Direito deve assumir, numa sociedade democrática, em defesa das garantias que caracterizam o estado constitucional.

Quinto (e último): se esta é a “nona” portaria expedida, resta saber o conteúdo das outras oito…

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