Constituição e Poder

A importância de Dworkin para a teoria dos princípios

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5 de novembro de 2012, 13h32

Spacca
No Brasil, estamos acostumados a atribuir a Robert Alexy as qualidades e os problemas que frequentemente são divisados na teoria dos princípios, sobretudo, na vertente que busca a sua identificação com os direitos fundamentais. Não podemos esquecer, contudo, que o próprio Alexy, expressa e penhoradamente, reconhece ter buscado em Ronald Dworkin as bases de sua teoria dos princípios como mandados de otimização. [1] Muito embora, segundo informação de Jan-r. Sieckmann, o próprio Robert Alexy tenha aceitado impor algumas modificações à sua teoria (ver nota abaixo[2]), as suas bases permanecem, entretanto, devedoras — no geral — da obra de R. Dworkin.

A força intelectual de Robert Alexy, contudo, revelou-se tão extraordinária e eclipsante, por suas justas qualidades (uma estrutura teórica e analítica do que antes se apresentava apenas de forma intuitiva e genérica), que vez por outra se mostra necessário realçar a importância da contribuição de Dworkin para a teoria dos princípios.

Portanto, o presente artigo não tem o intuito de desconsiderar a importância da teoria dos princípios de Robert Alexy (o que seria, de todo modo, impróprio e sem sentido), mas apenas de recompor a sua gênese reafirmando a importância de Ronald Dworkin em seus primeiros passos.

Como amplamente divulgado, Dworkin aponta dois modelos que caracterizam e diferenciam as regras e os princípios como classes logicamente diferentes de normas. O primeiro modelo é o da aplicabilidade de tipo tudo-ou-nada (all-or-nothing-fashion) presente nas regras. O segundo modelo consiste na dimensão de peso (dimension of weight), que falta às regras, mas que possuem os princípios[3]. Tentemos compreender de forma mais aproximada dessa hoje já clássica proposição teórica.

Segundo R. Dworkin, quando os juristas discutem sobre direitos e obrigações, sobretudo naquelas situações — os chamados casos difíceis[4] — em que as formas e os conceitos jurídicos parecem “agudizar-se” mais intensamente, os profissionais do Direito parecem lançar mão de standards (normas) que não operam como regras, mas sim, de forma diferente, como princípios (ou em outros casos como diretrizes políticas)[5].

Mais frequentemente, Dworkin emprega o termo princípio de forma genérica, para referir todos os tipos de standards que, conquanto normas, não são regras. Dworkin também estabelece clara distinção entre princípios e diretrizes. Por diretriz política (policy), o autor se refere àquele tipo de standard que consiste no estabelecimento de um objetivo a ser alcançado, geralmente o desenvolvimento de alguma melhora econômica, política ou social da comunidade, ou, pelo menos, a proteção de alguma marca ou característica atual contra alteração futura (objetivo negativo).

Por seu turno, R. Dworkin chama de princípio aquele standard que deve ser observado, não por ter em vista uma finalidade econômica, política, ou social, que se possa considerar favorável, mas porque seja uma exigência de justiça, ou equidade, ou alguma outra dimensão de moralidade[6].

Dizendo de maneira mais simples é o próprio autor quem resume: Princípios são proposições que descrevem direitos; diretrizes (políticas) são proposições que descrevem objetivos[7]. Por isso que, segundo Dworkin, em geral, os argumentos de princípios se predispõem à defesa de direitos do indivíduo, enquanto argumentos políticos se propõem à defesa de interesses da coletividade[8]. Para melhor esclarecer o conteúdo de suas distinções, vejamos os exemplos do próprio autor: o standard de que os acidentes automobilísticos devem ser reduzidos é uma diretriz (política), e o standard de que não pode lucrar com a própria injustiça (é) um princípio[9].

No entanto, o próprio autor admite que a sua distinção possa entrar em colapso quando, segundo ele próprio, se estabelece um princípio como prescrição de um objetivo social (como seria o caso, por exemplo, de uma sociedade que prescreva como objetivo não se admitir beneficiar-se da própria torpeza), ou prescreve uma diretriz como enunciando um princípio (como seria o caso de um princípio segundo o qual o objetivo que a diretriz incorpora é valioso) ou quando se adota a tese utilitária segundo a qual os princípios de justiça disfarçam disposição de objetivos (assegurar a maior felicidade do maior número de cidadãos)[10]. Diante disso, o próprio autor admite que, em alguns contextos, a utilidade de sua distinção se perde quando se deixa confundir e entrar em colapso dessa forma[11].

O modelo tudo-ou-nada de aplicação das regras
A distinção, contudo, que mais interessa ao autor e que também mais se ajusta aos objetivos deste artigo é a existente entre regras e princípios. Em clássica avaliação, Dworkin nos adverte de que a diferença entre princípios legais e regras jurídicas é uma distinção lógica. Ambos os tipos de normas (standards) apontam para determinadas decisões sobre obrigações em circunstâncias particulares, mas diferem quanto ao caráter da direção que elas oferecem[12].

Enquanto as regras são aplicáveis a partir de um critério de tudo-ou-nada, este critério não vale para os princípios. Assim, ou a regra é válida e, então, se deveriam aceitar os seus efeitos jurídicos, ou a regra não é válida e, por isso, não fundamenta nem pode exigir qualquer consequência jurídica. Como a possibilidade de exceções não pode prejudicar esse resultado, uma formulação completa e a mais adequada de uma regra precisa incluir todas as exceções. Princípios, ao contrário, não determinam, quando verificado um caso de sua aplicação, uma decisão concludente segundo uma formulação pronta e acabada. Diversamente, os princípios veiculam motivos, que falam por uma decisão. Outros princípios que, de seu lado, segundo sua formulação seriam também aplicáveis, podem preceder um outro princípio no caso concreto. Aqui, porém, graças ao seu caráter não concludente, não se mostram necessárias (todas), como nas regras, as exceções que seriam de acolher numa formulação completa desse Princípio[13].

Em suas próprias palavras, afirma R. Dworkin, regras são aplicáveis segundo um modelo de tudo-ou-nada[14], pois se os fatos estipulados por uma regra estão dados, então, ou a regra é válida, situação na qual a resposta que ela fornece precisa ser aceita, ou não é válida, circunstância na qual ela não contribui em nada para a decisão[15]. Diversamente, com os princípios, em um caso concreto, a sua aplicabilidade não se apresenta de forma obrigatória, pois, nem mesmo os princípios que mais se aproximam de uma regra estipulam conseqüências jurídicas que se devam seguir automaticamente quando presentes as condições previstas em seu conteúdo[16].

O modelo de aplicação tudo-ou-nada que caracteriza as regras, segundo Dworkin, é mais visível se observamos o modo como operam as regras, não no Direito, mas em alguma (outra) atividade por elas dominada um jogo, por exemplo[17]. No beisebol, a regra prevê que será expulso o jogador que cometa três faltas. Não seria coerente um juiz que reconhecesse que esta proposição é uma proposição exata do beisebol e, ao mesmo tempo, admitir que o jogador que tenha cometido três faltas graves não devesse ser expulso[18]. Portanto, ou bem o árbitro considera válida a regra e, aplicando-a em todos os casos que suas condições se façam presentes, impõe todas as suas consequências, ou, contrariamente, por não considerá-la inválida e não-pertencente ao sistema jurídico, o árbitro afasta a sua aplicação e não pode impor ao caso as suas consequências.

Dimensão de peso dos princípios
Diferentemente das regras, os princípios não são aplicáveis segundo um modelo de tudo-ou-nada, apresentando apenas uma dimensão de peso ou de importância (the dimension of weight or importance)[19].

Quando dois princípios entram em colisão, ganha aplicação aquele princípio que, pelas circunstâncias concretas do caso, mereça primazia sem que isso importe na invalidade do princípio oposto. Diversamente, se duas regras entram em conflito, afirma Dworkin, uma delas definitivamente não pode ser considerada válida. A colisão dos princípios portanto, segundo Dworkin, resolve-se na dimensão de peso; já o conflito entre regras resolve-se no plano da validade[20].

Os princípios, conforme Dworkin, apenas contêm motivos que falam a favor de uma decisão, de tal forma que, num caso concreto, apresentando-se um princípio que exija aplicação, podem existir outros princípios que, colocando-se numa posição contrária, por circunstâncias específicas do caso, acabem tendo maior peso ou primazia sobre aquele primeiro princípio e, afastando-o, ganhem aplicação[21]. De toda forma, completa Dworkin, isso não significa que o princípio preterido não mais pertença ao sistema jurídico, pois, em um próximo caso, ou por já não existirem aquelas circunstâncias contrárias, ou por terem perdido o seu peso, o princípio anteriormente preterido pode tornar-se decisivo para o caso e, então, ganhar primazia sobre os princípios que lhe eram contrários[22].

Obviamente, diante desse quadro, torna-se bastante importante a questão de saber qual princípio, no caso concreto, tem maior peso, o que converte em elemento essencial do conceito de princípio a questão de saber com razoabilidade qual o peso de um princípio[23] no caso concreto. Tanto uma como outra questão, todavia, admite o próprio Dworkin, permanecem sempre controversas[24]. Assim, resumindo, a ideia de peso de um princípio, além de ser empregada metaforicamente por Dworkin, nele não se encontra uma tentativa de maior esclarecimento desse conceito. Segundo M. Borowski, existiriam fundamentalmente duas possibilidade de se buscar precisar a ideia de peso de uma norma: 1) a sua força ou capacidade de fundamentação; ou 2) a sua capacidade de satisfação ou de atendimento. Uma e outra ideia podem, segundo esse autor, ser empregadas isolada ou conjuntamente[25].

Como bem afirma Borowski,o critério de diferenciação das regras — o modelo do tudo-ou-nada — tem como pressuposto a possibilidade de enumeração completa das exceções à regra, já que, segundo o esquema sugerido por Ronald Dworkin, uma formulação completa de uma regra precisaria conter todas as exceções possíveis e uma tal exigência seria também possível. No caso dos princípios, diferentemente, as suas exceções não seriam teoricamente enumeráveis[26].

Todavia, para concluir, é lógico, que, no caso das regras, se a enumeração completa não se verificar, não se pode com segurança, diante de uma enumeração incompleta, ser conclusivo quanto aos efeitos jurídicos da norma. Da mesma forma, deve-se sempre considerar a possibilidade de que nenhuma exceção (conhecida) se apresente, ainda que os pressupostos de uma exceção (não conhecida) possam existir. Com isso, não se pode escapar à conclusão de Borowski de que, se os casos de aplicação das regras, do mesmo modo que os dos princípios, não se revelarem completamente enumeráveis, o critério (entre regras e princípios) seria imprestável para a diferenciação[27].


[1] A presente coluna foi, no geral, subtraída de capítulo de artigo que escrevi para compor obra em homenagem aos 70 (setenta) anos do Prof. Gomes Canotilho (no prelo pela Editora Coimbra). Aproveito para reder aqui mais uma homenagem a esse grande jurista de nossos tempos, o maior que conheci.

[2] Segundo Sieckmann, em primeiro lugar, sob a constatação de que mandados de otimização (Optimierungsgebote) não são aptos à ponderação, pois mandados de otimização devem ser “sempre preenchidos em sua integralidade”, o próprio Alexy, em artigo publicado in Ratio Júris 13 (2000), p. 304 e seguintes, teria aceitado diferenciar, em consonância  com isso, entre, de um lado, mandados de otimização (Optimierungsgebote) e, de outro, princípios vistos agora apenas como normas a serem otimizadas (Prinzipien als zu optimierenden Normen). Essa modificação, contudo, adverte Sieckmann lança uma série de outros problemas. Por exemplo, como normas a serem otimizadas, os princípios podem ser objeto de ponderação, porém, como tal não têm nenhuma específica estrutura lógica (spezifische logische Struktur), isto é, podem ser tratados, indistintamente, como normas com estrutura de ordem (Gebotsnormen), ou de autorização (Erlaubnisnormen), de competência (Kompetenzen) ou outros tipos de normas. Segue-se uma série de outros problemas críticos da teria Alexyana (veja-se o apanhado crítico em Jan-r. Sieckmann (org.). Die Prinzipientheorie der Grundrechte: Studie zur Grundrechtstheorie Robert Alexys. Baden-Baden: Nomos, 207, especialmente o artigo do próprio Sieckmann, intitulado Grundrechte als Prinzipien.)

[3] M. Borowski. Grundrechte als Prinzipien, p. 64.

[4] Por casos difíceis (hard cases) Dworkin considera as situações litigiosas particulares que não podem ser submetidas a uma clara disposição ou regra legal, estabelecida por alguma instituição com antecedência, ou quando não estabelecida uma regra que dite uma decisão em um ou outro sentido. Conforme R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 81 e 83, respectivamente.

[5] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 22.

[6] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 22.

[7] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p.90.

[8] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 90.

[9] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 22.

[10] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 23.

[11] R. Dworkin. Taking Rights, p. 23.

[12] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 24: The difference between legal principles and legal rules is a logical distinction.

[13] M. Borowski. Grundrechte als Prinzipien, p. 64.

[14] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 24: Rules are applicable in an all-or-nothing fashion.

[15] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 24.

[16] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 25.

[17] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 24.

[18] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 24.

[19] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 26.

[20] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 27 e seguintes.

[21] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 26.

[22] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 26.

[23] M. Borowski. Grundrechte als Prinzipien, p. 65.

[24] R. Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 26 e 27.

[25] M. Borowski. Grundrechte als Prinzipien, p. 65 (nota de rodape 38).

[26] M. Borowski. Grundrechte als Prinzipien, p. 65.

[27] M. Borowski. Grundrechte als Prinzipien, p. 65.

 

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