Câmera escondida

Jornalismo não pode investigar crimes a qualquer custo

Autores

  • Bruno Silva Rodrigues

    é sócio-fundador do escritório Bruno Rodrigues Advogados presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro especialista em Direito Penal e Processo Penal pela George-August Universität Göttingen (Alemanha) pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ) e especialista em Direito Penal e Processo Penal Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

  • Diogo Tebet da Cruz

    é advogado e presidente da Comissão de Processo Penal da OAB-RJ e vice-presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ.

29 de março de 2012, 13h08

A Constituição da República do nosso país consagra o direito fundamental do cidadão à informação, principalmente quando o assunto tratado é de relevante interesse da população, como dinheiro público. Recentemente, um repórter foi nomeado gestor de compras pela direção de um hospital federal no Rio de Janeiro. Seu único intuito era convocar licitações emergenciais para descobrir como é feito o mundo da propina, da fraude e da corrupção, tudo sempre gravado por três ângulos diferentes, em nítido flagrante preparado.

Em primeiro lugar, o que se mostra mais visível para o público é o suposto cometimento do crime de corrupção ativa,  tipificado no artigo 333 do Código Penal. Contudo, tal prática mostra-se absolutamente impossível pelo fato de a convocação do procedimento licitatório em caráter emergencial ter se dado, em tese, por um repórter desprovido de poderes para tanto, vez que sua única intenção era demonstrar o mundo da propina, da fraude e da corrupção.

Também se mostra absolutamente impossível o cometimento, em tese, do crime de corrupção ativa diante da ausência do elemento normativo do tipo, qual seja, a existência de um funcionário público que pudesse retardar, omitir ou praticar o ato de ofício. Na realidade, tudo não passava de uma encenação e todas as gravações ali obtidas são astuciosas ou enganosas, uma modalidade de prova ilícita mais sutil.

Não por outro motivo o Supremo Tribunal Federal editou ainda no regime não democrático a Súmula 145, onde afirma que “não há crime quando a preparação de flagrante pela polícia torna impossível sua consumação”. O Estado não pode utilizar de ardil, de fraudes ou indução a erro com a finalidade de obter provas. No caso, o jornalista também não pode, sob pena de violar os princípios constitucionais da legalidade, moralidade e da vedação das provas ilícitas, ainda que sob o argumento de que esteja levando informação de relevante interesse público a população.

Nessa esteira, como ensina o saudoso Nelson Hungria “um crime que, além de astuciosamente sugerido, tem suas consequências frustradas de antemão, não passa de um crime imaginário. Não há lesão, nem efetiva exposição de perigo de qualquer interesse público ou privado”. Neste caso estaremos diante de colisões entre princípios constitucionais que se resolve mediante a análise das considerações que envolvem o caso concreto devendo preponderar, neste caso, os princípios da legalidade e da vedação da prova ilícita.

Ademais, a utilização de câmeras escondidas ou microfones ocultos só podem ser utilizados pelos jornalistas em caso de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração, tal como prevê o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e o Manual de Princípios Editoriais da rede de televisão que publicou a matéria. Não se trata de uma conjunção alternativa. Para a utilização de câmeras escondidas é necessário que estejam presentes os dois requisitos.

Nesse mesmo sentido, em relação à investigação criminal estatal vigora nas formas ocultas de investigação a  subsidiariedade: há de se indagar se efetivamente não se pode lançar mão de nenhuma outra medida, oculta ou não, e menos gravosa, do que a medida encampada. O que se sabe – até o presente momento – é que não houve o esgotamento das outras possibilidades de apuração e que a reportagem já culminou em outros desdobramentos como a suspensão de contratos, instauração de investigação policial e pedidos de instalação de CPI, em notória condenação antecipada dos envolvidos.

A reportagem também não deixou claro o início das negociações entre o repórter e os envolvidos. Limitou-se a reproduzir, em rede nacional, trechos fora de contexto do que fora captado ao longo de dois meses, sem, contudo, transmitir ao telespectador qualquer frase completa dita pelo repórter, como forma de demonstrar que não houve qualquer provocação que pudesse dar à conotação da suposta indução a prática delituosa.

Quando alguém insidiosamente induz outrem à prática de um crime com a finalidade de surpreendê-la na flagrância da execução se está diante de um crime impossível face o flagrante preparado. Se o Estado, por meio da sua polícia, não pode induzir outrem a praticar um crime com a finalidade de prendê-lo, certamente o jornalista também não pode induzir empresários a oferecerem dinheiro para desmascarar o que chamaram de mundo da propina, da fraude e da corrupção.

A doutrina portuguesa segue este referencial, havendo quem considere a atuação do agente provocador não apenas antiética, mas também criminosa, uma vez que inescapavelmente haverá, da parte do agente, a intenção consciente de realizar a conduta típica, fazendo nascer o delito que não ocorreria não fosse sua intervenção. Está na hora de a sociedade pensar se quer a descoberta de supostos cometimentos de crimes pelo jornalismo investigativo a qualquer custo e com a violação de princípios constitucionais.

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