Obrigação Incorreta

Fiscalização de anúncios não cabe à mídia

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28 de março de 2012, 13h12

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) tem sido objeto de inúmeras propostas para alteração de regras relacionadas às práticas comerciais, notadamente nas seções referentes à oferta e à publicidade de produtos e serviços.

Muitas destas iniciativas mesclam propostas brilhantes com mecanismos de controle e fiscalização inadequados. Exemplo claro é aquele que veda a veiculação de anúncios, em cadernos classificados, que não incluam o preço do produto ou do serviço ofertado.

Trata-se de proposta de interesse do consumidor, sendo inegável que a indicação de preço em anúncios desta categoria representaria uma considerável economia de tempo, um instrumento de facilitação na avaliação da melhor oferta, além de vincular o proponente (proporcionando maior segurança jurídica às transações).

O que parece inadequado e descabido, porém, é a pretensão de se atribuir aos veículos de comunicação a responsabilidade pelo cumprimento e fiscalização da lei, o que seria atribuição do Poder Executivo e do Ministério Público. E o que é pior: ameaçando-os com o pagamento de multas.

Tratando-se de publicação de anúncios em caderno de classificados, o jornal serve como mero divulgador, comercializando seu espaço e levando ao conhecimento de seus leitores ofertas de terceiros, não podendo sobre elas se manifestar ou exigir qualquer alteração, desde que, obviamente, revestidas de aparente legalidade.

Cogitar-se de forma diversa seria confundir responsabilidades que não se tangenciam. Afinal, cabe ao fornecedor, e tão somente a ele, a obrigação de responder por sua oferta, que deverá estar em perfeitas condições de uso, livre de vícios e defeitos e disponível pelo valor divulgado. Nesse sentido, o CDC define claramente quem é “fornecedor”, excluindo o mero agente de publicidade de qualquer responsabilidade, conforme seus artigos 3º e 38.

E não poderia ser diferente, na medida em que a Lei 8.078/1990 foi concebida para regular a ligação estabelecida entre consumidores (assim definidos pelo artigo 2º e parágrafo único) e fornecedores (artigo 3º). Não foi por outra razão que a lei, especialmente nos capítulos da oferta e publicidade, impôs deveres ao fornecedor-anunciante (artigo 3º) e não aos veículos de comunicação, propaganda e anúncios.

Esses, portanto, os personagens desta relação, tendo o artigo 6º da Lei definindo de forma clara os direitos básicos do consumidor perante o fornecedor, não havendo qualquer previsão, tampouco definição de obrigação para que os órgãos de comunicação fiscalizem ou controlem informações sobre produtos e serviços anunciados.

Tal exigência, ainda mais se revestida das penalidades previstas nos artigos 56 e 57 do CDC, feriria princípios básicos de direito, imputando a terceiros (a mídia em geral) uma responsabilidade que não é sua, mas dos fornecedores, em primeira análise e, de forma mais abrangente, do Poder Público. Afinal:

i) O Principio da Transparência, previsto no artigo 4º do CDC, se revela na obrigação do fornecedor de prestar ao consumidor informações claras e abrangentes sobre os produtos e serviços que são oferecidos;

ii) O Princípio da Legalidade, expressado no inciso II do artigo 4º do CDC, determina a intervenção direta do Estado (leia-se: Poder Público) para proteger efetivamente o consumidor, não só para lhe garantir acesso aos produtos e serviços essenciais, como para assegurar a qualidade e a adequação dos produtos e serviços (segurança, durabilidade, desempenho).

iii) O Princípio da boa-fé, previsto no inciso III do artigo 4º do CDC, prega a comunhão de interesses dos participantes das relações de consumo, da qual os veículos de comunicação não fazem parte.

iv) O Princípio da Educação e da Informação, elencado no inciso IV do artigo 4º e no artigo 31 do CDC, e que deriva do Princípio da Transparência, obriga o FORNECEDOR a prestar “informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”.

 

Mas não é só! Exigir dos veículos de comunicação um controle sobre o conteúdo informativo das ofertas, impingindo-lhes severas sanções, representa clara afronta aos princípios constitucionais de “Livre Iniciativa” e “Livre Concorrência”, colocando representantes de categorias reconhecidamente sérias, devidamente estabelecidas e que exercem suas atividades legalmente em desvantagem em relação a aventureiros, que se lançam no mercado sem qualquer compromisso, notadamente diante do infinito alcance da rede mundial de computadores. Cite-se, a título exemplificativo, os milhares de sites com anúncios de revendas de automóveis, aonde não há qualquer tipo de controle sobre valores, qualidade, natureza, origem, propriedade e especificações técnicas dos bens.

No caso, portanto, não nos parece razoável penalizar o veículo de comunicação, com as sanções previstas nos artigos 56 e 57 do CDC, quando o único e exclusivo responsável pelo produto/serviço é o “fornecedor”.

O princípio constitucional da proporcionalidade estabelece que deva haver uma razoável correspondência entre a intensidade da sanção que se pretende aplicar e a ação que se objetiva punir. Assim, deixando de divulgar informações essenciais, que o legislador entende como necessárias ao cumprimento dos Princípios da Transparência, Boa fé, Educação e Informação, inerentes às relações de consumo, a punição deve ser aplicada àquele que deixou de retratá-las (o fornecedor) e não ao mero divulgador do anúncio.

Como exemplo, temos o Projeto de Lei 4.467 de 2001, de autoria do deputado Wilson Santos, tendo como relator o deputado Luiz Moreira e que visava acrescentar parágrafo único ao artigo 67 do CDC, determinando que incorreria na pena de detenção, de três meses a um ano, e multa, o autor de publicidade enganosa ou abusiva, bem como o órgão de comunicação, a agência de publicidade e o artista que participassem de sua realização.

O Projeto foi rejeitado, de início, pelos seguintes fundamentos, entre outros:

“(…). Note-se que, neste contexto, e como regra geral, os órgãos de comunicação participam do processo apenas comercializando seus espaços para divulgação da pela publicitária elaborada por outrem e sem qualquer envolvimento com o seu conteúdo. Neste caso o veículo de comunicação atua tão somente como divulgador da mensagem não como seu autor ou produtor. Esse papel, portanto, é diferente daquele que faz, produz, promove ou patrocina a publicidade reconhecida como enganosa ou abusiva. No meu modo de ver não é função do órgão de comunicação entrar no mérito da avaliação da fidedignidade, veracidade e correção de cada peça publicitária que venha a divulgar, mesmo porque não teria condições técnicas para fazê-lo. No máximo caberia ao órgão de comunicação, no livre exercício de sua liberdade de expressão, rejeitar liminarmente a publicidade reconhecida claramente como abusiva ou enganosa, promovendo assim uma espécie de triagem ou censura voluntária, na defesa da ética na comunicação social. (…)

Por último, ressalto que é competência do Poder Público, notadamente por intermédio dos órgãos que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, promover a defesa do consumidor e coibir os abusos nas relações de consumo.

Pelos argumentos expostos, não vejo razão para penalizar também os órgãos de comunicação, como pretendido pelo autor, quando da eventual veiculação de propaganda enganosa ou abusiva, a não ser que este a faça na condição de forncedor, autor ou patrocinador, como já prevê a legislação.

Assim voto pela rejeição do Projeto de Lei 4.467, de 2001, no que concerne ao campo de competência desta Comissão”.

Posteriormente, foram apresentas emendas supressivas para excluir da proposta de penalização os órgãos de comunicação e os artistas que participassem da produção, tendo o Projeto de Lei sido arquivado em março de 2003, em razão do encerramento daquela legislatura, nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

Veja-se, ainda, que o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, que apesar de não ter força de lei, é tido como importante balizador em assuntos desta natureza – sendo reconhecido por toda a sociedade por seu esforço em manter o justo equilíbrio entre a proteção: i) aos direitos dos consumidores, ii) à leal concorrência e iii) à liberdade de criação intelectual – prevê as hipóteses em que o veículo poderia recusar a publicidade, não se encontrando entre elas a divulgação de produtos ou serviços sem a indicação de preço.

A nosso ver, portanto, o máximo que se poderia exigir dos veículos de comunicação é que, instados a tanto e por autoridades competentes, forneçam os dados do anunciante para eventual apuração de infração legal.

Afinal, sendo a defesa do consumidor a finalidade de inúmeros projetos de Lei apresentados às casas legislativas, cabe ao Poder Público, através dos órgãos que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (o Ministério Público inclusive) a atribuição de fiscalizar e exigir o seu cumprimento e não, por via transversa, obrigar/ameaçar terceiros, através de severas sanções, que nada tem com a relação entre proponente (fornecedor) e interessado (consumidor).

Trata-se de iniciativas despropositadas, já que atribuem um poder de fiscalização indevido ao particular, notadamente aos veículos de comunicação sérios, que estão devidamente estabelecidos e exercem regularmente as suas atividades, sendo, nestas condições, muito mais fácil localizar e puni-los, beneficiando-se, sem razão para tanto, o verdadeiro responsável pela ilegalidade – o fornecedor-anunciante, autor da oferta publicada.

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