Direito & Mídia

A corregedora Eliana Calmon e os moinhos de vento

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28 de março de 2012, 12h35

Spacca
A entrada do apartamento da ministra Eliana Calmon em Brasília mostra enfileirada uma dezena de pequenas imagens de santos barrocos, conforme se fica sabendo ao folhear as sete páginas do perfil escrito pela jornalista Daniela Pinheiro e publicado na revista Piauí deste março de 2012. No dia 8 desse mesmo mês, consagrado às mulheres, a ministra esteve no programa matutino da TV Globo Mais Você, falando também de seu livro de culinária e dando uma receita da torta mousse de chocolate.

Na véspera do feriado da Proclamação da República do ano passado, Eliana esteve no centro de Roda Viva, programa da TV Cultura comandado pelo jornalista Mário Sérgio Conti. Durante quase uma hora e meia a ministra discorreu sobre a crise provocada por sua expressão “bandidos de toga” e sobre a necessidade de transparência e de mudar uma cultura de dois séculos de ausência de controle.

Numa conversa um dia antes da participação da ministra no programa matutino da Globo, uma especialista em comunicação no Judiciário de Brasília comentou que se Eliana Calmon Alves tivesse interesse em entrar para a política, sem dúvida iria longe, tamanho é o prestígio e o apelo popular dessa ministra “sem papas na língua”. Contava a especialista que, ao terminar a gravação de um programa, todos os técnicos, câmeras, diretor de TV, maquiador, iluminador e produtor, formaram fila para fotos ao lado da juíza. Algo que tem sido pouco visto no âmbito da Justiça, mas acontece, como no caso do juiz Fausto De Sanctis, do ministro Joaquim Barbosa e do quase esquecido procurador da República Luiz Francisco. Em geral, magistrados querem distância, como se constatou no caso do presidente do STJ que descontrolou-se com um estagiário por estar próximo demais na fila do caixa eletrônico.

“A ministra Eliana Calmon se define como uma batalhadora da Justiça e juíza por vocação. Critica o Judiciário, diz, pois ama a Instituição. Nascida na Bahia, começou a carreira como professora de Processo Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para onde se mudara após prestar concurso para procuradora. No meio do caminho, fez concurso para juíza federal e deslanchou a carreira. Criadora da escola da magistratura do Distrito Federal, chegou ao Superior Tribunal de Justiça em 1999, como a primeira mulher a aceder a essa instância. Nomeada coordenadora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), instituída pela Emenda 45, Eliana viajou por todo o país, ouvindo e elaborando idéias para o currículo das 82 escolas de magistratura, federais, estaduais, da Justiça do Trabalho ou Militar, espalhadas pelos mais diferentes recantos.” Esse foi o texto de introdução da entrevista que publiquei em setembro de 2006 na revista Diálogos&Debates da Escola Paulista da Magistratura (EPM), num número temático sobre para a presença feminina na Justiça.

Naquela entrevista, a ministra me recebeu na sala de estar de seu apartamento, sentando-se numa cadeira branca (a famosa Barcelona, de Mies van der Rohe) e tendo ao lado uma estátua do Quixote (sem o Sancho Pança). Não era mera coincidência. Alguns símbolos compõem um imaginário: Eliana se vê como batalhadora da causa da transparência na Justiça.

O problema talvez esteja na escolha do alvo para suas investidas. Há corrupção em qualquer área de atividade humana. Há excelentes médicos, professores, engenheiros – e há os despreparados, malandros ou golpistas. Como escreveu na década de 50 o teólogo suíço Hans Urs von Balthazar (1905-1988) no ensaio Casta Meretrix, a Igreja Católica seria a prostituta casta, uma imagem que na época rendeu calorosas polêmicas. Hoje, com os escândalos e processos vividos pela Igreja Católica, a expressão já não surpreende. Tanto que Balthazar foi nomeado cardeal pelo papa João Paulo II, um reconhecido conservador.

O alvo eleito pela ministra corregedora do CNJ rende os holofotes da mídia, pois a fraqueza humana alimenta o ibope e é assunto que a imprensa privilegia em suas manchetes (como se leu na reportagem “A morte misteriosa do desembargador Viana Santos”, publicada esta semana pela revista Veja, sobre as mazelas do ex-presidente do TJSP).

Mas, de concreto, as acusações em série da ministra apenas criam um ambiente adverso num momento em que os esforços deveriam convergir para a mudança de atitude do Judiciário. E o primeiro papel do CNJ é aumentar a produtividade, reduzir a irracionalidade do sistema e ampliar a sua transparência.

É evidente que interessa saber se a política remuneratória do serviço público segue a lei e a lógica. Mas não custa lembrar que a responsabilidade pela exação de cálculos é de quem paga, não de quem recebe. Falar em “investigação” do TJSP dá a entender que todos estão sob suspeita. E isso não deixa de criar constrangimento para tanta gente séria, trabalhadora e empenhada na mudança, conforme ouvi do desembargador Armando Toledo, diretor da EPM — figura exemplar da magistratura. Ao falar no atacado, a ministra deixa todos sob o mesmo guarda-chuva — e a Justiça não melhora nem um pouco com essa injustiça.

Criar frases de efeito não muda muita coisa, ou não muda nada. Com o agravante de desviar o foco do que realmente interessa: a modernização e a agilidade do Judiciário, para pôr fim a uma morosidade que continua disparada na frente das prioridades. Esse problema da justiça lenta se resolve com a adoção de critérios de produtividade e de eficácia, investimentos em informática e treinamento em gestão, como vem promovendo o TJ-SP e a EPM — não com polêmicas que até fazem supor interesses eleitoreiros.

O Judiciário precisa menos de posturas alarmistas e dispersivas — e mais concentração de esforços. Ao lançar farpas contra o presidente do STF, como se lê no perfil da revista Piauí, leva o que deveria ser um debate de alto teor ao nível das picuinhas. Sobrepõe uma questão pessoal ao interesse público. Ao afirmar que só conseguiria inspecionar o TJ-SP no dia em que o sargento Garcia prendesse o Zorro, Eliana comete uma boutade, mas deixa de atacar o que realmente importa e faz a diferença. Até porque ela sabe que dispõe dos meios necessários para inspecionar o que quiser e quando quiser. E o presidente do TJ-SP, desembargador Ivan Sartori, ao lançar o “desafio dos contracheques” (ele declarou que mostraria seu holerite se a ministra Eliana Calmon também revelasse o dela) apenas dá mais munição a esse quixotesco ataque a moinhos de vento.

O que importa saber são as medidas e os resultados concretos que a ministra, quase em fim de mandato como corregedora, tem a apresentar. Quantas situações de irregularidade foram esclarecidas e sanadas? Quantos passos foram dados para encerrar o que ela mesma define como dois séculos de uma cultura em que o Judiciário agiu sem controle, criando excessos de panos quentes e de corporativismo? Talvez seja hora de comparecer menos a programas de receitas e mergulhar no duro trabalho de investigar e de colocar nas grades quem realmente fez por merecer. E, sobretudo, de criar a cultura da transparência e da eficácia. Quanto à questão dos contracheques, basta tomar a decisão adotada pela Prefeitura da cidade de São Paulo – medida que foi bombardeada com ações judiciais. Hoje, os valores brutos de todos os contracheques da administração paulistana são publicados online, no site “De olho nas contas”. É questão de querer mudar. E mudar.

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