Consultor Tributário

Administração tributária deve resgatar democracia

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

28 de março de 2012, 9h42

Spacca
Para que o princípio do Estado Democrático de Direito, em nosso país, possa ganhar concretização e ser alçado à condição de máxime princípio constitucional, infelizmente, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Em matéria tributária, a realidade tem sido preocupante, pois aonde o império da legalidade deveria ter prevalência e centralidade, mais e mais, vê-se a erosão continuada dos valores democráticos. E não haverá Estado Democrático de Direito onde a democracia não seja uma prática permanente e contínua dos poderes, dos órgãos e das autoridades, tanto mais quando se trata do maior compromisso republicano, que é o pagamento e adequado emprego dos “tributos”.

É urgente o resgate da efetividade do papel da democracia no exercício dos poderes e especialmente na criação e aplicação das leis tributárias. Nos últimos tempos, a democracia, no Brasil, parece ter perdido muito dos seus significados de base. Uma ironia, pois o princípio do Estado Democrático de Direito cobra justamente o seu oposto, que é o permanente esforço das instituições pela sua afirmação. O “direito dos juízes” parece substituir, progressivamente, o “direito dos parlamentos” no sistema de fontes normativas; os precedentes de há muito deixaram de ser fonte consuetudinária para assumir a condição de fonte primária.

A Administração, por sua vez, assumiu perante o legislativo uma velada exclusividade de iniciativa das leis tributárias e suas propostas de leis ou medidas provisórias cruzam o processo legislativo incólumes, sem mutações significativas, numa espécie de “temor reverencial” que as fazem quase intocáveis. E quando refletimos sobre o que ocorre na edição de atos normativos administrativos, como no caso das portarias e instruções normativas, no processo judicial ou no administrativo, creio que os excelentes artigos dos colegas Gustavo Brigagão, Igor Santiago e Roberto Duque Estrada foram marcantes em apontar, com precisão, as consequências de uma sentida ausência de princípios cuja fundamentação deflui da democracia ou da separação de poderes.

Todo aquele que se dedica ao estudo ou à prática dos tributos deve ser um ardoroso defensor da democracia e perseguir continuamente seu pleno exercício em todas as suas etapas: instituição, arrecadação, fiscalização ou cobrança. Democracia não é termo desprovido de conteúdo, mas a própria essência do constitucionalismo.

A busca pelo aperfeiçoamento da burocracia tributária segundo os valores da democracia, sem dúvidas, demanda tempos de promissora renovação, pela integração do cidadão aos atos e ao cumprimento das funções da “administração tributária”.

A administração tributária do Estado democrático de Direito tem que ser participativa, sem redundância, da qual o contribuinte deva se sentir parte, o que se impõe cada vez mais, até pelo modo como a legislação tem transferido responsabilidades e quase todo o dever de interpretar e aplicar normas tributárias antes de qualquer atuação de autoridades fiscais, como se vê nos lançamentos por homologação, procedimentos de compensação de tributos, regimes especiais vários, livros e notas fiscais eletrônicos e tantos outros mecanismos de obrigações acessórias.

Lamentavelmente, a democratização ficou apenas nos “deveres”, pois nos “direitos” não é bem de avanços que se trata. Ora, essa exagerada atribuição de “deveres”, com mínima ou nenhuma atuação prévia da Administração deve vir cumulada com “direitos” reconhecidos de uma fiscalidade democrática.

Não se pode conceber como “democrática” a conduta frequente das administrações de atirar o contribuinte à própria sorte nos excessos de interpretação e aplicação da complexa legislação fiscal sem um adequado e eficiente sistema de atendimento ao contribuinte, para solucionar suas dúvidas, aprimorar legislações secundárias, evitar conflitos. Preferível, porém, o cômodo papel de rigoroso comando e controle a posteriori, com pesadas multas, fiscalizações tão longas quanto onerosas e as mais severas consequências, sem qualquer respeito ao exame da conduta dos contribuintes, onde a boa fé, a ignorância justificada, a confiança legítima de nada valem. Há fiscais notáveis, que a tudo tentam ser atenciosos, mas a legislação não lhes permitem muito.

A argumentação para o emprego do Estado Democrático de Direito reclama, assim, a eficácia de supremacia da Constituição como parâmetro central dessa hermenêutica do Estado. Como dizia Seabra Fagundes, “administrar é aplicar a lei de ofício”. Sim, isto é certo. Mas, no Estado Democrático de Direito, a administração tributária deve atuar em cotejo obrigatório com a efetividade dos princípios constitucionais, mormente com aquele que é a base de preexistência do Estado, que é a democracia.

No Brasil, infelizmente, o sentimento de Estado nunca foi bem compreendido. Importamos dos modelos europeus e americanos quase todos os valores da tradição do État de Droit, do Rule of Law ou do Rechtsstaat, numa síntese complexa demais para as instituições nascentes da novel República e sem uma clara distinção dos regimes que os amparavam. Afora esse vício de “estrutura” e “origem”, outros nos afetavam. Os livros de Victor Nunes Leal (Coronelismo, Enxada e Voto), de Pedro Lessa, de Raymundo Faoro (Os Donos do Poder), Caio Prado Júnior (Evolução Política do Brasil) ou de Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) são clássicos relatos da descontinuidade da democracia, da harmoniosa separação de poderes e dos princípios republicanos no exercício do poder.

Ora, ao tempo que a nossa Constituição pugna por um Estado Democrático de Direito, no Preâmbulo e no seu artigo 1º, não se pode apregoar modelo diferente, cabendo, sim, o dever de sua concretização, na feição de “Estado dos direitos”. Desse modo, não interpreta corretamente a Constituição quem não se debruce sobre qualquer um dos seus artigos munido dos mais qualificados instrumentos de compreensão do papel do Estado e seus princípios derivados. Parafraseando Neil MacCormick (Retórica e o Estado de Direito), quando afirma que “onde o Direito é estritamente observado, o Estado de Direito se estabelece”, poderíamos dizer que, no Brasil, somente quando a Constituição for estritamente observada, efetivar-se-á o Estado Democrático de Direito, mediante a previsibilidade gerada pela Constituição para a participação do “povo” na conduta da ação estatal e dos seus poderes.

A democracia é essencial à construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, pois, na sua ausência, a concentração totalitário-decisionista logra espaço no exercício do poder. Não é, pois, despiciendo o adjetivo de “democrático” ao Estado de Direito. Com ele, passa-se de um Estado meramente “formal” para um Estado “material”, pautado pela vontade da maioria, mas precipuamente pela preservação dos direitos de todos, inclusive das minorias e com proteção da dignidade da pessoa humana, com a obrigação de garantia e concretização desses direitos fundamentais. Este novo modelo de Estado, doravante, não mais definir-se-á pela sua “organização” ou “estrutura”, mas pela forma como garante e realiza os direitos que a Constituição protege.

Nesse novo modelo de constitucionalismo dos direitos do Estado democrático de Direito, a administração tributária mudou e, com ela, devem mudar seus procedimentos e a forma como seus servidores e agentes devem atuar. Não se pede menos do que cumprir legalidade com observância da Constituição. O Estado tem o dever de arrecadar tudo o que a lei o permita, mas com aplicação dos tributos e procedimentos efetivados dentro dos limites que o Sistema Constitucional Tributário impõe. Tem o dever de impor rigor no controle das obrigações tributárias, principais ou acessórias, mas deve garantir espaço para bem atender, ouvir e receber provas, solucionar dúvidas, proteger a confiança legítima, ter alternativas para soluções de conflitos de modo célere, receber sugestões e representações de contribuintes na construção de normas, dentre outros.

O foco no atendimento deve ser prioridade da administração tributária, para permitir o máximo de acessibilidade do contribuinte às informações tributárias e ao correto cumprimento das suas obrigações e deveres. Não se fala aqui do simples atendimento para cobrança de tributos, mas de segura garantia de acesso na solução de dúvidas, com difusão das leis ou atos normativos com clareza que permita máxima uniformidade e coerência. Diga-se o mesmo quanto àquelas atividades normativas com repercussão direta sobre condutas futuras, por regulamentações, critérios de provas nos atos de fiscalização, emprego de regimes especiais ou na análise das organizações de negócios ou planejamentos tributários. A adesão, praticabilidade e cumprimento espontâneo das regras serão sempre melhores quanto maior a atuação de representantes dos contribuintes, com abertura para solução de dúvidas, apresentação de sugestões e inovações que possam ser oferecidas. Não faltam exemplos de legislações ou regulamentações exitosas nesse aspecto.

Isso também é parte de um grande processo permanente de educação fiscal, ao qual todos os servidores são chamados ao dever de cumprir, com eficiência e impessoalidade, o múnus público de propiciar aos cidadãos a melhor compreensão possível da legalidade. Se a espontaneidade no pagamento do tributo devido é o valor desejado pela melhor política tributária, a Administração deve se colocar não acima, mas ao lado do cidadão para que este se sinta parte e, tanto mais, respeitado pelo cumprimento do seu agir de homus fiscalis.

Ora, cabe à administração tributária, nesse novo modelo de Estado, criar as condições para que o conjunto de deveres transferidos não gere tamanho ônus e custos elevados que inibam a atividade econômica. Em qualquer alteração de regimes tributários, os princípios da segurança por orientação das condutas tributárias, ou por realização no cumprimento das leis e aqueles específicos, da confiança legítima, da proporcionalidade e da proibição de excesso; assim como as proteções contra possíveis discriminações e o respeito à boa fé dos contribuintes, devem ser tomados como pressupostos a serem atendidos como um teste prévio de compatibilidade com a Constituição.[1]

A certeza do direito gera a desejável segurança de orientação na definição das condutas a serem observadas. E, para que esta possa ser eficiente, deve-se prover os atos normativos de clareza, precisão e congruência, como garantia de uma correta aplicação das normas jurídicas. Por isso, evitar conflitos, afastar a arbitrariedade e favorecer a adequação de condutas ao direito são as finalidades mais relevantes do princípio de certeza do direito.

Por conseguinte, do mesmo modo como na elaboração das leis a representação popular cumpre esse papel, não se pode admitir que a regulamentação de leis tributárias seja um refúgio da Administração para regrar condutas sem limites ou segundo seus critérios, como se aquelas fossem leis “em branco”. A terminologia sempre e cada vez mais ambígua ou carregada de conceitos indeterminados, as autorizações legais sempre mais generosas para abranger a realidade multifacetada e a introdução de mecanismos tributários que, ao fim e ao cabo, assomam novas obrigações acessórias ou principais, enfim, justificam o dever de a Administração submeter a inteira fase de preparação das regulamentações às críticas e contribuições dos contribuintes.

Em favor dessa nova expressão de legalidade tributária, estudos sobre a administração tributária devem acompanhar a própria renovação do Direito Administrativo. Como se observa de obras mais recentes, como as Alejandro Nieto García (El pensamento burocrático, Comares), Paulo Otero (Legalidade e administração pública, Almedina), David Duarte (A norma de legalidade procedimental administrativa, Almedina), ou, no Brasil, Gilmar Mendes, Odete Medauar, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Adilson Dallari, Carmen Lucia Rocha, Gilberto Bercovici, Ingo Sarlet, Lenio Streck ou Juarez Freitas, todos concorrem para delinear uma expressiva reformulação do modelo de gestão e de adequação entre atividade administrativa, políticas públicas e procedimentalidade segundo os ditames do Estado Democrático de Direito.

E este é o espírito da Constituição de 1988, cuja implantação do Estado Democrático na tributação ainda não se efetivou, apesar do garantismo tributário e de todo o catálogo de liberdades fundamentais que contempla. Avançar na democratização das relações tributárias é o grande desafio das reformas urgentes que se impõem à nossa legislação tributária. E este é o papel do jurista do Direito Tributário dos nossos tempos.

A procedimentabilidade democrática da tributação, de fato, cobra a participação ativa do contribuinte em todas as suas fases, não apenas como simples “pagador” de tributos, mas como destinatário e intérprete qualificado das leis tributárias.

O dever do Fisco democrático de integrar os contribuintes na etapa de preparação de atos normativos não se presta a conferir a estes qualquer privilégio, quebra de isonomia ou vantagem fiscal. O propósito é bem outro: aprimorar a qualidade normativa, evitar conflitos, tornar a legislação mais coerente com a realidade à qual se pretenda aplicar e compreender as dificuldades de cumprimento da legislação pelos seus destinatários e intérpretes imediatos, que são aqueles responsáveis pela sua observância. É assim que se compõem os valores de certeza e confiança na construção do direito tributário positivo.

De fato, a construção do Direito Tributário numa linguagem hermética e, ao mesmo tempo, repleta de termos vagos, dirigidos a uma realidade sempre mais complexa, faz ver que nem sempre haverá alguma interpretação da administração tributária em coerência com aquela dos contribuintes, na necessária complementação de tais conceitos. Diante disso, na regulamentação tributária, o contribuinte teria a oportunidade de antecipar-se com dados da realidade, superando vazios normativos ou excessos, para reduzir, tanto mais, aquelas dificuldades hermenêuticas. Portanto, o aprimoramento da regulamentação ganharia em qualidade e precisão, sem qualquer vantagem ou privilégio.

No Brasil, não se encontra institucionalizada a participação do contribuinte na formulação de atos normativos. Mas não só. Sequer existe uma atuação deste em alguma posição que oferecer sugestões normativas, assim como propostas para reformas, atualizações ou mutações dos regimes vigentes.

No âmbito federal, por exemplo, não obstante a existência da ouvidoria da Secretaria da Receita Federal, não existe qualquer atividade que confira uma posição institucional de atuação dos contribuintes, pela qual se avalie a necessidade e a conveniência de melhores serviços aos contribuintes ou que se preste a intermediar os interesses entre Fazenda Pública e contribuintes. Esta ausência nos fez sugerir a criação de uma “Representação dos Contribuintes”, cujo objetivo seria o de prover meio de acesso fácil, ágil e eficaz para encaminhamento de propostas legislativas, consolidação de sugestões e cooperação com os projetos em andamento. Também competiria a este a mediação de interesses e solução de controvérsias com o Fisco, para resolução de eventuais omissões, erros, atrasos e falhas, com vistas a melhorar a qualidade de seus serviços e o atendimento ao público em geral, para que as ações sejam mais transparentes, humanas e personalizadas. Não há como negar que a interação transparente e democrática entre a Administração e contribuintes, constitui-se hoje em uma das maiores demandas de nosso sistema tributário.

A figura do Representante dos Contribuintes tem sido adotada, com sucesso, em outros países, como na Espanha, Itália, México e Estados Unidos. França, Portugal, Áustria, Holanda, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Reino Unido, Nova Zelândia, Canadá e Austrália utilizam, com sucesso, a figura do Ombudsman, o que tem ainda como função a presença institucional nas discussões sobre inovações ou modificações de textos normativos. A inovação trazida pelo Representante dos Contribuintes, em comparação com o cargo de ombudsman ou ouvidor, é justamente a atribuição de consolidar e intermediar a defesa dos direitos dos contribuintes, ao propor alterações legislativas e procedimentais junto ao Fisco, agir em defesa de direitos homogêneos e individuas, tudo em prol da justiça fiscal, da legalidade e da eficiência do atendimento.

Nesse contexto das práticas distanciadoras do cidadão nos atos de elaboração normativa ou dos procedimentos das decisões tributárias, ainda temos muito a avançar. De fato, esse é um dos grandes vazios teóricos que vivenciamos, pois pouco foi escrito a respeito, afora os estudos antecipados por Roque Carrazza, como sua brilhante obra sobre “O Regulamento no Direito Tributário Brasileiro” e cujas críticas ainda seguem atuais; ou aqueles mais atuais, como os de Antonio Amendola, no seu: “Participação do Contribuinte na Regulamentação Tributária”, em edição recente.

A legalidade tributária é dinâmica, dúvidas podem aflorar e surgirem conflitos, mas a isso a gestão deve estar atenta e agir para rapidamente inibir seu crescimento, pois nada mais caro do que gerir passivos tributários gigantescos de não recebíveis. A eficiência da Administração estará, assim, a serviço do bom contribuinte, daquele que prefere adequar sua conduta e cumprir as obrigações fiscais, observadas as liberdades e limitações constitucionais, no desejável compromisso com o pagamento espontâneo dos tributos.

Em conclusão, e como dito no início, a administração tributária da realidade principiológica do Estado Democrático de Direito não pode abandonar o contribuinte à própria sorte na interpretação de leis obtusas, lacunosas e de terminologia sempre cada vez mais opaca, e, com isso, fomentar o litígio como fonte de arrecadação adicional, a título de multas e juros. Esclarecer as leis e procedimentos que institui é o mínimo que se espera de um Fisco democrático. E, de fato, este é o mínimo de boa fé do Estado fiscal: não induzir conflito, mas preveni-lo e garantir soluções rápidas, não dispendiosas e imparciais.


[1] Para maiores considerações, a nossa obra: Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, 758 p.;

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