Justiça Tributária

A guerra fiscal e o terrorismo tributário em São Paulo

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

19 de março de 2012, 10h31

Spacca
Determinado profissional constituiu uma empresa através da qual presta serviços a clientes estabelecidos em todo o território nacional. Pela natureza dos serviços eles são prestados nos estabelecimentos dos clientes.

O profissional resolveu sediar sua empresa em um município próximo à capital por várias razões. Uma delas porque nesse município cobra-se um ISS menor. Em qualquer país civilizado permite-se que a pessoa procure legalmente pagar menos imposto. A empresa só precisa de um local onde receba correspondência e recados e onde, eventualmente, possa o executivo encontrar-se com seu contador (que é autônomo). Depois que inventaram computador, internet e celular, não se precisa mais do que isso.

Para não sofrer dupla tributação, tentou o empresário fazer a inscrição num cadastro criado pela prefeitura de São Paulo, com o qual ela registra as empresas que prestam serviço na capital mas são sediadas em outros municípios. O pedido de inscrição foi indeferido com alegações absurdas: o IPTU do prédio estava em nome de outra pessoa e não seria permitida sede de empresas em escritórios virtuais.

A questão do IPTU é ridícula. Se isso fosse válido, qualquer empresa só poderia instalar-se em imóvel próprio, pois se o IPTU está em nome de outra pessoa, provavelmente se trata de locação.

Mas a tentativa de impedir que alguém se instale num escritório virtual não só é absolutamente ilegal, como revela que a prefeitura paulistana pretende prejudicar deliberadamente uma atividade legítima, como tal reconhecida pela Lei Complementar 106 e pela própria legislação municipal.

Os locais onde um espaço é utilizado por diferentes empresas, que ali mantém endereço e cujo uso é pago proporcionalmente ao que se usa, é um espaço REAL, um espaço onde se trabalha de forma racional, sem desperdício, sem ociosidade. No atual regime econômico em que vivemos essa forma de trabalho deveria ser estimulada.

Vejamos o conceito de virtual como registram os dicionários:

“1. Que não existe no momento, mas pode vir a existir; POTENCIAL

2. Diz-se de algo cuja concretização é tida como certa: Meu time é o virtual campeão desse ano

3. Inf. Que existe somente como efeito de uma representação ou simulação feita por programa de computador (museu virtual; realidade virtual)

4. Fil. Diz-se daquilo que está predeterminado e que contém as condições essenciais à sua realização.

5. Suscetível de ser usado, de ser posto em funcionamento.

6. Que equivale a outro; que pode exercer as funções de outro.”

Ora, se o local existe, há pessoas trabalhando, paga-se aluguel, enfim, é um prédio onde são alugados espaços, inclusive salas, prestando-se serviços aos locatários, não se cuida de virtual no sentido de que “não existe”, ou seja, uma “representação ou simulação”. As coisas são o que são, não o nome que lhes possa ser atribuído. Pau é pau, pedra é pedra. Simples assim.

Mas ainda que se queira dar a tais espaços o nome de “escritório virtual”, tal atividade é absolutamente legal. A Lei Complementar 116 registra como sujeito à tributação os serviços de :

3.03 – Exploração de salões de festas, centro de convenções, escritórios virtuais, stands, quadras esportivas, estádios, ginásios, auditórios, casas de espetáculos, parques de diversões, canchas e congêneres, para realização de eventos ou negócios de qualquer natureza.

Por outro lado, o Decreto municipal 44.540/2004 (de São Paulo) prevê como espécie de serviços tributados a atividade de “serviços prestados mediante locação, cessão de direito de uso e congêneres”, aí incluindo (item 3.02) os serviços de “escritórios virtuais”.

Portanto, a própria legislação municipal paulistana reconhece que é lícito o uso de instalações e serviços de terceiros. Se isso fosse ilegal, não se permitiria a inscrição dos chamados escritórios virtuais, nem estariam eles sujeitos ao pagamento do ISS.

Várias empresas que tiveram negada a inscrição no cadastro em São Paulo foram à Justiça e obtiveram decisão favorável até mesmo junto ao Tribunal de Justiça. O fato de que a prefeitura ainda cria problemas com isso revela que os servidores municipais descumprem a lei e não respeitam o Judiciário. Trata-se de uma prepotência, de uma arrogância, que em nada favorecem o bom conceito que a população gostaria de ter em relação a eles. Se um servidor não obedece a lei e mesmo diante de reiteradas decisões judiciais continua insistindo no erro, alguma coisa está errada.

Ora, o artigo 37 da CF ordena que a administração pública deve obedecer os princípios de legalidade, impessoalidade e moralidade, além de outras normas. Esse mesmo dispositivo está na lei orgânica do município. Não é razoável que a municipalidade insista no erro e até mesmo procure fraudar o que foi decidido judicialmente.

Fraudar, sim! Em certo processo, diante do mandado judicial para fazer a inscrição no cadastro, colocou-se uma informação falsa:

“Pessoa jurídica desobrigada de cadastro junto à Secretaria Municipal de Finanças por determinação judicial”

Foi necessário que o advogado imediatamente pedisse ao juiz novo mandado para que o servidor, sob pena de ser processado por desobediência, registrasse a decisão verdadeira. Não é razoável supor que um servidor público não consiga entender uma ordem judicial, aliás muito simples, muito clara. A decisão era para fazer a inscrição, não para dizer que ela estava desobrigada. Até porque se desobrigada estivesse não teria pedido nada. Essas atitudes são típicas de uma ação terrorista.

Qualquer contribuinte tem o direito de estabelecer-se onde melhor lhe parecer. Não existe, por outro lado, nenhum impedimento para que um município cobre alíquotas menores, dentro dos limites da lei complementar (não abaixo de 2%) ou conceda incentivos de outra natureza (internet gratuita, por exemplo) que possam servir de atrativo para novos contribuintes.

Se os incentivos ou estímulos fiscais são legítimos, não faz sentido apelidar-se tais mecanismos de guerra fiscal. Não há guerra nenhuma. Há, pura e simplesmente, o exercício de atividades de competência do município, com o objetivo de aumentar sua arrecadação ou pelo menos atrair novos negócios para seu território. Isso não é guerra, mas apenas uma política tributária destinada a promover o crescimento do município.

Se não há guerra, há terrorismo. Mas este é praticado pelo fisco municipal, quando cria exigências absurdas e atribui a empresários que estão tentando trabalhar o rótulo de sonegadores ou fraudadores. Fixar sede onde a tributação é menor é direito de qualquer empreendedor. Digo mais: é dever, nesta época de corte de custos, de forte concorrência. Sonegação é crime. Portanto, ao afirmar que uma pessoa é sonegador, comete o servidor público o crime de calúnia.

Vem se tornando comum que empresas coloquem sua sede em município da região metropolitana da capital, locando imóvel e instalações, inclusive móveis pertencentes a terceiro, que lhes presta ainda serviços de recados, recebimento de correspondência, etc. – Isso é permitido e aconselhável, como forma de redução de custos. Apesar disso, pretende o fisco municipal que o contribuinte tenha um local próprio, onde possa ser localizado sempre, onde, segundo já afirmou o fisco em certo processo, demonstre sua presença física no local”!

Nos dias atuais telefones celulares fazem, recebem e transferem ligações de e para qualquer lugar do planeta. Computadores portáteis de pequeno porte transmitem dados (inclusive voz e imagem) com o mesmo alcance mundial. Assim, não resiste à menor análise lógica que o contribuinte demonstre sua presença física no local” onde tem sua sede para que possa cadastrar-se na repartição fiscal e desenvolver suas atividades. Tais avanços tecnológicos é que permitem pagar tributos pela “Internet” e, no Judiciário, realizar audiências por “vídeo conferência” !

Pessoa jurídica não tem “presença física”, mas presença legal. Não existe nenhuma lei que obrigue os sócios de uma empresa a permanecer “fisicamente” na sua sede, especialmente quando prestadores de serviço. Se isso fosse legal, não haveria médicos, mecânicos, técnicos em informática, professores, etc., atendendo a domicílio, pois eles deveriam ficar apenas na sede de suas empresas, quando estivessem associados a outros colegas!

Os prestadores de serviço não podem se tornar reféns da interpretação distorcida e maliciosa de servidores públicos. Também não podem procurar soluções ilegais, uma vez que sempre existe o risco de se verem envolvidos em ato delituoso, com implicações vergonhosas e muito dispendiosas.

A diferença entre guerra e terrorismo é simples: na guerra há regras e limites, enquanto no terrorismo isso não existe e vale apenas o salve-se quem puder.

A única solução para enfrentar essa guerra ou esse terrorismo está na propositura das ações judiciais, na procura da defesa junto ao poder judiciário e também na divulgação dessas questões ao maior número possível de pessoas. Cada sentença favorável ao contribuinte é um degrau que se constrói em direção à justiça e um aviso que se dá ao servidor público de que existe solução para os problemas que ele quer criar. Cada acomodação, cada submissão a exigências absurdas e ilegais do fisco é um tropeço que nos leva à servidão e nos coloca genuflexos diante de autoridades que se imaginam nossos senhores, muito embora seus salários sejam pagos com nossos impostos.

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    é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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