Embargos Culturais

Lon Fuller e o caso dos exploradores das cavernas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

18 de março de 2012, 8h57

Lon Fuller é conhecido pelos estudantes de Direito no Brasil a partir tradução que Plauto Faraco de Azevedo fez do ensaio O Caso dos Exploradores de Cavernas (The Case of the Speluncean Explorers). Trata-se de texto originariamente publicado na revista da faculdade de Direito de Harvard, que Plauto Faraco verteu magistralmente para o português e que tem empolgado alunos de Introdução ao Estudo do Direito, especialmente porque o imaginário case method promove encontro com o juspositivismo, com o jusnaturalismo, com o realismo jurídico e com circunstância tenebrosa que exige reflexão.

Em caso localizado no ano de 4300, do qual nos separamos do mesmo modo como nos distanciamos da Grécia Clássica, Fuller nos coloca em face da universalidade dos problemas da Justiça. O enredo é simples.

Cinco membros de uma sociedade espeleológica exploram uma caverna quando alguns deslizamentos de terra vedaram a saída. Não havia como deixarem o local. As autoridades foram comunicadas, novos deslizamentos ocorreram, esgotaram-se recursos da sociedade espeleológica, de subvenções públicas e legislativas. Dez operários morreram na tentativa de resgate dos exploradores. Mantendo comunicação por rádio os exploradores foram informados que o resgate ainda demoraria cerca de dez dias, caso não ocorressem mais deslizamentos e se tudo corresse bem.

Não havia mais alimentos. Roger Whetmore, um dos exploradores, sugere que se fizesse um sorteio, e que o perdedor fosse devorado pelos demais. O remédio inusitado poderia salvar a vida de parte do grupo. Médicos, autoridades e sacerdotes não se manifestaram em face da consulta colocada por Whetmore, pelo rádio, um pouco antes que o aparelho deixasse de funcionar, por falta de pilhas.

Whetmore teria se arrependido da proposta. No entanto, não obstou que a sorte fosse tirada, e que um dos outros membros do grupo em seu nome lançasse seus dados. Whetmore foi o perdedor. Sua carne salvou a vida dos outros exploradores.

Depois de resgatados e conduzidos para um hospital, onde se recuperam física e psicologicamente, os exploradores foram indiciados por crime de homicídio e em seguida foram condenados em primeira instância. Um conselho de jurados optou pela culpabilidade e o juiz fixou a pena na morte pela forca.

O conselho de jurados protocolou petição ao chefe do Poder Executivo, pedindo comutação da pena, indagando pela fixação da mesma em seis meses de prisão. O próprio juiz que condenou recorreu do próprio ato, também para o chefe do Executivo, que detinha competência para rever a decisão, na forma como foi outorgada. Concomitantemente, os quatro condenados recorreram da decisão de primeira instância para a Suprema Corte de Newgarth, local imaginário que abrigou os interessantes normativos que o texto narra. Truepenny, juiz presidente da alta corte manteve a decisão originária, na crença de que o Executivo atenderia o pedido de clemência. Entendeu que a decisão a quo era sábia e que havia se julgado da melhor maneira possível. É um conformado.

O primeiro a votar, juiz Foster, é um jusnaturalista extremado. Criticou o presidente do tribunal e afirmou que o que se julgava não era o caso em si, porém, o que estava em jogo era um juízo de valor que se fazia das leis do Estado. Foster acredita que se o tribunal condenar aos exploradores o tribunal será condenado pelo senso comum da comunidade. Foster vê inocência nos réus.

Não há possibilidade de aplicação de um direito positivo estrito, porque a situação aflitiva da caverna não reproduziu as condições necessárias para a utilização de regras positivadas. Além do que, é o território que qualifica a incidência de uma determinada jurisdição. Não havia ordem moral ou territorial para que o direito positivo fosse então aplicado.

É que a decisão fora tomada pelos exploradores em momento em que se encontravam muito distantes da ordem jurídica que agora se lhes pretendia aplicar. O fato de que estavam sob a terra e a posição subterrânea indicavam impossibilidade de comunicação normativa. Segundo Foster, a lei não se aplicava aos espeleólogos, naquela circunstância.

Além do que, se a sociedade reputava que fora justa a perda de dez homens que tentaram salvar os cinco exploradores, por que não seria também justo que se perdesse um homem para que se salvasse a vida dos demais quatro exploradores? O Direito, segundo Foster, exige uma exegese racional. A legítima defesa era consagrada pela jurisprudência da corte e no caso era recurso analógico plausível. Foster inocentou os exploradores.

Tatting em seguida tomou a palavra e criticou Foster. Opôs-se ao direito natural, ao qual teceu duras críticas. Segundo Tatting, os criminosos teriam agido intencionalmente, após muita discussão. Tatting afirmou que se houve dispositivo legal específico relativo ao canibalismo, a questão seria diferente e então ele poderia condenar os réus. Tatting absteve-se de votar, invocando que não havia precedentes. Pronunciou o seu non liquet.

Em seguida vota o juiz Keen. Positivista até a medula, Keen condena os réus, mantendo a decisão da corte de primeira instância. Como opinião pessoal, consignou que os exploradores já haviam sofrido demais e que deveriam ser perdoados. Porém, a assertiva representava uma opinião pessoal e Keen insistia que deveria julgar de acordo com a lei. Não queria discutir o que era justo, injusto, bom ou mau. Deveria, no teor de seu voto, segundo a imaginação de Fuller, definir a correta aplicação do texto legal, que previa pena de morte para a prática de homicídio. Ao insistir que ao judiciário cabia tão somente a fiel aplicação da lei escrita, Keen implementou um juízo de subsunção e votou pela mantença da sentença originária, condenando os réus.

Handy Jr. proferiu o último voto, inocentando os réus e reformando a decisão de primeira instância. É o representante do realismo jurídico. Apela para uma sabedoria prática que deve ser aplicar à realidade humana. Insiste que o judiciário não pode perder o contato com o homem comum. Lembra que a função do formalismo é instrumental. Pondera que a opinião pública quer a liberdade dos réus. Argumenta que a opinião pública deve ser levada em consideração. Objetiva a aplicação de um senso comum.

Com o empate, duas condenações (juízes Keen e Truepenny) e duas absolvições (Foster e Handy Jr.) e uma abstenção (Tatting), o juiz presidente incita Tatting a se manifestar, e se for o caso a mudar de opinião. Friamente Tatting mantém sua posição e a sentença de primeira instância foi confirmada: os réus serão enforcados.

A instigante prosa literária de Fuller problematiza questão central na Filosofia do Direito. Opõe positivismo e jusnaturalismo, realismo jurídico e conservadorismo, este último modelo marcado pelo voto de Tatting, que protagonizou enervante retórica da indecisão, decidindo sob disfarce de falta de decisão. A questão da relação entre moral e direito é nuclear no pensamento de Fuller, que verticalizou o problema em livro conhecido, A Moralidade da Lei-The Morality of Law.

 O texto acendeu polêmica com H.L.A. Hart, expoente do positivismo da tradição anglo-saxônica. Fuller tem como base a ideia de que não haveria necessidade do direito em um sociedade de anjos (in a society of angels there would be no need for law) (FULLER, 1979, p. 55). Fuller dois modelos de moralidade jurídica, uma interna e outra externa, cujo conflito sugere a utilização de um juízo pragmático ou de um cálculo econômico (cf. FULLER, 1979, p. 44). A utilização de normas, para Fuller, é circunstância prenhe de obviedade, é o primeiro objetivo de um determinado sistema (cf. FULLER, 1979, p. 46).

Comandos abstratos colocam problemas que Fuller imputa à questão da eficácia das normas, e nesse sentido Fuller contraria Austin, para quem todo ato governamental seria dotado de legitimidade normativa (cf. FULLER, 1979, p. 49). A clareza da norma, para Fuller é ingrediente fundamental indicativo de legalidade (cf. FULLER, 1979, p. 63). Fuller retoma tema analítico e discursa sobre antinomias, sobre contradições nos comandos normativos, apontando para a dificuldade fática de se encontrar uma contradição efetiva (cf. FULLER, 1979, p. 65).

Fuller chama a atenção para leis que comandam o impossível, o que reputa como circunstância absurda, típica de legislador insano ou de ditador mefistofélico. No entanto, o modelo jurídico norte-americano poderia substancializar tal hipótese, o que Fuller condena mediante figura metafórica de um ilimitado poder de se produzir norma legal sem legalidade (cf. FULLER, 1979, p. 71).

A moralidade interna da lei, para Fuller, deve evitar contradições e normas de impossibilidade fática, bem como deve contar com a constância da lei ao longo do tempo, o que seria indicativo de estabilidade (cf. FULLER, 1979, p. 79). Esta moralidade interna do direito exige também perfeita congruência e convergência entre a determinação legal e a ação governamental (cf. FULLER, 1979, p. 81).

A moralidade interna da lei, para Fuller, é menos uma moral de obrigação e mais uma moral de aspiração (cf. FULLER, 1979, p. 104). Fuller ilustra seu pensamento com interessante passagem de sabor histórico, que retirou dos anais do direito inglês. Henrique VIII teria outorgado à Faculdade Real de Medicina de Londres o poder de licenciar e de regulamentar a prática de medicina na capital da Inglaterra. O Parlamento inglês havia confirmado a permissão.

A faculdade poderia julgar casos de prática médica sem licença, aplicar multas e penas de prisão. O resultado financeiro das multas seria dividido entre o rei e a faculdade. Thomas Bonham, formado em medicina pela Universidade de Cambridge, passou a clinicar em Londres sem a requerida autorização da Faculdade Real de Medicina. Foi preso, julgado e multado por esta faculdade. Protocolou ação invocando que a faculdade não tinha competência para julgá-lo e prendê-lo (cf. FULLER, 1979, p. 99).

Bonham ganhou a causa, pois se decidiu que, não obstante a autorização do rei e do parlamento, não havia como a faculdade exercer todos os papéis ao mesmo tempo, de magistrado e de acusador, de parte e de interessado. Trata-se de modo indireto de controle de constitucionalidade, sem que apelemos para uma leitura do direito antigo com os olhos contemporâneos.

A incongruência entre a ação governamental e os objetivos que devem dar os contornos das normas jurídicas ficou demonstrada, evidenciando-se a inexistência de uma moralidade interna do conteúdo normativo que se discutia (cf. FULLER, 1979, p. 100).O realismo jurídico em Lon Fuller é marcado pela busca de uma necessária relação entre moralidade e normatividade. Fuller desenha o conceito de moralidade interna da lei, como conector desta com a moral social e com a realidade complexa que dá condições à experiência do direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FULLER, Lon. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1979.

FULLER, Lon. O Caso dos Exploradores de Cavernas. Tradução de Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993.

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