Corte Reformulada

Judiciário tem o dever de ouvir opinião pública

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  • Bruno Vinícius Da Rós Bodart

    é juiz mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Professor convidado da pós-graduação da FGV-Rio.

17 de março de 2012, 9h30

Em 16 de fevereiro de 2012, o povo brasileiro respirou aliviado com as alvíssaras de um julgamento histórico: o Supremo havia validado a denominada Lei da Ficha Limpa, expungindo da política brasileira, ao menos por certo tempo, candidatos notoriamente incapazes de fazer bom uso da coisa pública.

A decisão, que representa verdadeira revolução no panorama eleitoral brasileiro, não agradou a todos. Alguns entendem que a Corte deveria ser composta de onze nefelibatas, sem acesso a jornais e demais veículos de comunicação, quase que cobertos pelo véu da ignorância (para usar a expressão de John Rawls, no seu clássico “Uma teoria da justiça”). Sob o pretexto de proteger a Constituição, pugnam pelo desenfreado exercício da atividade contramajoritária – agora parafraseando outro autor estadunidense, Alexander Bickel –, transformando um Poder que, como todos os outros, deveria ser constituído “pelo povo e para o povo”, em outro, moldado para agir sem o povo e, quiçá, contra o povo.

Semelhante visão, que, numa matiz tocquevilliana, quer uma magistratura aristocrática, vem, felizmente, sendo empurrada para a escuridão, num movimento democrático contínuo que é observado não apenas no Brasil, mas também em diversos outros países.

Recentemente, Cass Sunstein, renomado autor norte-americano e integrante do Governo Obama, publicou um trabalho denominado “A Constitution of Many Minds”, no qual constatou que as dificuldades contramajoritárias, na maior parte dos casos, não são tão difíceis assim. A Suprema Corte dos Estados Unidos raramente julga em desacordo com a interpretação constitucional radicada na opinião dos populares, o que se deve, de acordo com Sunstein, a duas principais razões.

A primeira é consequencialista. A prudência é um elemento ínsito à atividade judicante, que deve, em última análise, promover a paz social. Se um julgamento tem relevância suficiente para causar graves efeitos para a ordem social, ou mesmo individual, esses efeitos devem ser considerados. Sustein se vale da seguinte metáfora: os juízes devem decidir como acharem apropriado, mesmo que os céus venham a cair; porém, se a possibilidade de os céus caírem for real, talvez os juízes não devam adotar a solução que entendam correta.

A segunda razão é epistêmica. Não se deve, numa percepção lúdica, acreditar que o magistrado é como aquele folclórico velho monge, no alto de uma montanha, a que os camponeses recorrem na firme crença de obter a resposta para qualquer questão. O juiz, em razão da falibilidade humana, é incapaz de ter a certeza da resposta correta para todas as causas postas à sua apreciação. Nos casos duvidosos, intensas manifestações públicas podem munir o julgador de um importante indício sobre a correção do seu entendimento. Afinal, a depender da força do movimento popular, nem a Constituição será páreo acaso uma revolução logre êxito em estabelecer uma nova ordem.

A razão epistêmica envolve o que Sunstein denomina de “humildade judicial” (judicial humility), e ganha importância sempre que se encontram em jogo questões cotidianamente enfrentadas pelos populares, atinentes à moralidade ou fatos rotineiros. Diante de querelas eminentemente técnicas, científicas ou outras questões alheias ao conhecimento da maior parcela dos cidadãos, confere-se menor relevo à opinião pública. Também é relevante averiguar se a crença do povo deriva de uma aspiração legítima e adequadamente informada, ou se é fruto de uma influência tendenciosa sistemática, seja da mídia ou de fatores culturais. Não se deve ignorar, ainda, que muitas pessoas podem apenas estar “seguindo a corrente”, sem se importar com as verdadeiras ideologias que movem tal ou qual concepção. Tudo isso deve ser considerado.

Por óbvio, não se prega aqui a barbárie. O influxo democrático na Corte Suprema não deve vulnerar, sem qualquer parâmetro ou razoabilidade, direitos fundamentais. E nem se pode alegar que o Supremo Tribunal Federal venha faltando com o mister de proteção das minorias: basta ver o recente julgamento da Lei Maria da Penha, em que foi demonstrada curial preocupação com os direitos das mulheres. Há diversos outros exemplos recentes, que não comportariam adequada apreciação (ADI 4.277, ADPF 132, ADPF 187, etc.).

Assistimos ao advento de um novo Supremo. A escultura “A Justiça”, que adorna a Praça dos Três Poderes, representa bem a Corte reformulada: apesar dos olhos vendados, situa-se no meio do povo e não pode deixar de ouvir a voz das ruas. E a frase do Ministro Luiz Fux, no julgamento da Lei da Ficha Limpa, no último dezesseis de fevereiro, é um resumo do que deve ser a sociedade aberta de intérpretes da Constituição: a opinião pública não pauta o Judiciário, mas este tem o dever de ouvi-la.

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