Ideias do Milênio

Depois da crise, a incerteza é o único consenso

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16 de março de 2012, 8h02

Entrevista concedida pelo professor e geógrafo inglês David Harvey à jornalista Elisabeth Carvalho, do programa Milênio, da Globo News. Feita originalmente em abril de 2010, a entrevista foi reprisada na semana passada. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia a transcrição da entrevista:

No debate sobre os rumos da economia mundial nesta segunda década do século 21, a incerteza parece ser o único consenso. As crises, imprevisíveis, se mostram cada vez mais severas e frequentes. O epicentro da produção vai se deslocando rapidamente, os países industrializados se desindustrializam, mergulhados no círculo vicioso da dívida e dos cortes nos gastos sociais, e as rédeas frouxas sobre o capital financeiro não avalizam um futuro melhor do que o passado da primeira década. É possível manter taxas de crescimento indefinidamente ou estamos diante de uma encruzilhada em que o desenvolvimento terá que ser repensado?

Esta pergunta foi formulada há dois anos a um pensador com voz divergente da ortodoxia dominante na economia contemporânea: o marxista inglês David Harvey, que acabara de escrever seu último livro, O Enigma do Capital. Harvey foi taxativo: o cenário de 2010 era apenas um pequeno ensaio do que estava para acontecer em função do modelo que prevaleceu na economia mundial nos últimos 30 anos.

Geógrafo com formação em Cambridge, especialista em sociologia urbana, professor emérito da Universidade de John Hopkins e ainda hoje lecionando na City University de Nova York, Harvey é um dos mais respeitados intelectuais dos Estados Unidos e da Inglaterra – nos salões da academia e nas ruas – pelo rigor teórico de suas ideias sobre a compressão do tempo-espaço que vem acelerando progressivamente o ciclo de rotação do capital.

O livro de Harvey acaba de chegar ao Brasil, com dois anos de atraso, mas o tempo parece provar que seu diagnóstico continua atual. Como atual continua sendo a entrevista que o Milênio reprisa agora, onde expõe seu esforço para decifrar o enigma e nos revela a sua utopia.

Elisabeth Carvalho – O senhor vê o desenvolvimento capitalista como um ponto de inflexão no qual o crescimento de 3% é cada vez menos possível sem as ficções dos mercados de capitais e das transições financeiras. No curto e médio prazos, o que podemos esperar?
David Harvey – Acho que já vimos quais são os sinais e quais são as consequências. Acho muito significativo que, ao longo dos últimos 30 anos, boa parte dos investimentos não tenha ido para a produção, mas para ativos e valorização de ativos, como alugueis de terras, preços de imóveis, até mesmo para o mercado de arte. E, obviamente foram para ações e quotas de empresas, e o setor financeiro inventou várias inovações que permitem que se ganhe dinheiro jogando com dinheiro. Em outras palavras, nos últimos trinta anos, vivemos num sistema muito propenso a crises, e elas quase sempre diziam respeito a valores fictícios, sendo as dívidas, em especial um dos maiores deles. Muitas das crises foram crises urbanas, pois grande parte dos investimentos urbanos é especulativo. Dessa vez, foi a crise das hipotecas, da habitação, e continua nesse caminho, com a crise de Dubai, por exemplo, pelos investimentos no mercado da construção. De certo modo, eu diria que isso é um aperitivo do que está por vir, por causa da maneira como as crises se espalharam pelo mundo. Elas se espalharam cada vez mais rápido e se tornaram mais profundas, acabando por se tornar mais globais. É provável que esse padrão se repita, a menos que haja uma reconfiguração radical do sistema capitalista.

Elisabeth Carvalho – Mas o senhor disse que não resta muito espaço para a absorção dos excedentes do capital.
David Harvey – Exato.

Elisabeth Carvalho – Isso é um problema.
David Harvey – Isso é um problema que começou a ser sentido nas décadas de 1980 e 1990. Acho que por isso esses excedentes começaram a ir para os mercados fictícios, porque não encontraram áreas para se expandir. No século 19, os ingleses tinham excedentes de capital e havia vários lugares onde investi-los: Argentina, África do Sul e boa parte foi para os EUA. Eles não tinham problema para absorver esse excedente, pois havia vários lugares onde colocá-lo. A China se integrou à economia global, a União Soviética e o bloco soviético se integraram, hoje a Índia e a Indonésia também se integraram, e nos perguntamos para onde o excedente do capital pode ir. Há algumas áreas da África e zonas remotas da Ásia que ainda não foram totalmente colonizadas ou integradas, mas não é como era no século 19, quando se tinha o mundo todo para brincar.

Elisabeth Carvalho – Mas vamos voltar a esse ponto de inflexão e tentar compreender, explicar melhor, o crescimento das chamadas economias emergentes que incluem o Brasil e, é claro, principalmente, a China.
David Harvey – O excedente de capital pode ser absorvido de duas maneiras, no que se relaciona à expansão geográfica. Uma das maneiras é achar um espaço e dizer: “Esse mercado será nosso”. Foi o que a Inglaterra fez com a Índia no século 19. Eles disseram: “Esse mercado será nosso”. E destruíram a indústria indiana. Com isso, transformaram a Índia em seu maior mercado, onde vendiam seus produtos. A outra maneira de ter o excedente de capital absorvido é exportando o capital. O capital se transfere para certo lugar e dá início a novas indústrias. A China é um caso muito interessante, bem diferente da maneira como os britânicos trataram a Índia. O capital se transferiu para a China e criou novas indústrias. Por isso, a China produz muito. Mas, por produzir muito, ela também demanda muito do resto do mundo. Então, por exemplo, as economias latino-americanas, têm tido esse crescimento benéfico e alto por causa do comércio com a China. Porque a China demanda uma imensa quantidade de matéria-prima, alguns produtos semiacabados, máquinas e tudo isso, e o eixo do comércio latino-americano passou dos Estados Unidos para a China, como resultado. Essa forma de expansão geográfica se tornou muito mais importante nos últimos 30, 40 anos do que a utilizada na Índia. Os países em desenvolvimento acabaram se tornando produtores. O Brasil é um produtor, e a China, é claro, é um produtor imenso. Grande parte da produção se transferiu para o México, se transferiu para a Indonésia. A produção se transferiu para diferentes partes do mundo. Como resultado disso, boa parte do que era o centro do capitalismo acabou se desindustrializando. Em boa parte dos EUA, a indústria desapareceu, assim como na Inglaterra e na Alemanha. Ela foi deslocada. É um modelo de expansão geográfica bem diferente, que não se baseia numa dominação imperialista clara, embora dependa muito das empresas multinacionais, muitas das quais estão sediadas no Norte, mas vêm para o Sul e estabelecem suas atividades produtivas no Brasil ou as estabelecem na China. Há uma piada nos EUA que diz que a GM só dá lucro na China.

Elisabeth Carvalho – Quando pensamos no futuro da China, estamos falando de um capitalismo global sem hegemonia ou estamos falando de uma nova hegemonia?
David Harvey – Eu não sei. Essa é a grande questão que se está pesquisando agora. É muito interessante estudar isso, ver até que ponto a China está começando a passar a uma posição hegemônica. Mas as reações de poder entre as grandes potências são um aspecto. Por exemplo, eles não podem desafiar o poder militar americano. Os EUA ainda têm o poder de destruir o mundo a 10 km de altitude. Não em terra. A China pode fazer isso em terra. O problema é que os EUA não conseguem manter a hegemonia na produção. Eles já perderam isso há algum tempo. Do ponto de vista financeiro, eles construíram sua hegemonia durante a década de 1990, e foi isso que quebrou agora. Então a grande pergunta é: a China conseguirá se reinserir na economia global de modo a adquirir um controle dos excedentes do capital do mundo que conseguirá diminuir o poder dos EUA? A China  é a principal credora dos EUA. Nos dois últimos anos, os chineses passaram a desenvolver seu próprio mercado interno, mas ao fazer isso, eles usaram seus bancos quase da mesma maneira como os EUA nos anos de 1990. Em outras palavras, estão perpetuando o mesmo sistema na China.

Elisabeth Carvalho – Hoje?
David Harvey – Hoje. O mesmo sistema que entrou em colapso nos Estados Unidos. Minha aposta é que a economia chinesa estará em sérias dificuldades em dez anos, porque o tipo de investimento que estão fazendo em estradas, represas, em infraestrutura urbana, em trens de alta velocidade, só se descobre se realmente é produtivo num prazo de 10 anos.

Elisabeth Carvalho – Entrando na questão da crise atual. Como o senhor disse, seu início, suas origens, estão nos passos tomados para resolver a crise dos anos 1970. O que realmente mudou desde então?
David Harvey – A grande questão da década de 1970 era o controle do trabalho, o controle capitalista da oferta de trabalho. Havia um problema no mercado de trabalho. Os salários no mundo capitalista avançado estavam relativamente altos. A força de trabalho era organizada, tinha poder político, através de partidos políticos, na Europa, e ela exercitava esse poder. Se você observar o que acontecia no final da década de 1960 e início de 1970 nos EUA, na Itália etc., vê que havia lutas sindicais acirradas, e o capital precisa disciplinar a força de trabalho. E essa disciplina foi dada de diferentes maneiras. Uma delas foi através da globalização. O capital foi levado para onde havia trabalho disponível. Outra foi através das mudanças tecnológicas. Outra, através da imigração. No início, eles acharam que poderiam resolver o problema através da imigração. Os franceses, por exemplo, subsidiavam a ida de trabalhadores magrebinos para a França. Os alemães facilitaram a ida dos turcos, os ingleses, do povo de suas ex-colônias. E houve uma enorme reforma na lei de imigração americana, em 1965, que permitiu que pessoas do mundo todo fossem para os EUA. Havia uma imensa preocupação em controlar o trabalho, porque a força de trabalho era muito poderosa. Mas na década de 1980, Ronald Reagan, Margareth Thatcher, o general Pinochet, entre outros, colocaram um ponto final no poder político dos trabalhadores. Houve uma diminuição nos salários. Como resultado disso, não se pode dizer que a crise atual tem algo a ver com o excesso de poder dos trabalhadores. A crise atual tem a ver com o excesso de poder do capital. Certo? O problema de reprimir os trabalhadores e os salários é que você vê… Os dados mostram que a participação dos salários na renda nacional, em quase todos os países do mundo, caiu. Agora, se o salário cai, há menos poder de mercado para comprar os bens que os capitalistas fazem. Então surge a questão: o que acontece com seus mercados quando você retrai os salários? Nos EUA a resposta foi: “Dê crédito a eles. Deixe que comprem a crédito.” Assim, surgiu a economia do débito, que é esse enorme negócio no qual os bancos entraram. As famílias americanas, por exemplo, triplicaram sua dívida em 30 anos. Assim, de certo modo, a queda na demanda causada pelos baixos salários foi compensada pelo aumento da dívida. Mas, quando os salários caem e a dívida aumenta, em algum momento, há o problema de como as pessoas pagarão a dívida. E isso começou a acontecer no final dos anos 1990 e também contribuiu significativamente para a crise atual.

Elisabeth Carvalho – Questionando o futuro do capitalismo, o senhor volta a Marx para explicar como o sistema tem tido sucesso em manter sempre a relação entre os sete momentos fundamentais de Marx que permitiram a transição do feudalismo. O senhor pode resumir para nós como esses sete momentos trabalham juntos?
David Harvey – A maneira mais fácil é falando de todos os sete, porque, assim, podemos fazer a inter-relação entre eles. Mas vamos considerar, por exemplo, a relação entre três deles. Nós temos a produção, o sistema produtivo. A grande questão da produção é: que tipo de tecnologia será utilizada em um sistema produtivo? À medida que o sistema produtivo evoluiu, novas tecnologias precisaram ser inventadas. As novas tecnologias que surgiram demandaram uma reorganização completa da concepção mental que as pessoas faziam do mundo. Ou seja, você tinha que ver o mundo como algo que poderia ser gerido de forma cientifica e tecnológica. Eu acho interessante que, nos primeiros anos do capitalismo, as empresas que hoje chamamos de indústria eram chamadas de arte. A indústria era considerada uma arte, não uma ciência ou uma tecnologia. E isso teve que mudar, as pessoas tiveram que dizer: “Podemos decompor o processo produtivo, analisa-lo de forma cientifica e criar novas tecnologias.” Isso significa que tivemos que conceber a natureza de uma maneira totalmente diferente. Em outras palavras, o mundo natural não podia ser algo mais misterioso. Quando eu falo de todos esses elementos juntos quero dizer que a transição do feudalismo para o capitalismo não foi apenas um desses elementos. Foram todos eles juntos. Ao mesmo tempo…

Elisabeth Carvalho – E isso é algo que o capitalismo manteve em movimento até hoje. O senhor disse que, durante a crise dos anos 1970, o que vimos foi exatamente todos esses movimentos juntos.
David Harvey – Sim. Eu tenho idade para lembrar como foi isso nos anos 1970. Se eu me perguntar quais eram as tecnologias dominantes… Não havia celulares, laptops. Você imagina a vida sem isso? E as concepções mentais também eram muito diferentes, incluindo, é claro, as sensibilidades políticas. Nós nos preocupávamos muito mais com a solidariedade social, essas coisas. Hoje, somos muito mais individualistas. Nós nos tornamos indivíduos ao telefone, no computador… Tudo isso mudou, e o dia-a-dia mudou radicalmente. É um dos momentos de que eu falei. Uma das genialidades do capitalismo foi manter esses sete elementos em movimento constante.

Elisabeth Carvalho – O senhor acha que esse movimento dialético entre os sete elementos atualmente está diminuindo?
David Harvey – É muito difícil, no momento, ver qual é o movimento. É bem mais fácil reconstruir isso depois que as coisas acontecem. Se perguntar o que aconteceu nos anos 1970… Eu sou um analista muito cuidadoso. Só nos anos 1990 é que eu entendi o que realmente aconteceu nos anos 1970. Porque eu pude identificar os elementos da época que, na década de 1990 se tornaram muito proeminentes e percebi que as raízes estavam na década de 1970. Nós temos transformações semelhantes acontecendo agora, mas eu não sei quais delas são realmente significativas. Para qual delas eu vou olhar e, daqui a 20 anos, dizer: “Essa foi a coisa mais significativa que aconteceu.” A eleição do Obama foi significativa? Quando ele foi eleito, todos pensaram que fora uma grande vitória simbólica, mas, agora, acho que todo mundo diz: “Então? E daí?” Acho que nem todo mundo diz isso, mas cada vez mais pessoas dizem. Ela não foi significativa, não mudou em nada a natureza da dinâmica capitalista. Eu sou da opinião de que, vai haver uma nova onda tecnológica que será a base da expansão capitalista…

Elisabeth Carvalho – No futuro.
David Harvey – No futuro. Ela acontecerá na engenharia biomédica e nas tecnologias biomédicas. E, na verdade, acho significante, que as principais fundações dos EUA, como a de Bill Gates e a de George Soros, estejam investindo em medicina, em saúde e coisas do gênero. Acho que as inovações da engenharia genética, em pesquisas com célula tronco, na criação de alimentos geneticamente modificados, serão a grande área em que veremos muita mudança tecnológica nos próximos anos, e que poderá ser a base de novas indústrias. As tecnologias ambientais agora estão sendo listadas em separado no mercado de ações. Então, é uma área que, em conjunto, está indo muito bem, como dá para imaginar. Então, sim, as tecnologias ambientais e o que chamamos de greenwashing. Mas algumas dessas tecnologias ambientais, na verdade podem ter um impacto muito significativo. Não se pode deixar de levar isso em conta. A inventividade capitalista não é sempre ruim, ela cria possibilidades e coisas boas. Eu gosto de lembrar as coisas simples, como o velcro ou coisas desse tipo. Como podemos viver sem isso hoje? É claro que a internet também e tudo o mais.

Elisabeth Carvalho – Os computadores.
David Harvey – Os computadores etc.

Elisabeth Carvalho – Mas nós conseguiríamos passar a uma economia de crescimento zero?
David Harvey – O mundo não consegue lidar com um uma economia estática. Ele consegue lidar com uma economia de crescimento zero. É por isso que eu faço a distinção entre o desenvolvimento humano e o crescimento. Nós nos desenvolvemos como seres humanos, desenvolvemos nossas capacidades e nosso poder de várias maneiras. Mas não precisamos necessariamente de um crescimento no sentido capitalista para fazermos isso. Há uma frase maravilhosa de um filósofo chamado Alfred North Whitehead sobre a natureza. Ele diz: “A natureza tem relação com a busca eterna pela novidade.” Acho essa ideia interessante. Nós somos parte da natureza, e acho que nós temos relação com a eterna busca pela novidade. Quando eu digo crescimento zero, não quero dizer que nada deva mudar, mas que o desenvolvimento humano pode tomar vários tipos de caminhos extraordinários, culturalmente, em termos de poesia, música, o que for. Todos esses tipos de coisas. Para mim, isso parece bem possível. Sem dizer, que a única maneira de ter isso, é com crescimento composto de 3% para sempre. Acho que precisamos separar o crescimento e desenvolvimento humano. Se você me pergunta se o mundo está preparado para uma sociedade sem transformações na natureza humana, eu vou responder que não. Um dos problemas das experiências passadas com o comunismo é que não havia liberdade para buscar novidade. Nós precisamos construir uma sociedade que seja capaz de buscar a novidade, fazer todos os tipos de coisas interessantes e participar de conflitos também, entende? Mas sem, necessariamente, estarmos comprometidos com um crescimento de 3% para sempre. Eu sei que isso parece utópico, mas se você perguntar se este é o coração, o cerne, da minha visão utópica, minha resposta é que sim, é isso que deveríamos ter. Crescimento zero e o enorme florescimento da capacidade e do poder humano.

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