Coluna do LFG

Remição pelo trabalho no regime aberto: Por que não?

Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    é doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela USP. Jurista e cientista criminal. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi promotor de Justiça juiz de Direito e advogado.

15 de março de 2012, 13h09

Spacca
Não é possível remir a pena com dias trabalhados para quem está no regime aberto. O entendimento é da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC 189.914/RS (27/02/2012), relatado pela ministra Maria Thereza De Assis Moura.

Abstraindo-se a pessoa da competente e extraordinária processualista relatora, que é merecedora de todo nosso respeito, especialmente pela sua história em defesa dos valores democráticos e republicanos, aqui o que quero focar é a decisão tomada, sua importância para a conflituosidade social assim como seu perturbador potencial ideológico-repressivo, seletivo e discriminador.

Cuida-se, desde logo, de um pensamento jurisprudencial indiscutivelmente criminógeno, dotado de alta periculosidade para a estabilidade social da sociedade brasileira, na medida em que, não incentivando o trabalho (tão decantado pela doutrina cristã e pelas teorias econômicas, sobretudo da modernidade, que tem em Max Weber seu expoente proeminente), contribui inescapavelmente para a proliferação da reincidência (e, portanto, da criminalidade e da insegurança), trazendo alto conteúdo explosivo para a destruição da já cambaleante ressocialização, que neste estado agonizante se encontra desde que a criminologia norteamericana decretou o seu fim (assim como o fim da História, pela voz de Fukuyama), destacando-se nesse esforço funeral e terminal, sobretudo, a fala de Martinson, em 1974, com o seu famoso livro Nothing Works.

A danosidade humanitária e criminológica da decisão é flagrantemente manifesta. Ela precisa ser superada. Darwin não morreu. O ser humano continua evoluindo (apesar das involuções). Por justiça ou por simples razão de bom senso, não há como discriminar o estudo do trabalho (se é que queremos dar vida, ainda que em estado terminal e vegetativa, para o princípio da ressocialização).

Se agora, por lei, é possível remição pelo estudo no regime aberto, esse mesmo direito, à luz da sabedoria e da ideologia ético-social (Ética é a arte de saber viver humanamente, diz Savater), deve ser conferido a quem trabalha, no mesmo regime, por analogia. Lição clássica do direito penal nos ensina que a analogia em favor do réu é permitida.

Decisões flagrantemente criminógenas, como a aqui comentada, consequentemente, devem ser evitadas, inclusive com apoio nesse instrumento interpetrativo e hermenêutico (da analogia), se é que queremos construir uma sociedade com menos conflitos. O potencial de risco para a reincidência, incrementando a insegurança coletiva, é impressionante. Não contribui em nada para a evolução do Estado Ético-Social de Direito (que constitui o novo paradigma utópico nesta era de pós-marxismo e de pós-capitalismo selvagem).

A defesa do paciente fundamentou o pedido de Habeas Corpus no princípio da ressocialização que rege a execução penal. Os argumentos apresentados foram que se há uma função de reintegrar o indivíduo à sociedade, a garantia da remição pelo trabalho deveria ser estendida aos condenados em regime aberto; que a Lei de Execução Penal, sendo omissa quanto à remição para o regime aberto, permitiria interpretação por analogia em favor do réu. Mas o pedido foi negado em todas as instâncias.

Não entendeu de modo diferente o Superior Tribunal de Justiça que fixou o entendimento de que a remição de pena pelo trabalho aos condenados em regime aberto não tem previsão legal, eis que a LEP determina que o desconto de dias da pena por trabalho ou estudo poderá ser feito para condenados em regime fechado ou semiaberto.

Alertou a relatora que, com a alteração sofrida pela LEP com a Lei 12.433/11, o condenado a cumprir pena em regime aberto pode remir a pena com o estudo, mas não pelo trabalho.

De fato, com o novo caput do artigo 126 da LEP, o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir um dia da pena, para cada doze horas de frequência escolar. Essas doze horas devem ser divididas, no mínimo, em três dias. A remição pelo trabalho continua sendo na proporção de três dias trabalhados para um da pena.

A regra específica, no entanto, está no § 6º do mesmo artigo, in verbis:
§ 6º O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que usufrui liberdade condicional poderão remir, pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional, parte do tempo de execução da pena ou do período de prova, observado o disposto no inciso I do § 1o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011).

Se o estudo, no regime aberto, permite a remição, não há como negar o mesmo direito para o réu que trabalha. Antes da Lei 12.433/11, dava-se remição pelo trabalho e não pelo estudo (salvo corrente jurisprudencial minoritária). Agora, com a nova lei, dá-se remição, no regime aberto, para o estudo e não para o trabalho. O tratamento é totalmente desigual e discriminatório. Porque tanto trabalhar como estudar concorre para a ressocialização do condenado, que é o princípio maior que deve reger a execução penal (LEP, arts. 1º e 10). Conceder remição pelo trabalho, aos condenados em regime aberto, constitui estímulo para a sua ressocialização.

A negativa concorre inequivocamente para a sua marginalização, ostentando um potencial criminógeno incomensurável. O sistema penitenciário brasileiro, hoje chamado de sistema-jaula, já não oferece, dentro dos presídios, qualquer tipo de apoio para a ressocialização (ressalvadas umas raríssimas exceções). O preso alcança o regime aberto e, por conta própria, sai em busca de emprego e o encontra. Isso é demonstração mais do que patente do seu intuito ressocializador. Corpo dócil e útil (como dizia Foucault). Está obedecendo às leis e quer se tornar útil economicamente.

Sabemos o quanto os egressos do sistema penitenciário brasileiro são discriminados. Quando esse mesmo egresso, de forma heroica, consegue trabalho, não há como não lhe premiar com a remição, dando-lhe estímulo para a vida reta, vida social adequada. Se o estudo, no regime aberto, dá direito à remição, não há como negar o mesmo direito para quem trabalha (onde existe a mesma razão deve reinar o mesmo direito). A falta de lei específica aqui, em relação ao trabalho, pode ser suprida facilmente com o emprego da analogia, aplicando-se (analogicamente) a lei que permite o mesmo benefício em relação ao estudo. Meus amigos: o tema aqui tratado nos convida a todos, todos que lutamos pelo Estado Ético-Social de Direito, a continuar nossa penosa e irresignada jornada. Uma batalha perdida não significa nunca perder a guerra. Avante!

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