Direito & Mídia

O Direito Marítimo no show do Costa Concordia

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14 de março de 2012, 16h08

Spacca
Estive de férias na Itália no início deste ano. Era inverno, mas os dias ensolarados e de céu azul quase sem nuvens convidavam a longos passeios durante o dia — bem diferente do que se seguiu no final daquele mês, marcado por nevascas, tormentas, estradas obstruídas, tendo nevado em Roma no início de fevereiro, algo que não acontecia há 25 anos.

Com o bom tempo, o programa era quase sempre levantar cedo, tomar o café da manhã (todos incluídos nas diárias) e sair para pegar um trem regional e visitar alguma cidadezinha, retornando à noite a uma das três cidades escolhidas para servir de parada, após a primeira semana revisitando lugares, monumentos, restaurantes e livrarias de Roma, que há tanto tempo não revia.

Depois da parada em Roma, Perugia e as belas escapadas a Assis, Espoleto e Orvietto; Florença e as esticadas para Lucca e Siena; Nápoles com as cidadezinhas da costa Amalfitana.

À noite, de volta ao hotel de base, saía para jantar e regressava em tempo de assistir a alguma atração da TV italiana — um belo exercício para quem tem como esporte falar mal das emissoras brasileiras. Até os noticiários na Itália acabam acontecendo em um âmbito de programa de auditório. Pode-se deduzir que uma boa diversão para os “locais” é ir participar de atrações ao vivo na TV. Tudo acontece nessa zona cinzenta em que não se sabe bem se estamos assistindo a uma peça de entretenimento, a um debate sério ou a um telejornal. É como se tudo fosse o mesmo show.

Retornando da graciosa cidade medieval de Assis, um dos pontos altos da viagem, na noitinha da sexta-feira, 13 de janeiro, estava cansado demais para assistir à TV. Além disso, o jantar no Al Mangiar Bene, num bequinho chamado Via Della Luna, travessa da central Avenida Vanucci, de Perugia, pedia um descanso. Aliás, nessa Vanucci, com sistema de alto falantes que durante o dia tocava músicas natalinas, presenciara a divertida dança de um grupo de garotas, coreografando o hit de Michel Teló, Ah se eu te pego, a que já assistira diversas vezes nas emissoras italianas.

No dia seguinte, trem para Florença e a segunda etapa da série de pequenas escapadas. Mas naquela noite, sábado, já acomodado em Florença, voltei ao ritual de assistir à televisão na volta ao quarto do hotel após o jantar. E começava para mim a saga do naufrágio do Costa Concordia.

Como se sabe, esse transatlântico com capacidade para quase 5 mil pessoas (3,7 mil passageiros, 1,2 mil tripulantes) era uma das maiores embarcações italianas dedicadas a cruzeiros turísticos. Afundou com 4.200 pessoas a bordo nas imediações da Isola del Giblio, no litoral da Toscana, perto da cidade de Livorno, exatamente na noite da sexta-feira 13.

Num primeiro momento, entendi que o comandante do navio, Francesco Schettino, fora um verdadeiro herói, pois conseguira deter o navio nas proximidades da ilha, possibilitando o resgate e atendimento dos passageiros, como noticiara a televisão. Teria sido uma tragédia muito maior se o navio afundasse em alto mar. Reportagens ao vivo com moradores da cidade de Sorrento (na costa Amalfitana), local de nascimento e formação do capitão do navio, mostravam depoimentos sobre sua nobreza de caráter, seu alto profissionalismo e a boa formação náutica. Um dos entrevistados afirmava ter sido um dos mestres do personagem, um marinheiro de estirpe.

Nos dias seguintes, a novela continuou, sempre com novidades. O comandante havia sido visto tomando uns drinques com uma loura, talvez passageira ou tripulante, num dos bares do navio. O capitão teria se aproximado demasiado da costa (o navio afundou a 500 metros do litoral) para saudar um amigo. A esposa do senhor Schettino era entrevistada para falar sobre a suspeita de adultério. A “misteriosa loura” se tornava outro foco da mídia. Peças de lingerie e o estojo de maquiagem da bailarina, tripulante, portanto, do transatlântico, a moldava Domnica Cemortan, 25 anos, foram encontradas semanas depois pelas equipes de resgate na cabine privada do capitão.

Tinha mais. Não seria a primeira vez que o Costa Concordia, “um gigante dos mares de 300 metros de comprimento por 38 de largura, com altura de um prédio de dez andares, sistema de navegação considerado dos mais avançados do mundo”, protagonizava um acidente: em novembro de 2008 havia dado uma trombada no molhe do porto de Palermo, sofrendo um rasgão na proa. Também não era o primeiro acidente cometido por Schettino, que em 2010, ao atracar o Costa Atlantica no porto alemão de Warnemünde, atingira o cruzeiro Aida Blu, atracado no local.

Dias depois, outra frase, que não a de Michel Teló, tomava conta da Itália: “Torna a bordo, cazzo!”, reprodução da ordem dada por Gregorio de Falco, chefe da Capitania de Portos de Livorno, ao comandante Schettino, durante uma conversa telefônica gravada. O comandante do Costa Concordia, o heroi do início dessa história, abandonara o navio, com a loura na embarcação salva-vidas, quando ainda havia passageiros a bordo, desorientados e sem um coordenador dos serviços de salvamento.

Um dos programas emitidos pela Rai Uno, na semana seguinte, chamou atenção: entre os convidados para debater a tragédia, havia uma acadêmica, uma jurista especializada em Direito Marítimo. Fiquei atento. Há mais de dez anos havia entrevistado o professor Vicente Marotta Rangel, titular da USP e juiz do Tribunal Internacional do Direito do Mar. A participação da jurista poderia ser interessante.

Foi um longo programa, com cerca de oito debatedores e a plateia se manifestando com calorosos aplausos. Sobretudo para um dos participantes, um jovem irado, falante, a quem o apresentador não se preocupava em colocar limites. Qualquer um dos outros debatedores era por ele interrompido, para retomar seu discurso típico de quem pouco sabe sobre o assunto mas tem muito a dizer.

E a jurista especializada em Direito Marítimo? Nada lhe foi perguntado e ela nada falou. Certamente por não estar preparada para atuar em um show.

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