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Contratação de ONGs deve obedecer Lei de Licitações

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8 de março de 2012, 19h46

Houve quem dissesse que as ONGs não se sujeitariam à Lei das Licitações (8666/1993). Muito se tem dito a respeito, gerando até interpretações de que a expressão “no que couber”, contida no caput do Artigo 116 daquela norma, seria a justificativa para tal interpretação excludente, como se os convênios ou ajustes sob qualquer roupagem ou denominação (parcerias, termos de cooperação etc) não envolvessem o interesse público e o repasse e emprego de verbas públicas.

Ora, se há repasse de verbas públicas evidentemente haverá uma altaneira atividade pública envolvida cuja execução foi cometida à entidade do chamado “terceiro setor”, que envolve ideia conceitual surgida nos Estados Unidos. O Primeiro Setor seria representado pelo Estado e o Segundo, pelos mercados – este visando lucro, refletindo o pensamento de que tais entidades observariam um “fim público” e seriam “não lucrativas”, alvitrando preencher uma lacuna social percebida.

Todavia, como há o repasse de recursos públicos, deve, natural e obrigatoriamente, existir o controle do uso desses recursos e a aplicação das sanções legais para os desvios de qualquer natureza.

As ongs e aplicação da lei 8666/93: necessidade de prévia aprovação do “plano de trabalho” previsto no artigo 116 – mecanismos de controle – fomento do controle prévio no contexto da análise do plano de trabalho
Bom que fique desde logo fixado que o legislador atento, ao tratar da Lei 8.666./93, não excluiu qualquer entidade do chamado Terceiro Setor do seu regime. Ao contrário, pois disse claramente que “aplicam-se” as disposições da Lei das Licitações a tais entidades, no que couber. Portanto, o verbo empregado e o comando legal refletem que a Lei das Licitações deve ser aplicada ao caso, no que couber. Isso importa em observar que o elevado interesse público para a atividade-fim alvitrada deve observar uma “vantajosidade” evidente, o que se encontra expresso de algum modo na ideia de “economicidade” como princípio contido no Artigo 7º., da Lei 9637/98, também aplicável à espécie.

Importante registrar que se dá alta relevância ao “plano de trabalho” também nas leis que cuidam das OS e das OSCIP, como elemento essencial do contrato de gestão ou do termo de parceria, como consta expressamente no Artigo 7º., da Lei 9637/98 e no Artigo 10, Parágrafo 2º., da Lei 9790/99, sendo bom que se diga que tais novéis normas não criaram novas pessoas jurídicas, que só existem no sistema jurídico pátrio sob aquelas modalidades previstas no Código Civil, Artigo 44.

Ademais, como há interesse público envolvido, na esfera da definição do “modelo de atuação” por entidade do chamado “Terceiro Setor” deve ser levada em conta o conceito da chamada “teoria dos motivos determinantes”, tão bem exposta na doutrina administrativa e que sustenta a validade do ato administrativo vinculando-a à raiz dos motivos indicados como seu fundamento, que reflete a ideia de que a validade do ato dependeria dos motivos alegados.

Motivos? Ora, a Lei das Licitações exige, em seu Artigo 116, que se apliquem suas disposições, no que couber, aos convênios e ajustes sob qualquer nomenclatura, exigindo o seu parágrafo 1º, de modo claro e incontestável, que apenas seja assinado o instrumento contratual após prévia aprovação do plano de trabalho, do qual depende.

Interessante notar essa clara definição temporal fixada no comentado preceito legal da importante norma em análise: primeiro se aprova o plano de trabalho e só após se assina o instrumento contratual (sob qualquer denominação, como convênio, ajuste, termo de cooperação etc), do qual este depende. Qual a razão? Salvo melhor juízo, pensamos que isso decorre da clara e naturalmente prévia definição do interesse público e dos motivos para a pretendida parceria (o que fica fácil assimilar se aplicarmos aqui a inteligência da “teoria dos motivos determinantes” para a prática da atuação da administração!).

Portanto, pensamos que não pode haver assinatura contemporânea do Plano de Trabalho e do instrumento da parceria (convênio ou tenha o nome que tiver), como aliás parece mesmo exigir o inciso I, do parágrafo 1º, do artigo 116, da Lei 8.666/93, quando fala em “identificação do objeto a ser executado” como uma das mínimas exigências para perfeita formação do Plano de Trabalho.

Analisemos, ainda, quais os requisitos mínimos do “plano de trabalho” segundo o legislador (como expressado no citado Parágrafo 1º, do artigo 116): a identificação do objeto a ser executado (inciso I), as metas a ser atingidas (inciso II), as etapas ou fases da execução (inciso III) do objeto proposto, o plano da aplicação dos recursos (inciso IV), o cronograma do desembolso (inciso V) e a previsão do início e do fim da execução do objeto e da conclusão das etapas ou fases programadas (inciso VI), dentre outras, cabendo ainda fixar aqui que o pagamento das parcelas dos recursos envolvidos ocorrerá conforme o plano previamente aprovado, salvo as que hão de ficar retidas “até o saneamento das impropriedades ocorrentes” (destacamos do parágrafo 3º.), devendo-se ainda lembrar de dar ciência da assinatura do convênio às Assembleias ou Câmaras Municipais (parágrafo 2º).

Além disso, devemos considerar que a subcontratação está prevista no artigo 72, da Lei 8666/93, preceito atraído pela expressão “no que couber” do artigo 116, da mesma norma, sendo crível que, para se facilitar a fiscalização pelos órgãos de controle interno, tribunais de conta, sociedade civil etc. Já no momento da elaboração da proposta consubstanciada na peça nominada e tipificada como “Plano de Trabalho”, deve constar se todo o objeto será realizado pela própria entidade sem fim lucrativo e/ou se ela terá necessidade de subcontratar.

Explica-se: se o plano de trabalho tem de ser apresentado antes e aprovado pelos envolvidos para que só após seja assinado o instrumento onde tais vontades convergentes haverão de ser expressas. Já ali (portanto, repete-se, antes da assinatura do instrumento) se conhecerá da capacitação técnica, estrutura física etc, e se poderá aferir tal aspecto e até se fazer exigências e ajustes, não podendo ser esquecido que o Plenário do TCU já julgou que “é irregular a subrogação do contrato celebrado entre a Administração, que representou fuga ao procedimento licitatório” (Acórdão 554/2005, do qual foi Relator o Ministro Guilherme Palmeira).

Em desdobramento ao contido particularmente no parágrafo anterior, observemos que o TCU já firmou entendimento de que “a aplicação de recursos públicos geridos por particular em decorrência de convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, deve atender, no que couber, às disposições da Lei das Licitações, Ex vi do artigo 116 da Lei 8.666/93” (trecho extraído do Acórdão 353/2005, do Plenário do TCU, sob relatoria do Ministro Walton Alencar Rodrigues), ao que se deve somar a ideia expressa no entendimento contido no artigo 2º, parágrafo 4º, do Provimento 29/94, do Tribunal de Contas do Paraná, onde, valorizando o princípio da economicidade, consta que no caso de entidades privadas “fica o responsável pela aplicação dos recursos públicos obrigado ao atendimento do princípio da economicidade, justificando expressamente a opção utilizada, sob pena de responsabilidade pelo ato de gestão antieconômica” (destacamos e grifamos).

Sendo aqui, então, agora, oportuno citar que a professora Maria Sylvia Zanela Di Pietro (in Direito Administrativo, Editora Atlas, 13ª edição, p. 287) preleciona que “mesmo as entidades privadas que estejam no exercício da função pública, ainda que tenham personalidade jurídica de direito privado, submetem-se à licitação”, pensamento que ora nos faz invocar o decidido pelo STF, ao recentemente julgar o AI 400336-RJ, onde consta que “no entanto, o fato de receberem recursos públicos, bens públicos e servidores públicos há de fazer com que seu regime jurídico seja minimamente informado pela incidência do núcleo essência”.

De fato, tecnicamente este regime de parcerias trouxe consigo a necessidade de se reconhecer o que chamaríamos de um tipo de “universalidade participativa” que faz com que o controle pela Administração e pela sociedade comece ANTES da execução do contrato, já no nascedouro da proposta (sob o nome técnico de “plano de trabalho e incluindo os aspectos ligados à legalidade, à economicidade, à finalidade pública, à moralidade etc).

Há, em nosso sentir, uma lógica nessa “sintonia fina” que deve haver entre as partes, de um lado o Estado (Primeiro Setor), em essência o titular da atividade-fim e a entidade sem fim lucrativo (Terceiro Setor) que a executará por aquele.

Como corolário, é imprescindível que se dedique a maior atenção no momento da elaboração do plano de trabalho, de sorte a propiciar a correta e serena oportuna execução do objeto da proposta feita à Administração Pública pela entidade particular, cujas vontades são ajustadas mediante o instrumento adequado à hipótese, seja sob a denominação de convênio, termo de cooperação, protocolo de intenções ou qualquer outra que se utilize. Pois o mais importante é a identificação da natureza da avença qualificada pela existência do interesse público e do repasse de verba pública.

Responsabilidade e outras nuances
(afinal, na origem, se trata de dinheiro público)

Noutro foco, temos que, se são públicos na origem tanto o dinheiro do tesouro quanto a finalidade administrativa da conduta alvitrada (que a ideia da teoria dos motivos determinantes ajuda a compreender), a entidade e aquele que por ela responder (que executará a ação prevista no plano de trabalho e no instrumento firmado entre ambos) estarão sujeitos a todos os órgãos de controle. Sejam de controle interno ou até mesmo os tribunais de contas e a esfera judicial civil e penal, podendo inclusive haver hipotética improbidade administrativa e/ou crime.

É preciso, contudo, que para esse correto raciocínio possamos distinguir que o fato de que o ato da escolha da entidade não se submete à Lei das Licitações não afasta em nada o que estatui, de modo cogente, claro e inegável, por exemplo, no artigo 116 da mesma norma.

Outrossim, consideremos que o fato de a execução de certa conduta estar a cargo de entidade particular e sem fim lucrativo não desnatura o fato de que na origem se trata de dinheiro público.

A propósito, convém ler o que nos ensina com elevada autoridade a professora Maria Sylvia Zanela Di Pietro (in Direito Administrativo, Editora Atlas, 13ª edição, p. 287), quando sustenta que os convênios não desnaturam a origem dos recursos, in verbis:

Essa necessidade de controle se justifica em relação aos convênios precisamente por não existir neles a reciprocidade de obrigações presente nos contratos; as verbas repassadas não têm a natureza de preço ou remuneração que uma das partes paga à outra em troca de benefício recebido. Vale dizer que o dinheiro assim repassado não muda a natureza por força do convênio; ele é utilizado pelo executor do convênio, mantida a sua natureza de dinheiro público. Por essa razão, é visto como alguém que administra dinheiro público, estando sujeito ao controle financeiro e orçamentário previsto no artigo 70, parágrafo único, da Constituição.” (destacamos e grifamos)

Nesta senda, observemos que há princípios constitucionais contidos na Constituição Federal de 1988 que não se afastam do contexto e que não podem ser desprezados pelo intérprete, como os da legalidade estrita, da impessoalidade, da economicidade, da moralidade administrativa e da razoabilidade, dentre outros, alguns dos quais expressados nas Leis 9.637/98 e 9.0790/99 e informadores de decisões judiciais, como aquele expresso em parte do voto do ministro Luiz Fux, proferido na ADI 1.923/DF, ainda em julgamento, para quem “impõe-se ao Poder Público conduza a celebração do contrato de gestão por um procedimento público, impessoal e pautado por critérios objetivos, ainda que, sem os rigores formais da licitação tal como concebida pela Lei 8.666/93 (…) – in verbis”.

Deve ser destacado que sob o tema há significativa recente decisão proferida na ambiência do Supremo Tribunal Federal que merece destaque e ser lembrança aqui, proferida no Agravo de Instrumento 400.336-RJ, do qual foi relator o ministro Joaquim Barbosa (Acórdão publicado em 07.6.2011) onde, dentre tantas sábias e relevantes passagens, consta, in verbis:

…”Por fim, ainda no tema das licitações, cabe apreciar se as Organizações Sociais, em suas contratações com terceiros fazendo uso de verbas públicas, estão sujeitas ao dever de licitar. As organizações sociais, como já dito, não fazem parte da Administração Pública Indireta, figurando no Terceiro Setor. Possuem, com efeito, natureza jurídica de direito privado (Lei nº 9.637/98, artigo 1º, caput), sem que sequer estejam sujeitas a um vínculo de controle jurídico exercido pela Administração Pública em suas decisões. Não são, portanto, parte do conceito constitucional de Administração Pública (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2010, p. 293.) No entanto, o fato de receberem recursos públicos, bens públicos e servidores públicos há de fazer com que seu regime jurídico seja minimamente informado pela incidência do núcleo essência” (fonte citada – destacamos e grifamos).

Também no Superior Tribunal de Justiça já se decidiu pela submissão dos convênios e ajustes afins à Lei 8.666/93, no que couber, como exemplificam trechos de Acórdãos proferidos no julgamento do RMS 32.427/ES (j. 09/11/2010) e do Recurso Especial 1.153.028/MG.

Interessante notar que, além do quanto aqui se tratou do Artigo 116 da Lei 8666/93 e do chamado “Plano de Trabalho” há que se observar outros preceitos pertinentes, dentre os quais a chamada IN 97, tecnicamente Instrução Normativa STN Nº 1, de 15 de janeiro de 1997, publicada no DOU de 31.1.97, que disciplina a celebração de convênios de natureza financeira que tenham por objeto a execução de projetos ou realização de eventos, notadamente o disposto no seu artigo 5º, bem como a recomendação do TCU de que a prestação de contas é elemento essencial do ato (a respeito, vide Convenios e outros Repasses, Tribunal de Contas da União, Brasília – DF, 2003).

Além do mais, é a própria Constituição Federal, em seu artigo 70, Parágrafo Único que, na redação vigente, estabelece que, in verbis: … “prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”. Isso evidentemente inclui os organismos do terceiro setor, também sem fins lucrativos, que manejem recursos públicos advindos de convênios ou ajuste outro, tenha o nome que tiver.

Também à chamada lei da “improbidade administrativa” podem se sujeitar as entidades privadas e/ou seus gestores, quando atuarem em algum tipo de associação com a Administração, conforme preceitos legais vigentes, previstos na Lei 8429/92, notadamente o que consta no Artigo 1º e no Artigo 3º., que se referem a particular ou “não servidor” e noutros artigos, como o Artigo 9º. e o Artigo 10.

Assim, é crível que o controle do ajuste firmado entre Administração e entidade privada sem fim lucrativo, seja de que natureza for e tenha o nome que tiver (já que o mais importante é a identificação da natureza da avença qualificada pela existência do interesse público e do repasse de verba pública), observará sempre um fim público. E, como se trata da gestão de recursos públicos, deve observar princípios constitucionais e outros próprios do sistema, devendo o controle da Administração e da sociedade começar antes da execução do contrato e já no nascedouro da proposta (sob o nome técnico de “plano de trabalho”, incluindo aí aspectos ligados à legalidade, à economicidade, à finalidade pública, à moralidade etc), bem como a hipotética necessidade de subcontratação, devendo haver o maior detalhamento possível do instrumento chamado “plano de trabalho” previsto no indispensável e absolutamente pertinente parágrafo 1º do artigo 116 da Lei 8666/93 e observando os seus elementos constitutivos, tratados como “mínimos” pelo mesmo preceito legal.

Isso é republicano e permitirá maior controle institucional, democrático e social sobre tais pactos, protegendo as ONGs e todo o conceitual Terceiro Setor das suspeitas sobre malfeitos que se pretende cometer apenas e tão somente aos destinatários das verbas públicas, não sendo inoportuno lembrar que quanto maior o controle na fase da apresentação e análise do plano de trabalho mais facilitada estará não apenas a execução correta do objeto como a sua fiscalização.

A sociedade agradece.

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