Gabriel no Alemão

A epopeia do rapaz, sem lenço, em busca de documento

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6 de março de 2012, 15h36

— Doutora, tem um menino aí no balcão dizendo que se a juíza não resolver o problema dele hoje, vai virar traficante no Morro do Alemão.

Mas logo no morro do Alemão?! Era uma segunda-feira. Dia seguinte da ocupação pela Unidade da Polícia Pacificadora da favela mais violenta do Rio. Os jornais comemoravam o dia D como se a cidade tivesse amanhecido em paz, sem armas, sem tráfico, sem corrupção. Como, se, de uma madrugada para a outra, todos tivessem saído às ruas pra comer biscoito Globo, aplaudir o sol se pondo na praia de Ipanema de mãos dadas com o Cristo Redentor e cantar cidade maravilhosa.

Logo no dia que o Rio amanhecia Zona Sul, aquele menino ameaçava virar bandido?!

Foi uma semana atípica. Carros incendiados, sensação de pânico, falta de lucidez, o coro do mata e esfola ganhando corpo. Não fossem uma nota solitária do psicalista Luiz Py no Facebook e uma lúcida entrevista do sociólogo Luis Eduardo Soares pra salvar a semana, confesso que demoraria alguns meses pra recuperar a fé na humanidade. É impressionante como o medo compromete a racionalidade.

A tarde era longa. Doze audiências, tempo cronometrado, filho esperando carona no fim da tarde e o moleque insistente atormentava o Cartório e só ia embora depois de falar com o juiz.
Achei graça na abordagem do guri e mandei entrar.

O projeto de traficante era franzino, brilhava de tão negra a pele. Os dentes brancos e o sorriso aberto contrastavam com as ameaças anunciadas.

— Então é você que tá pensando em mudar pro Alemão?

— É isso não, moça.

Visivelmente constrangido pela perversa arquitetura da sala de audiências, prosseguiu:

— Eu tô tentando acertar uma parada já tem um ano e essa demora tá me dando revolta. Não tenho tempo pra ficar voltando aqui toda hora não. Eu trabalho todo dia.

— Então não quero te atrapalhar. Diz pra mim que parada é essa e o que é que eu posso fazer?

— Olha moça, a senhora não pode fazer nada não. Tem que ser um juiz.

— Vamos começar de novo. Muito prazer, eu sou a juíza.

O olhar do menino denunciava sua incredulidade. Mesmo naquela situação, ele tinha clareza do que era um magistrado e seguramente a sua imagem era muito diferente do que ele encontrou ali.

Precisei de algum esforço para representar a autoridade idealizada e continuei:

— Qual é o problema que você tá tentando resolver?

— Ontem, fui buscar uma cesta básica na Secretaria e quanto eu tava voltando uns PM me pararam e acharam que eu tava roubando a cesta. Mostrei minha carteira de trabalho e só tem meu nome. Tô tentando há mais de ano resolver o resto e todo dia me mandam voltar depois. Agora inventaram que eu tenho que fazer um exame pra provar quando eu nasci.

Mandei buscar o processo. Gabriel era um de seis irmãos, abandonado pela mãe e sem qualquer documentação. Três anos antes, uma equipe do Serviço Social encontrou o grupo de crianças e levou para um abrigo. Na época, imediatamente se determinou o registro de todos, apenas com o nome. Alguns voltaram para casa de familiares, outros alcançaram a maioridade, perderam o fraterno contato e nunca mais souberam da mãe ou descobriram quem era o pai.

Por mais paradoxal que seja, pode-se dizer que Gabriel teve alguma sorte. Conseguiu emprego, tirou sua carteira de trabalho, tinha uma casa pra morar e dinheiro pro aluguel.

Há quase dois anos corria atrás do déficit de cidadania e envolto na burocracia excessiva e nas estantes de processos que se avolumam na medida em que se ampliam as diferenças sociais, o seu caso foi tratado como um dentre tantos.

Tentou-se em vão a localização da suposta mãe, dos irmãos, de testemunhas. Ofícios, citações por edital, etc. Na falta de qualquer comprovação quanto à sua idade, aguardava-se um exame médico que indicasse o ano de seu nascimento.

Nada mais inoportuno do que um processo para traduzir a eloqüência do olhar de Gabriel. Nada mais perverso do que o absurdo de submeter um ser humano a exigências obtusas. A rede legal de proteção é pra ser usada a favor do cidadão e não se pode transformar em suspeito um menino que jamais protagonizou sua vida e nem possui instrumentos mínimos de inserção social.

Gabriel afirmava no seu pedido inicial que era filho de Maria da Silva, não sabia quem era seu pai e nasceu em Petrópolis no dia 20 de dezembro de 1991.

A excessiva cautela para a comprovação desses dados remontava as lições ainda da Faculdade: Cuidado para não registrar um óbito inexistente e livrar alguém de uma condenação! Cuidado para não alterar a idade na certidão e eximir um maior da responsabilidade! Cuidado com fraudes no sistema previdenciário! Cuidado! Cuidado!

Tantos cuidados e nenhum cuidado para atender com presteza quem mais precisa da justiça. Tanta cautela e nenhuma preocupação em acreditar no que afirma um ser humano, ser presumir sua má fé ou sem transformar em investigado quem existe sem um papel que o transforme em cidadão.

Ouvidas essas observações e olhando no olho de Gabriel, a promotora desistiu das provas solicitadas.

— Então, Gabriel, você é filho da Dona Maria e nasceu em Petrópolis, no dia 20 de dezembro de 1991?

— Posso pedir uma coisa, doutora?

— Pois não.

— Dá pra eu nascer dia 1? É que dia 20 fica muito perto do Natal e todo mundo esquece meu aniversário.

Quase 20 anos sem registro, dois anos num emaranhado burocrático pra provar que existe, a vergonha de ser confundido como um ladrão de cesta básica, a iminência de virar traficante no morro do Alemão, 19 dias de antecipação de um nascimento?

— Claro que dá. Determino a retificação no assento de nascimento de Gabriel para que ali passe a constar o nascimento de Gabriel da Silva, filho de Maria da Silva, nascido em Petrópolis no dia 1 de dezembro de 1991.

— Não tem recurso, Gabriel. Leva de uma vez o mandado.

Só com o papel na mão Gabriel finalmente acreditou que eu era juíza.

*Esta crônica faz parte de uma experiência literária da juíza Andréa Pachá que, junto com outros textos, deverá em breve se transformar em livro.

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