Ideias do Milênio

"Juntamos velhos e jovens para pressionar os governos"

Autor

2 de março de 2012, 8h46

Entrevista concedida pelo músico inglês Peter Gabriel ao jornalista Álvero Pereira Júnior, do programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

globo.com
Artista e homem de negócios. Cantor e ativista político. Expoente do chamado rock progressivo, mas também crítico desse movimento, que considera a coisa mais fora de moda que existe. Nos anos 80 e 90 do século 20, existia um clichê do jornalismo musical, que era chamar um artista de multifacetado. No caso de Peter Gabriel no entanto a expressão ainda faz total sentido. Aos 62 anos completados dia 13 de fevereiro, Gabriel se mantém ativo nos palcos. Até se apresentou no Brasil no ano passado. Foi um dos primeiros grandes nomes do rock a abraçar as possibilidades infinitas da internet. Anos antes também tinha sido pioneiro ao explorar até o limite da criatividade o formato de videoclipe. Peter Gabriel é crítico do modelo de negócios que sustentou as grandes gravadoras por décadas, mas reconhece que, se não fossem essas mesmas gravadoras a bancá-lo, não teria conseguido ousar tanto em suas experiências estéticas. Mas, como ele mesmo diz, anda muito mais interessado nos grandes acontecimentos mundiais do que na música em si.

Foi um dos principais organizadores do grupo The Elders, uma espécie de conselho de anciãos ou conselho de notáveis veteranos do qual fazem parte, entre outros, Nelson Mandela e a mulher dele Graça Machel, o arcebispo Desmond Tutu, o ex-presidente americano Jimmy Carter e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso. Brincando Peter Gabriel explica que não é um dos veteranos, só ajudou a formatar a organização, junto com um de seus maiores amigos o bilionário Richard Branson do conglomerado Virgin de transporte aéreo e comunicações. O que pensa a mente inquieta de Peter Gabriel? O que esse inglês, pai de duas filhas e dois filhos, tem a dizer sobre o estado da música, das artes, da política, dos negócios na segunda metade do século 21? É o que você acompanha agora no Milênio nesta entrevista feita em Londres.

Álvaro Pereira Jr. —O senhor acredita ser possível fazer discos conceituais, hoje em dia, quando as pessoas baixam músicas da internet uma a uma. 
Peter Gabriel — Acho. À medida que a cultura se move em uma direção, a outra se torna mais atraente, porque sempre queremos o que não temos. Eu acho que, na verdade, hoje há mais oportunidades para esse tipo de música que conta uma história. 

Álvaro Pereira Jr. — Sério?
Peter Gabriel — De certo modo, sim. De certo modo, me sinto frustrado… Toda tecnologia traz mais possibilidades, e você pode perder algumas coisas. Com os CDs, houve uma grande dinâmica, mas perdemos parte da profundidade que o vinil tinha. Com a internet, podemos fazer músicas que durem 3 segundos ou 3 dias. Deveria haver uma variação ampla, mas é preciso ter bons filtros, para que as pessoas tenham o que querem, e não outras coisas.

Álvaro Pereira Jr. — E como seriam esses filtros?
Peter Gabriel — Você faz um mix e coloca nele coisas que as pessoas gostam. Assim, se você se interessa pelo gosto de alguém, haveria algoritmos baseados no que está disponível para aquele gosto. Mas você também poderia incluir seus amigos ou alguém que você sabe que é especialista em filmes, música, livros, etc. dos quais você queira saber. Você muda esse mix e recebe as recomendações com base nisso. Para mim, isso é parte do que eu adoraria ter. Eu seria apresentado a coisas novas e boas e as misturaria às minhas coisas preferidas. 

Álvaro Pereira Jr. — Mas esse sistema tem um problema: o MP3. E você não parece gostar muito do formato MP3.
Peter Gabriel — Quando você é músico, dá um duro danado para o seu som ficar ótimo, e os arquivos de MP3 realmente esmagam, sentam em cima da música, comprimindo tudo. E há formatos muito melhores, que estou tentando incentivar. A Apple tem um formato de áudio lossless, com versões digitais de melhor qualidade, com uma banda larga de maior velocidade disponível.

Álvaro Pereira Jr. — Você participa da Society of Sound.
Peter Gabriel — Exato. 

Álvaro Pereira Jr. — Ela ainda…?
Peter Gabriel — Ela ainda funciona, mas acho que o objetivo dela é tentar encorajar as pessoas a se lembrar como é um bom som. É fantástico poder levar qualquer coisa a qualquer lugar e rápido. Eu entendo isso como uma vantagem do MP3, mas, quando nós temos várias inovações que melhoram a experiência de ouvir música, é uma pena desperdiçar isso.

Álvaro Pereira Jr. — Mas suas músicas estão disponíveis no iTunes, por exemplo, não estão?
Peter Gabriel — Sim.

Álvaro Pereira Jr. — E não estão em MP3, e sim em FLAC, que é o formato da Apple. É semelhante ao MP3. Você fica incomodado ao ouvir uma música que deveria soar diferente?
Peter Gabriel — Bem, eu acho que nós tentamos… É difícil hoje, com o colapso da indústria da música, sair disso. Eu agradeço a qualquer um que queira fazê-lo, mas a qualidade seria algo que pode ser melhorado com muita facilidade. Eu espero que continue o movimento por um áudio melhor na distribuição digital.

Álvaro Pereira Jr. — Por falar de distribuição digital, você sempre fez questão de veicular sua música como um pacote completo. O trabalho de arte sempre foi muito importante, por exemplo. Mais uma vez, hoje em dia, as pessoas não ligam muito para isso. Por outro lado, você se diz fã da revolução digital. Qual é, exatamente, sua opinião sobre o assunto?
Peter Gabriel — Bem… Eu acho que a acessibilidade é enorme. O fato de que, se for ouvinte, você pode acessar praticamente qualquer música que já foi feita, é uma ideia maravilhosa. Como artista, no entanto, eu adoro o trabalho que vem com a música. Originalmente, era só uma questão de embalagem, marca e tal. Mas havia toda uma cultura em torno da arte visual, e eu sempre gostei de conviver com bons comunicadores visuais ou designers. O diálogo que temos enquanto eles criam as imagens é divertido, eu adoro esse brainstorm, então…

Álvaro Pereira Jr. — E isso meio que acabou.
Peter Gabriel — Uma boa parte acabou. Mas eu acho que ainda há colaborações em potencial que são interessantes. 

Álvaro Pereira Jr. — Por exemplo?
Peter Gabriel — Eu tenho um amigo pintor, Graham Dean, que tem trabalhado com David Rhodes, que tocou guitarra comigo. Eles se reúnem, Graham pinta, e David improvisa uma música enquanto ele pinta. Nós costumávamos fazer esse trabalho para CD-Rom: colocávamos artistas visuais e músicos juntos.

Álvaro Pereira Jr. — Os CD-Roms também acabaram. 
Peter Gabriel — Acabaram. 

Álvaro Pereira Jr. — É incrível como a tecnologia evolui.
Peter Gabriel — Mas ele meio que está voltando, com todos esses aplicativos para iPad. Estão começando a aparecer livros interativos. Então, um formato certamente morreu, mas o outro é uma nova porta.

Álvaro Pereira Jr. — A ideia ainda está lá.
Peter Gabriel —
Está lá e continua forte. E, com filmes, ela é muito forte, pois chega a várias partes do mundo, e, quando a música e a imagem são bem combinadas, a experiência é fantástica. 

Álvaro Pereira Jr. — Ainda que a indústria da música esteja em dificuldades hoje em dia, nós estamos na sede de uma gravadora neste momento, e há uma gravadora por trás do seu trabalho. Você as vezes se sente parte de um grupo que está acabando? Artistas que ainda vendem e ainda têm o apoio de uma gravadora?
Peter Gabriel — Pois é. Eu tenho uma gravadora que apoia o meu trabalho fazendo a parte operacional, e não… Quem assume os riscos sou eu. Nós temos nossa gravadora, mas a EMI cuida da distribuição e me oferece alguns serviços. A indústria fonográfica deveria ser sempre assim. E fico muito feliz… O trabalho de vendas, distribuição e marketing é muito grande. Eu não quero fazer isso, e eles têm muita experiência e capacidade nessa área. E eu fico feliz de pagá-los bem quando fazem um bom trabalho. O que eu não gosto é quando uma gravadora é “dona” do artista e pode fazê-lo parar de trabalhar. Se ela quiser apoiá-lo e vender o seu trabalho, ótimo. Mas, se ele não é aproveitado, não concordo, e isso já matou a carreira de vários artistas. Eu acho que há possibilidades para esse novo modelo e  as grandes gravadoras podem se reinventar como uma indústria de serviços. Porque eu acho que as coisas vão em duas direções…

Álvaro Pereira Jr. — E elas teriam menos controle sobre a parte artística.
Peter Gabriel — Isso. O artista seria proprietário de seu próprio trabalho, teria muito mais controle sobre ele. Esse é um modelo. O outro é um modelo totalmente contrário, no qual a direção tomada seria outra, e as gravadoras ganhariam dinheiro com as apresentações ao vivo também, vendendo camisetas e tudo o mais. É como uma joint venture. Uma parte disso pode dar certo. Nós vemos o outro lado, temos uma pequena gravadora. E, quando as pessoas assumem um risco e investem, elas têm chance de recuperar o dinheiro se der errado. 

Álvaro Pereira Jr. — Como funciona entre você e a EMI?
Peter Gabriel — Nós fizemos um disco. Eles distribuem e nos oferecem alguns serviços. Acho que eles foram uns dos primeiros a oferecer isso aos artistas. Você pode contratá-los para fazer coisas diferentes. Há uma lista, e nós escolhemos: “Quero isto aqui, isto aqui…” E eles provavelmente… Nós temos um cara independente trabalhando nisso também, então é um processo híbrido. Mas nós temos nosso catálogo, com o suporte da EMI, então somos livres para fazer o que quisermos com essas coisas. 

Álvaro Pereira Jr. — Eles não participam do lado artístico. Eles não dizem: “A faixa 4 será sua música de trabalho.” Ou: “Não vamos incluir a faixa 6.” Isso não acontece?
Peter Gabriel — Não. Essa parte é por nossa conta. Mas aqui há muitas pessoas inteligentes, e podemos decidir ouvir os conselhos que eles têm a dar. Mas essa parte fica com o artista e não com a gravadora. Porque esse é o dilema. Às vezes, há gravadoras muito boas, muito inteligentes, positivas, que ajudam e apoiam os artistas a chegarem muito além do que chegariam sozinhos. Então… Sou o primeiro a admitir isso. Mas eu ainda acredito que o poder de decisão deve ser do artista. 

Álvaro Pereira Jr. — Você acompanha a política internacional mais do que acompanha o que acontece na música. 
Peter Gabriel — Verdade.

Álvaro Pereira Jr. — O que mais tem chamado sua atenção ultimamente?
Peter Gabriel — A Primavera Árabe é muito interessante. Eu sou apaixonado pela transformação do mundo através dos celulares. Porque é o primeiro aparelho da revolução tecnológica acessível às pessoas pobres do mundo todo. E, de repente, com isso temos potencial para as áreas de saúde, educação, comércio e para o ativismo. Há uma ótima organização chamada Avaaz, que faz petições online. Mas o que eu gostaria de ver é um mundo em que tudo o que acontece e não deveria acontecer fosse documentado em um formato como o do Google Earth ou parecido, de modo que pudéssemos dar um zoom e ouvir as histórias e relatos de quem sofresse esses abusos. E deve haver algumas diferenças entre conteúdo validado e não validado. Algumas pessoas vão manipular e mentir, mas contamos com a comunidade, como a Wikipedia, para policiar isso, com um pequeno toque de um administrador, talvez. Assim, os eventos são mapeados. Há uma outra ótima organização, a Ushahidi, que mapeia… 

Álvaro Pereira Jr. — Como se chama mesmo?
Peter Gabriel — Ushahidi. Acho que é do Quênia. Ela nasceu em um país africano. E eles registram onde as coisas acontecem. Eles foram chamados para atuar no Haiti, por exemplo, onde as pessoas precisavam de ajuda. Quando acontece uma emergência, você faz um mapa, e é mais eficaz. Então, mapeamento, relatos, campanhas online, telefones celulares conectando o mundo todo, com The Elders no topo disso. É um grupo de homens e mulheres confiáveis que participaram de governos, capazes de acionar vários chefes de Estado, de conversar com as autoridades e tornar isso tudo mais eficiente.

Álvaro Pereira Jr. — Eu ia perguntar sobre The Elders, do qual um ex-presidente do Brasil participa: Fernando Henrique Cardoso.
Peter Gabriel — Claro.

Álvaro Pereira Jr. — Como ele funciona? Vocês se reúnem regularmente? Se sim, como transformam suas conversas em ações?
Peter Gabriel — Bem, é… Hoje, é muito mais estruturado. Duas vezes por ano, há encontros formais. Alguns membros viajam individualmente, talvez para o Sudão, ou para as Coreias do Norte e do Sul, para o Chipre, e eles têm responsabilidades específicas para tentar ajudar na situação local. Há, ainda, algumas campanhas de duração mais longa. No momento, temos uma campanha contra o casamento infantil, as noivas crianças. 

Álvaro Pereira Jr. — Quem criou o grupo?
Peter Gabriel — Bem… Eu estava conversando com Richard Branson, e nós pensamos que, se Mandela se juntasse a nós, podíamos ver se isso poderia dar certo… 

Álvaro Pereira Jr. — Pensaram alto.
Peter Gabriel — Exato. E, em primeiro lugar, tivemos uma reunião, em 2001, com Nelson Mandela aqui em Londres. A primeira reação dele foi dizer: “Não acho que as pessoas vão querer um bando de velhos se metendo no assunto delas.” A iniciativa perdeu um pouco da força, mas nós ainda estávamos muito animados, então pensamos… Na verdade, quando eu estava negociando entre os hútus e os tútsis [grupos étnicos que se confrontaram na guerra de Ruanda], os jovens generais disseram: “Nós gostamos de negociar com você, porque é como se estivéssemos conversando com nossos pais, e não sentimos em vocês qualquer outro interesse, além de resolver a questão para todos os envolvidos. Não confiamos em nenhuma outra parte dessa negociação, porque achamos que eles têm sua agenda própria.” E eu acho… O sonho de The Elders é… Essas pessoas são livres para fazer o que é certo e foram escolhidas pelo grupo The Elders porque tiveram algum… A maior parte deles teve uma vida extraordinária e demonstra independência moral e autoridade. Então, em outras palavras, até agora, o poder tem se baseado em força militar, em força econômica e talvez na religião. E isso é muito parcial, muito prejudicial. Estamos tentando dizer que, talvez, assim como nos povoados antigos, os anciãos, que já não se envolviam com guerras, eram importantes para manter as coisas funcionando em paz e encorajavam as pessoas a pensar no longo prazo. Mas podemos ter essa frente dupla, de anciãos junto com jovens, para pressionar os governantes a agirem com moderação. Pois, frequentemente, os governantes sofrem muitas influências que tendem a corrompê-los, de um jeito ou de outro. 

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!