Direito & Midia

Lula, Gilmar, duendes e sacis e o sistema eleitoral

Autor

30 de maio de 2012, 17h15

Spacca
Numa palestra que proferiu ontem no IV Congresso de Jornalismo Cultural da revista Cult, no Teatro da Universidade Católica, o TUCA, em São Paulo, o jovem escritor português Gonçalo M. Tavares utilizou uma imagem que pareceu muito oportuna. Disse ele que o jornalista (e isso serve também para qualquer observador político) deve ser como aquele vesgo que na quarta-feira via com um olho o domingo anterior e com o outro o domingo seguinte. Essa metáfora tem muito a ver com o momento atual que vivemos, de polarização ideológica em torno da discussão de temas candentes, como o julgamento do mensalão e o atabalhoado andamento da CPI de Carlinhos Cachoeira, que, como escrevi na semana passada, entrou em cena também para distrair as atenções daquele julgamento.

Essa radicalização ideológica que vivemos infantiliza o debate e às vezes custa crer em alguns comentários que revelam total falta de visão, seja no foco ou fora do foco. “Você é de direita?!”, perguntou-me ou acusou-me (daí o uso duplo da interrogação e da exclamação) uma amiga esta semana. Referia-se à citação de um trecho da minha coluna da semana passada neste Consultor Jurídico pela revista Veja desta semana. Respondi com outra pergunta: “Você leu minha coluna?” Não havia lido e talvez nem saiba da existência da coluna, teria ouvido comentário de alguém.

Nesta última semana, em que a discussão foi exacerbada com a entrada em cena do caso Lula x Gilmar Mendes, li mais algumas barbaridades. Ao noticiar a suposta pressão do ex-presidente sobre o ministro do STF, aconselhando que não era este o momento oportuno para julgar o Mensalão, hortaliça que vicejou na horta de seu governo, Lula teria oferecido ao ministro, em troca, blindagem na CPI do Cachoeira: “E sua viagem a Berlim?”, teria dito o ex-presidente. Oferecer blindagem parece expertise do PT: há uma semana era o deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) enviando uma mensagem ao governador do Rio, prometendo a ele “blindagem” na mesma CPI.

Após conferir num portal da internet o desdobramento de desmentidos e a confirmação do ministro do STF sobre o episódio com Lula, relatado pela revista Veja, lá embaixo, um leitor resumia a questão: “Trata-se de Veja + Gilmar Mendes. Quem acredita neles?” E ele não estava se referindo a duendes e sacis.

Gilmar viajou a Berlim e ali se encontrou com o senador Demóstenes Torres, essa foi a alusão feita por Lula. Como talvez aquele leitor e nem o ex-presidente saibam, Gilmar Mendes, em seu tempo de formação, serviu na Embaixada de Bonn, cidade onde cursou na Rheinische Friedrich-Wilhelms Universität as disciplinas preparatórias para candidatar-se ao doutorado em Direito Comparado. Ficou ali até 1982. De volta ao Brasil, prestou concurso para juiz federal, assessor legislativo do Senado e procurador da República: passou nos três concursos, em 12º, 4º e 1º lugar, respectivamente. Optou pela carreira em que aprovou como primeiro colocado. Enquanto isso, concluía o mestrado em Brasília, com a dissertação “Controle de Constitucionalidade: Aspectos Jurídicos e Políticos”, e o doutorado três anos depois (“O Controle abstrato de normas perante a Corte Constitucional Alemã e perante o Supremo Tribunal Federal”), tendo como orientador o reitor da Universidade de Münster, professor doutor Hans-Uwe Erichsen.

As relações de Gilmar Mendes com a Alemanha vêm de longe, como se vê, além do fato, divulgado por ele, de sua filha residir em Berlim. Não consta que o ministro tenha posado de guardanapo na cabeça em nenhuma festa da Kufurstemdamm.

Gilmar Mendes desenvolveu carreira docente e na área governamental: foi aprovado em primeiro lugar no concurso para professor assistente (Direito Público) da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, em 1995, enquanto seguia trajetória como advogado, desempenhando diferentes tarefas no governo federal. Como advogado da União defendeu as terras indígenas do Xingu, trabalho que se transformou no livro O domínio da União sobre as terras indígenas: o Parque Nacional do Xingu.Foi como procurador da República que recebeu de Fernando Henrique Cardoso a indicação para o STF. Embora tenha sido apresentado numa capa da revista CartaCapital como um coronel pistoleiro das quebradas mato-grossenses, não é bem essa a imagem que se deduz da leitura de seu currículo, mas pode-se dizer que se trata uma questão de ótica. Afinal, há quem acredite em duendes. 

Mas volto àquela imagem do vesgo que na quarta-feira olha o domingo que passou e o que ainda virá. Escolho o olho que vê o passado e ele me leva até o pacote de 13 abril de 1977. Com todos os sortilégios do número 13 daquele dia, ele nos legou algumas distorções que explicam muitas das mazelas e malfeitos que o país continua vivendo. Recupero uma entrevista feita com o professor José Eduardo Faria, da Faculdade de Direito da USP, publicada doze anos atrás, mas que se mantém atual em suas reflexões. Dizia o sociólogo do direito Faria que, quando se examina a distribuição dos assentos por membros da Federação no Congresso, percebe-se que as regiões menos industrializadas do Nordeste, Norte e Centro-Oeste, têm 42% da população e 38% do eleitorado, mas detêm em torno de 52% da Câmara e 74% do Senado. E as regiões mais industrializadas do Sul e Sudeste, com 58% da população e 62% do eleitorado, têm 48% da Câmara e apenas 26% do Senado, com a incapacidade de realizar uma afirmação política pelos meios legislativos tradicionais.

Por artifícios do decreto, os Estados economicamente ricos não podem ser politicamente fortes, e os mais fracos detêm o jogo político. Esse engessamento, que vem da Revolução de 30, da derrota de São Paulo de 1932, foi consolidado pelo “pacote de abril” do general Ernesto Geisel, em 1977, instaurando uma estrutura de distribuição desigual do poder parlamentar, criando um sistema partidário que impede o aparecimento de quadros mais preparados para o debate político. José Eduardo Faria concluía: “Os partidos não têm tradição ideológica, nem consistência programática, são meras legendas de políticos que se acotovelam em função de suas conveniências”, dizia, abrindo, na época, exceção para o PT, que ainda não montara no poder. 

No processo político brasileiro, há um dado relevante: o grosso do eleitorado está no Sul e Sudeste e elege o presidente da República. Portanto, o candidato só será eleito se for capaz de seduzir a esse eleitorado. Mas, ao assumir a Presidência, ele terá de governar com o Congresso, que representa o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste. Quem tentou romper com isso gerou crise institucional. Foi assim com Jânio Quadros, que tentou romper com a renúncia e levou ao Jango. Jango tentou jogar a opinião pública contra o Congresso, no comício de 3 de março de 1964, e caiu. O ex-presidente Collor, que hoje serve a um dos partidos que o catapultaram do governo, também representou claramente essa distorção. Lula e o PT aprenderam bem a lição, entrando logo em composições e barganhas. E velhos alvos do partido, como o clã Sarney ou o antes execrado Collor de Mello, hoje andam de braços dados com os atuais donos do poder.

Barganhas que resultaram na expulsão de alguns petistas descontentes e na formação de partidos dissidentes. Foi-se água abaixo a mítica ética do PT: ela soçobrou diante da realidade de nosso sistema político, do toma lá, dá cá. Daí, daquele nefasto 13 de abril vem o caldeirão malcheiroso de malfeitos de que todos os dias se descobrem novos e surpreendentes ingredientes.

A discussão sobre a renovação dos quadros políticos, algo por que clama o país, passa pelo destravamento dessa estrutura político-partidária nacional. Mas, como se sabe, ninguém larga o osso que tem na boca. 

Quando à pergunta que me foi feita ontem, resultado dessa infantilização que a ideologia traz ao debate, ela me fez lembrar um tempo anterior ainda ao Pacote de Abril, aquele da mensagem que se lia em muitos adesivos em carros e outdoors: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Os militantes petistas se apropriaram de uma das pérolas do período mais escuro da ditadura militar. Novamente estamos frente ao pensamento dualista, ou se está com Lula ou se é de direita. Longa vida aos duendes.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!