Embargos Culturais

Hans Kelsen e a tradição do Direito Romano

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

27 de maio de 2012, 5h23

Caricatura: Arnaldo Godoy - Colunista [Spacca]Hans Kelsen nasceu em Praga, em 1891, quando as margens do Moldava ainda pertenciam ao Império Austro-Húngaro. Kelsen privou dos neopositivistas lógicos do Círculo de Viena, nutrindo a purificação das ciências em face de preocupações metafísicas, na crise epistemológica que admitia que a ciência não poderia pronunciar juízos de valor.

Kelsen é o autor intelectual da Constituição republicana austríaca. Lecionou na Universidade de Viena de 1919 a 1929. Foi juiz na Áustria por nove anos, de 1921 a 1930. Em 1934, publicou sua Teoria Pura do Direito. Fugiu do nazismo e foi recebido nos Estados Unidos, em Berkeley, onde lecionou até 1952. Em outubro de 1973, aos 92 anos, morreu na Califórnia.

Kelsen foi injustamente acusado de reducionista por ter defendido alguma pureza científica no que se refere ao Direito. Para ele, a ciência jurídica é ciência pura, preocupada com normas. Retomou kantianamente a teoria da norma fundamental, radicada na primeira norma posta, de feição constitucional. A norma posta deve-se a uma norma suposta; a norma hipotética fundamental vem solucionar a questão do fundamento último da validade das normas jurídicas. Afinal, o que legitima o Direito?

Para uma adequada, correta e equilibrada compreensão do positivismo jurídico, é indispensável a leitura de Dimitri Dimoulis, autor de um dos mais bem elaborados livros de filosofia jurídica publicados no Brasil, Positivismo Jurídico, que saiu pela Editora Método. O autor desmistifica a auréola mefistofélica que se impôs ao pensamento de Kelsen. Trata-se de livro que revela um pensador lúcido. Dimoulis é intelectualmente preparadíssimo, conhece toda a literatura referente ao assunto, que cita com a familiaridade dos verdadeiros mestres. É livro imperdível; fundamental para compreensão do positivismo jurídico, corrente tão criticada por aqueles que não leram os autores canônicos e que, se o fizeram, não compreenderam nada.

Acrescentaria, no plano mais fático, a primorosa edição da autobiografia de Kelsen, de autoria do ministro Dias Toffoli, e que conta também com a infatigável pesquisa de Otavio Luiz Rodrigues Junior, jurista cearense que não se rende ao engodo de um imaginário Direito Privado de feição metafísica e principiológica. Otávio pertence a uma linhagem de civilistas cujo antepassado mais pretérito é Clóvis Beviláqua, também cearense. O Direito Privado detém dignidade inatacável pelas inseguranças de nossos tempos.

Estado e Direito se confundem em Kelsen. Não haveria leis inconstitucionais ou decisões ilegais. Paradoxo talvez vivido pelo próprio Kelsen, supostamente forçado a admitir a eficácia do Direito nazista. Para o mestre de Viena o cientista do Direito deve preocupar-se com a lei, e com problemas de aplicabilidade destas, tão somente. Kelsen nos dá conta de que o conhecimento jurídico só é científico se tentar ser neutro, ainda que não se transcenda da neutralidade do eunuco. A pureza do Direito decorreria de corte epistemológico que definiria o objeto e de um corte axiológico que afirmaria a sua neutralidade.

O jurista deveria identificar lacunas e apurar antinomias, a exemplo de questão tratada em um dos livros de Norberto Bobbio, o mais arejado dos juristas italianos do século XX. O problema também não passou despercebido por Lon Fuller, ligado ao realismo jurídico norte-americano; Fuller nos deixou o saboroso caso dos exploradores de cavernas.

Para Kelsen, autêntica é a interpretação do Direito pelos órgãos competentes: a decisão judicial qualifica uma norma jurídica individual. Tudo muito simples, embora tudo muito complicado por seus detratores. No entanto, concedo, não havia no contexto do livro de Bobbio a necessidade de enfrentarmos o espinhoso problema do conflito entre normas constitucionais, reveladoras de princípios que matizam fundamentos de nossa cultura.

Nesse sentido, ainda que correndo o risco de apresentar uma historiografia pouco consistente, apelo para o monumental legado jurídico romano, mesmo que talvez conspurcado pelos glosadores medievais, e reconstruído pragmaticamente pela pandectística alemã do século XIX.

O rígido formalismo dos romanos e a concepção de um Direito como arte que se aprende e que se impõe ao indivíduo como um critério consolidado identificariam universo jurídico criado por especialistas. A jurisprudência romana não vislumbrava oferecer armas para todas as teses e alternativas possíveis no campo judicial. Buscava-se definição certa para os comportamentos e um critério resolutivo dos conflitos. Era uma possibilidade técnica de decisão. O especialista punha-se a serviço da vida real. O generalismo defendido por uma epistemologia crítica mais recente redundou no achismo, na insegurança da opinião e no abuso de conhecimento.

Assim, higienicamente livre de ingerências sociológicas, porque expressão própria do poder, o Direito Romano pode ser convergente ao legado de Kelsen, na medida em que pretensamente puro, imparcial, vacinado contra essa ansiety of contamination, que também marca alguma subjetividade da pós-modernidade, isto é, se levarmos com seriedade a crítica ao Direito como uma grande narrativa.

Kelsen é figura central no debate jurídico contemporâneo, a propósito das relações entre Direito e política, entre norma e poder, questão talvez recorrente no Direito Romano, cenário cultural que é referencial indispensável para o estudioso do Direito.

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