Senso Incomum

Quanto vale o narcisismo judicial? Um centavo?

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17 de maio de 2012, 5h46

Spacca
Caricatura Lenio Streck [Spacca]Na década de 1980, li muito Cornelius Castoriadis. Diz ele, em sua Instituição Imaginária da Sociedade — cito de cabeça — que tudo o que existe no mundo social-histórico está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico… Não que tudo seja (só) simbólico… Mas nada existe fora de uma rede simbólica. O gesto do carrasco, ao cortar a cabeça do condenado, é real por excelência, mas a sua força maior está na sua dimensão simbólica. Por isso, é feita em praça pública, para que a choldra a enxergue…

Pois a decisão do TST rejeitando um agravo porque faltou pagar um centavo mais vale por seu simbolismo do que por sua “realidade”. Ou seja, é real por excelência, mas o seu simbolismo… Aí é que a coisa pega! O que mais vem por aí? Até onde vamos? Não acham que já chega? Que tipo de sociedade estamos construindo? Estamos no século XIX? Para quem não sabe da história, aí vai: a Orientação Jurisprudencial 140 da SDI-1 do TST considera deserto o recurso quando o recolhimento é efetuado em valor insuficiente ao fixado nas custas e nos depósitos recursais, ainda que a diferença seja de apenas um centavo. A partir desse entendimento, a 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho negou provimento, por unanimidade, a um recurso contra a deserção de um Agravo (Proc. Ag-AIRR 131-80.2010.5.10.0014). De acordo com o artigo 899, parágrafo 7º da CLT e da Instrução Normativa 3, do TST, a recorrente deveria efetuar o depósito da metade do valor máximo do Recurso de Revista que visava destrancar, ou seja, R$ 5.889,51 (metade de R$ 11.779,02). Mas a recorrente depositou um centavo a menos. É isso.

Pensem bem: como explicaríamos a alguém não familiarizado com o dia a dia do operador do Direito o que acabou de acontecer? Depois de um pigarreio, poderíamos dizer: “Olhe, é o seguinte: na Justiça do Trabalho, se o empregador é condenado em alguma demanda, ele tem de recolher um valor previsto em lei para poder recorrer da decisão. Se ele recorre e ‘perde’, pode até caber um novo recurso. Mas, para recorrer novamente, é necessário depositar praticamente o dobro do valor anteriormente recolhido. Ok? Agora, se esse segundo recurso não for admitido, cabe então um terceiro, contanto que o pretendente-ao-terceiro-recurso deposite ainda mais dinheiro, sempre seguindo uma intrincada fórmula legal. E se esse terceiro recurso não for admitido, cabe um quarto.” Eis aí. Opa! Mas não era nem isso o que deveria ser comentado…

Na verdade, o que me leva a comentar o caso não é o fato de caber tantos recursos, ou o de se exigir o depósito de mais e mais dinheiro para o exercício de um direito (?) processual. O que me leva a comentar é o fato de que, depois de o empregador/recorrente ter recolhido, ao que consta, mais de R$ 20 mil nessa verdadeira via crucis processual, um deles não foi sequer admitido porque faltou recolher um… Centavo!

Eis aí um daqueles casos que, lido com atenção, renderia boas teses. Será razoável permitir que uma decisão judicial de uma demanda individual percorra tantas instâncias? Ou: quais as garantias de aprimoramento qualitativo das decisões posteriores em relação aos provimentos jurisdicionais que lhe antecederam? Não há problemas com a garantia de acesso à jurisdição na exigência de expressivos depósitos prévios como condição à admissibilidade de recursos das decisões da Justiça do Trabalho (cabe Habeas Corpus da decisão que condiciona a admissão do recurso ao prévio pagamento — permitam-me a ironia… Ou nem tanto)? E por fim: qual é o princípio jurídico (no sentido que Dworkin dá a essa expressão), ou o argumento moral que justifica — dando de barato que caibam, enfim, todos esses recursos — a recusa a examinar o mérito de uma irresignação pelo fato de que faltou, em meio a mais de R$ 20 mil de depósitos prévios, um miserável centavo?

Insisto: se esses depósitos servem para garantia do pagamento do valor da condenação, que diferença fará o ilustre centavo? Se, enfim, fizesse alguma diferença, não caberia aí permitir que a parte complementasse o depósito? Não se costuma dizer que cooperação processual é um princípio? Então: não teria o Tribunal o dever de colaborar com a parte, que se perdeu em meio ao emaranhado legal que regra esses estranhos depósitos recursais? E o “princípio da cooperação processual”? Heim? Não vale nada? Bom, eu sempre disse que ele — o PrinCoopProc — não era princípio porque não tinha normatividade. Muitos me criticaram. Bueno. Que tal atacarem essa decisão do TST por falta de cooperação para com a parte? Com a palavra, meus Amigos processualistas civis que defendem o tal “princípio”.

Seguindo. Além de mais 2.321 perguntas que o TST deveria responder, a primeira é a mais simples: será que um depósito equivalente a 99,99983020658764% do valor determinado não pode ser considerado metade? E se fosse um centavo a mais, valeria? E por falar nisso, alguém anda vendo moeda de um centavo por aí? A Casa da Moeda não cunha moedas de um centavo desde 2004…! Vejam, eu não me atreveria a dar um centavo de esmola a um mendigo. Dá prisão em flagrante pelo crime de injúria real! Justiça, para mim, é para solucionar problemas, não para criá-los. Justiça sem justiça. Justiça sem justeza. Justiça que vive para a própria realeza. Uma justiça narcísica que não olha para o mundo. Interpretar, mesmo, ao que parece, é só um detalhe nessa máquina autofágica.

Trata-se de uma cegueira (anti)hermenêutica. E de total ausência de DNA jurídico nas decisões. Explico: examinando os milhões de julgados do TST, veremos que, por vezes, o Tribunal não dá bola, mas não dá mesmo, para a “letra da lei” (sic), como fez no caso em tela. Inova princípios a “mancheias”. Aliás, o TST constrói “leis”. Inclusive do tipo que fala em “centavos”. Mais vale um gosto que um centavo? Ou um vintém? Fetiche da lei? Ao perdedor, um centavo…

Dei-me a pachorra de ir atrás de uma informação que vai interessar aos leitores fieis desta coluna. Encontrei 3.390 incidências no TST acerca do “princípio da verdade real” (sic), inclusive algumas dizendo que o Direito Processual do Trabalho é o direito da “verdade real” (vejam Processo: AIRR – 253040 13.2004.5.09.0513). No Processo nº AIRR – 71540-44.2003.5.19.0004, lê-se que “a busca da verdade real é uma máxima almejada pelo processo do Trabalho”. Uau! E assim por diante. De todo modo, permito-me dizer que, primeiro, o próprio princípio (sic) da verdade real é uma fraude filosófica. Não resiste, hoje, a 30 segundos de discussão. Trata-se de uma mistura de dois paradigmas: a metafísica clássica e a filosofia da consciência. Esse “princípio” é uma mistura da falácia realista com o sujeito solipsista. Portanto, trata-se de um mero artifício retórico. Incrível: importaram o tal “princípio” lá do processo penal para o Direito do Trabalho.

Mas, vamos dar de barato: se de fato o TST acredita no “Princípio da Verdade Real”, por que, no caso do “centavo”, não o aplicou, se já o aplicara mais de três mil vezes? E olha que, nesses milhares de casos, há cada coisa… Em nome da “verdade” (“real”), dispositivos foram deixados de lado, súmulas foram ultrapassadas e fatos foram, por assim dizer, “essencializados”. Pergunto: a falta do malsinado centavo é uma coisa que fica no âmbito da “verdade real” ou da “verdade formal”? Lembro, aqui, da Novela do Curioso Impertinente, de Miguel de Cervantes. O fidalgo (que quer dizer, hijo de algo, e aqui o faço esteticamente apenas para homenagear as célebres Siete Partidas de Afonso X) Ancelmo acreditava na verdade real… Já seu amigo Lotário, não. E ele tentou avisar a Ancelmo, mas… Bueno, vamos a dejarlo… Vamos a hablar de otras cosas…

Dizendo de outro modo: a tal “Orientação” do TST, que não deixa de ser uma interpretação de outra interpretação (do artigo 899, parágrafo 7º do CPP) a ser interpretada pelo intérprete do caso concreto do único centavo (que a fez mal, aliás), é a tentativa (vã) de aprisionamento da realidade através de verbetes com pretensões universalizantes, como venho denunciando há tantos anos. Esse é o ponto. O furo é mais embaixo. O problema não é a tal da “Orientação” “em si”. É o que ela representa simbolicamente. É a crença em “universalizações” anti-hermenêuticas. E o poder discricionário que disso dimana.


A decisão — como tantas outras que pululam em terrae brasilis — é a consubstanciação do senso comum teórico-jurídico, atrelado ao pensamento matemático abstrativizante (no sentido kantiano, mas bem que poderia ser aritmético também), que não consegue enxergar que a interpretação só se dá no caso concreto e que há princípios.

Ou não conhecem a existência do princípio do acesso à Justiça? Pois negar um recurso por um centavo é rasgá-lo e pisoteá-lo (não o centavo, o princípio…!). Quantas decisões o TST tem prestigiado o princípio do acesso à Justiça? No Brasil existem, por baixo, 30 mil livros jurídicos publicados sobre tudo que é tema. E sobre o princípio do acesso à Justiça deve ter uns 800. Dissertações de mestrado e teses, umas 200. Todos os livros, dissertações e teses dizem que princípios são normas. Ora, se são normas, os princípios devem valer mais do que uma instrução normativa ou coisa que o valha, pois não? Ora, será que um princípio constitucional como o do ACESSO À JUSTIÇA não vale mais do que uma regra secundária feita pelo TST?

Se uma regra (Orientação) do TST vale mais do que um princípio constitucional, é melhor fecharmos o parlamento, desmontarmos o poder constituinte e voltar a estudar o caso Marbury versus Madison (o velho Marshall era o cara, pois não?). Ou vamos nos entregar à fragmentação, estudando os manuais de baixa densidade que conformam o imaginário jurídico. Eles dizem e incentivam isso. É “bom” que continuem simplificando o direito (se o direito fosse fácil, seria “periguete”, ou seja, “fácil de pegar”… Por isso a minha luta pela “desperiguetização” do direito…). No caso — e aqui permito-me um pouco de pieguice (que o caso, afinal, requer) — vou parafrasear Martin Luther King: o que me preocupa, aqui, não é o que a maioria da comunidade jurídica pensa sobre isso; o que me preocupa é o silêncio dos bons! Mas, onde eles estão? Ora, direis, ouvir estrelas… Bueno. É isto. Poderia parar por aqui. A crítica está feita.

Mas… Creio que isso não basta. Como disse no início, preocupa-me o efeito simbólico disso tudo. Saramago tem dois romances que se complementam: o Ensaio sobre a Cegueira, em que as pessoas, menos uma, ficam cegas e o Ensaio sobre a Lucidez, onde as pessoas de um determinado país, sem qualquer mobilização prévia (sem Twitter, sem texto no ConJur, sem nada) decidem votar em branco. Abstenções e votos em branco. Desobediência civil. Talvez em terrae brasilis os advogados (e os estagiários) pudessem fazer um Ensaio Cotidiano sobre a Lucidez, para enfrentar a “cegueira” que se abate nas instituições. Por isso, insisto, sempre homenageando o velho Stéphane Hessel: indignai-vos! Vou dizer de novo: Indignai-vos!

Nossa sociedade, ao invés de capilarizar a democracia, capilarizou o poder discricionário, que acaba se transformando em autoritarismo. Nossa sociedade está gestando um ovo da serpente do autoritarismo. Você nem se dá conta porque, de um modo ou de outro, faz parte disso. É como o que ocorre no livro O Jovem Törless, do grande Robert Musil. Do guarda de trânsito, que multa arbitrariamente (ou seria discricionariamente?) ao porteiro do prédio, ao agente que revista a sua mala no aeroporto, ao ministro que edita uma Portaria, ao árbitro de futebol, ao chato do síndico do prédio, ao meirinho dos Juizados Especiais etc. Nossa herança patrimonialista nos contaminou. Somos autoritários. Em vez de investir na infraestrutura das cidades, os governos contratam… Guardas de trânsito. Em vez de fazer políticas públicas de saúde, os governam fornecem… Advogados para os utentes (e com isso reforçam o poder discricionário do Judiciário). Em vez de construir presídios, o governo federal investe em… Concessão de indultos e anistias. E já não sabemos como “cortar” isso. Perdemos nossa capacidade de indignação. Perdemos nossa capacidade de enxergar a diferença. Todos os gatos são pardos, compreendem? O poder discricionário… Inexoravelmente se transforma em autoritarismo. E os utentes em geral? Indignam-se no varejo e se omitem no atacado. Somos uma “perfeita” simbiose entre a anorexia e bulimia. Somos anoréxicos informacionais porque não temos apetite por conhecimento; queremos apenas informações e… Por intermédio de drops. E somos também bulímicos, porque, quando algum conhecimento reflexivo passa pelo filtro, vomitamo-lo.

As instituições encarregadas de aplicar a lei e fazer justiça deveriam dar o exemplo de democracia. O que leva um Tribunal a decidir sem critérios? O que leva um Tribunal (e aqui é a questão é lato sensu) a decidir hoje de um modo e amanhã de outro? O STJ deixa de aplicar o artigo 212 do CPP sem fazer qualquer juízo de constitucionalidade… E, no dia seguinte, nega um recurso apegando-se à literalidade da lei. Ainda nestes dias, o STJ negou validade ao dispositivo da Lei das Interceptações Telefônicas. Não deu bola para o “texto da lei”; para o STJ, onde está escrito 15 dias mais 15, leia-se, 15, mais 15, mais 15, mais 15… Na Europa, uma decisão dessas seria considerada um escândalo hermenêutico. Ou seja: um dia a lei “vale tudo” (objetivismo); no outro, o paraíso é o subjetivismo. Em um dia, o STJ nega um recurso em um caso de furto de dois frangos, uma panela e outros objetos, todos avaliados em R$ 88,50 (REsp 1.094.906); no outro, concede um Habeas Corpus para trancar a Ação Penal em um caso de sonegação fiscal no valor de R$ 4.239,36 (HC 101.505), com base na insignificância! Poder discricionário é isso! Há poucos dias o TST concedeu um HC para um jogador de futebol, invocando um precedente sem qualquer contexto. Poder discricionário é isso. E houve um silêncio eloquente da comunidade jurídica. Se examinarmos a história do TST — e isso vale para outros tribunais de terrae brasilis — constataremos uma história de discricionariedades e decisionismos. Uma observação que vale como tutela antecipatória: antes que chovam críticas às minhas críticas à discricionariedade, peço que leiam o que escrevo em vários livros, todos baseados em Gadamer e Dworkin. Negar a discricionariedade não quer dizer “proibição de interpretar”… Isso seria uma estultice. Critico a discricionariedade a partir do que entendo por Direito, isto é, Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador!

No Brasil, mormente depois da Constituição, instaurou-se um imaginário decisio-discricio-voluntarista. Sob pretexto de “derrubarmos” o juiz boca-da-lei (que, na Justiça do Trabalho, nunca foi assim),[1] coloca-se no seu lugar o império dos princípios. Mas sem (muitos) limites… Por vezes, nenhum limite! Por isso, nunca sabemos como será a decisão. E com a chegada da “ponderação”, a coisa piorou. Prova-se qualquer coisa. Basta repetir o mantra “eu pondero”. Tenho denunciado isso desde os anos 1990. Trata-se de uma crise paradigmática, que explico em Hermenêutica Jurídica (e)m Crise, Verdade e Consenso e no O Que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? Não posso me ocupar disso aqui, para a coluna não ficar muito extensa (há reclamações de que as colunas estão muito longas…). Então, serei breve: importamos indevida e equivocadamente a jurisprudência dos valores, a teoria da argumentação alexyana (que foi lida por aqui de forma simplista, a partir da vulgata ponderativa ou ponderacional…) e o ativismo norte-americano. Tudo aqui chega tarde. Resultado: passamos a achar que o verdadeiro protagonismo na fase pós-Constituição não deveria ser da sociedade, do executivo ou do parlamento e, sim, do Judiciário. É como se estivéssemos na fase do socialismo processual preconizado na virada do século XIX para o século XX. Ainda não exorcizamos os fantasmas de Klein, Menger e Von Bülow. Urgentemente.

Admito que o Judiciário possa ser protagonista em face da incompetência dos demais poderes… Sempre admiti isso. Só o que ele não pode(ria) é achar que pode decidir de qualquer modo. O Direito não é aquilo que os tribunais dizem que é. Se isso fosse verdadeiro, deveríamos desistir de fazer Direito; fechar as faculdades e os cursos de pós-graduação. Se a doutrina não serve para nada, temos que dar razão ao min. Humberto Gomes de Barros, que disse, com poucas contestações (fui um dos poucos que bateu nisso) que “Não me importa o que pensam os doutrinadores.” (ver o “Ao contrário do ministro, devemos nos importar (muito) com o que a doutrina diz”).


Criaram-se lendas urbanas, que são inclusive repetidas nas salas de aula: de cabeça de juiz, barriga de grávida e urna não se sabe o que vai sair. Ledo engano. A contemporaneidade acabou com pelo menos dois dos três vértices do triângulo do “mistério”: o exame de ultrassom, que existe até no hospital na fronteira com a Colômbia e os institutos de pesquisa apontam com certeza o sexo da criança e o resultado das eleições. E quanto à cabeça do juiz?[2] Bem, com uma teoria da decisão, deveríamos ter uma previsibilidade acerca do que será decidido. Afinal, o Direito compõe-se de uma estrutura discursiva, composta de doutrina e jurisprudência, a partir da qual é possível sempre fazer uma reconstrução da historia institucional, extraindo daí aquilo que chamo de DNA do Direito (e do caso). Isso quer dizer que sentença não vem de sentire; sentença não é uma escolha do juiz; sentença é decisão (de-cisão). Há uma responsabilidade política dos juízes e tribunais, representada pelo dever (has a duty) de accountability (hermenêutica) em obediência ao artigo 93, inciso IX, da CF. Portanto, a sentença ou acórdão não deve ser, em uma democracia, produto da vontade individual, do sentimento pessoal do decisor. E isso não é uma ideia minha. Aliás, parafraseando Fernando Pessoa, a crítica à discricionariedade não é uma ideia minha; a minha ideia sobre a crítica à discricionariedade é que uma ideia minha. Não inventei isso. Perguntem para Dworkin e Habermas…! E tudo isso que estou escrevendo não é contra o TST, o STJ etc. É a favor da democracia. E a favor das Instituições. Despiciendo repetir esse alerta.

Diminuir ao máximo a discricionariedade nas decisões é dever de quem decide. Os direitos dos cidadãos não podem ficar reféns da intuição (ou dos humores) do julgador (ou Tribunal). Isso parece evidente. Portanto, não têm razão aqueles que repetem o que disse Kelsen no oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito (“a interpretação feita pelos juízes é um ato de vontade”). Ele disse isso porque era um pessimista moral. Disse isso exatamente porque era o contrário do que ele queria na sua TPD.

Por isso, Direito não é loteria. Hoje minha causa “cai” em uma Câmara ou Turma… amanhã em outra…! Ora, se não tivermos padrões interpretativos (chamemos de princípios) as decisões se convertem em produtos da vontade individual. E, assim, nos surpreenderão a cada momento.

Surpresas como: em um dia um Tribunal faz uma ode aos princípios, chegando a inventar princípios (sabemos que a fábrica de princípios vai de vento em popa) e, em outro, apegar-se a um exegetismo que faz inveja aos exegetas franceses do Século XIX ou aos aprendizes dos pandectistas alemães da jurisprudência dos conceitos… (embora estes fossem muito mais sofisticados do que os neopandectistas de terrae brasilis). Chegamos ao cúmulo de judicializar o amor de pai e filho… Em um dia, parece que prospera o Angelo I; em outro, o Angelo II (para quem não sabe do que estou falando, refiro-me a peça Medida por Medida de Shakespeare, que está nesta coluna, no texto “É possível fazer direito sem interpretar?”). Não deveríamos levar o Direito (mais) a sério, como alerta Francisco Borges Motta, no seu excelente livro “Levando o Direito a Sério” (Livraria do Advogado, 2012)?

É nesse contexto que analiso a decisão do TST do “um centavo”. No seu aspecto simbólico. É. Afinal, quanto vale o narcisismo judicial? Se, por um lado, R$ 0,01 foi considerado dinheiro suficiente para definir que não seria conhecido o tal recurso, por outro, R$19.999,99 não são considerados suficientes para que a União promova uma execução fiscal, conforme a imperial portaria do min. Mantega (n.75/2012). E R$ 4.239,36 é insignificante! Machado de Assis, no conto A Igreja do Diabo, já fizera a previsão… É a eterna contradição humana. Ou o “meu reino por um centavo”!


[1] Observação: a Justiça do Trabalho, justiça seja feita, colocou-se contra o juiz boca da lei muito antes da Constituição. Só que — e esse é o ponto — antes da CF isso era relevante. Não havia Constituição, nem teoria constitucional… Não havia ordenamento democrático. Mas, atenção: sobrevinda a Constituição, deveria ter sido interrompido esse “realismo jurídico” ou outro nome que se queira. Os princípios e preceitos que tratam dos direitos fundamentais foram introduzidos na CF exatamente para afastar a necessidade de axiologismos. E, fundamentalmente, a Constituição trata da democracia. E democracia é controle de decisões. É accountability. E tratar as partes com equanimidade. Todas as partes. Fairness. essa é a palavrinha “mágica”. Portanto, não “me levem a mal”. Estou apenas defendendo a democracia!

[2] Atenção: se pensam que a aposta no “protagonismo” é coisa de juristas e de cursos de pós-graduação em Direito, tirem o cavalo da chuva. Na pós em Letras defendem-se dissertações que dizem as mesmas coisas… Continua a aposta no sujeito solipsista. Há pouco tempo um juiz defendeu a tese sobre intertextualidade. Na notícia, lê-se excerto da tese: ‘‘O magistrado, ao escolher as palavras para elaborar a sentença, ao selecionar os argumentos das partes, imprime a sua marca pessoal, a sua postura ideológica’’. Ah, bom. De novo o mantra “sentença vem de sentire”? E a democracia? Ao invés de dependermos de uma reconstrução da história institucional, da linguisticidade etc. (ver meu Verdade e Consenso), o juiz defende, intertextualmente, que devemos depender de “sua marca pessoal”, onde está “a sua postura ideológica”. Na década de setenta, qualquer marxista denunciava isso. Achei que hoje, na democracia, as decisões já não deveriam ser (e ter) a “marca pessoal do juiz” (o que diriam disso, p.ex., Habermas, Luhmann, Dworkin e Gadamer?). Ora, se meu direito depende da subjetividade do juiz, então, lamento dizer, estamos frágeis, muito frágeis. E dependentes.

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