Força probatória

Banco de DNA: O Brasil está preparado?

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9 de maio de 2012, 14h31

Foi aprovado, pelo Congresso Nacional, o Projeto de Lei do Senado 93, de 2011, que obriga as pessoas condenadas por crimes praticados com grave violência contra a pessoa ou por qualquer outro crime hediondo a fornecerem material genético, por método adequado e indolor.

A coleta desses materiais visa, primordialmente, a alimentação de um banco de dados que contém o DNA de todos esses condenados para, ao se deparar com qualquer material genético encontrado em uma cena de crime (ou na própria vítima), poder compará-lo com os DNAs já catalogados. A “mágica” que assistimos nos seriados policiais americanos, em que um material genético é pesquisado em um sistema e, em minutos, descobre-se um probabilíssimo suspeito, está prestes a acontecer no Brasil. E isso, em tese, é ótimo.

Não se trata, como alguns juristas têm defendido, de se obrigar a pessoa a produzir prova contra si mesma. O projeto não obriga o acusado a fornecer material genético para ser confrontado no caso em que está sendo processado. O fornecimento obrigatório só acontecerá se o indivíduo for definitivamente condenado. E, então, ficará para sempre identificável.

E não se deve taxar de inconstitucional lei que prevê a identificação criminal, por qualquer meio não degradante, de indivíduos condenados. Afinal, o direito de não produzir provas contra si mesmo pode e deve ser usado em um processo ou investigação penal, mas jamais pode servir como um coringa para a prática de novos delitos.

Afinal, repita-se: o acusado/investigado não será obrigado a fornecer material enquanto estiver processado. A obrigação é posterior, em caso de condenação e para servir como prova em eventuais processos futuros.

Aliás, não se pode esquecer: um exame de DNA nunca será, isoladamente, prova cabal de culpa. Afinal, provar-se que o indivíduo estava na cena de um crime, ou provar-se que teve relações sexuais com a vítima não o torna, automaticamente, culpado do crime investigado. No entanto, prova de DNA pode, mesmo isoladamente, ser prova cabal de inocência. Se uma vítima de estupro aponta um inocente como seu algoz, com ou sem intenção de prejudicá-lo, um confronto com resultado negativo entre o DNA coletado na vítima e o do suspeito, invariavelmente, deverá resultar em absolvição.

Em outras palavras, a aprovação do PL 93/2011 pelo Congresso deve ser comemorada. No entanto, sem uma rigorosa regulamentação do Poder Executivo e uma intransigente interpretação do Poder Judiciário, o que foi criado como solução pode se tornar um terrível pesadelo. Explica-se, sem a pretensão de esgotar o tema:

Primeiro ponto: provas de DNA são, via de regra, as mais fáceis de sofrer algum tipo de contaminação. Imaginemos que um indivíduo "A" tenha cadastrado seu DNA no banco de dados governamental e seja suspeito da prática de um crime, com vestígios de sangue na cena do crime. Se o perito examinar com uma luva o sangue de "A" e, posteriormente, com a mesma luva, manipular o sangue deixado na cena do crime, há possibilidade real de o próprio perito, mesmo sem dolo, contaminar o sangue da cena do crime com o sangue de "A", resultando em um falso positivo. O problema de um falso positivo como esses é que o sangue encontrado na cena do crime ficará para sempre contaminado, mesmo se for realizada nova perícia. Assim, o procedimento para o manuseio de amostras deve ser rigoroso, e qualquer falha (ou mesmo a possibilidade de ter havido uma falha) deve anular, por completo, a força probatória do resultado positivo. Não anula, porém, resultado negativo, visto que não há a possibilidade de contaminação para se retirar um DNA de uma amostra. Se deu negativo, respeitado ou nao o procedimento, a prova é valida.

Segundo ponto: qualquer prova colhida de uma cena de crime e examinada deve ficar armazenada e não deve ser destruída. Nunca. Esse cuidado visa não só possibilitar contraprova pela defesa daquele que for acusado por um crime, como permite, no futuro, conectar casos não solucionados. Imagina-se a seguinte situação: um sangue colhido em uma cena do crime é catalogado no banco de dados e o crime fica sem solução, com o consequente arquivamento do inquérito. Anos depois, um indivíduo é condenado por outro crime e, para sua identificação criminal, é colhido o seu material genético. Suponha-se, continuando o exercício imaginativo, que o sangue encontrado na primeira cena do crime seja confrontado com o sangue do indivíduo (e isso acontecerá automaticamente em razão da tecnologia do CODIS, software doado pelos EUA para o Brasil para essa catalogação) e resulte em um confronto positivo. Se esse indivíduo for investigado ou processado pelo primeiro crime, terá o direito de requerer exame pericial no próprio material genético, e não nos dados armazenados pelo CODIS, razão pela qual seria necessário o seu armazenamento adequado.

Terceiro ponto: o armazenamento desse material deve ser impecável. Atualmente, no Instituto de Criminalística de São Paulo, por exemplo, os sangues coletados ficam em câmara fria com temperatura acima da adequada, por falta de recursos. Como se confiar em prova assim armazenada? Também se tem notícia do uso de "kits para extração de DNA" com validade vencida pelo IC de São Paulo. Se isso atualmente ocorre em São Paulo, a maior cidade brasileira, é assustador pensar-se os possíveis erros que podem haver pelo Brasil afora. Muitos dirão que é impossível se guardar, eternamente, uma prova, por falta de espaço físico para tanto. Ora, se desejamos nos aproximar das tecnologias e métodos já existentes em outros países, que o façamos por inteiro. Não basta simplesmente fazer uma lei "para inglês ver". Sua aplicação precisa ser impecável, tal qual ocorre nos países onde leis similares já existem.

Quarto ponto: a cadeia de custódia da prova também deve ser impecável. A cadeia de custódia de uma prova nada mais é do que a segurança de que, ao analisar uma prova retirada de uma cena do crime, o perito está de fato verificando aquela prova, sem qualquer possibilidade de contaminação. O procedimento padrão, com menos chance de falhas, é a utilização de um lacre em absolutamente todas as provas coletadas na cena de um crime. Cada lacre possui um número que o identifica, e não existem dois lacres com o mesmo número. Cada vez que algum perito precisar analisar aquela prova, lacrada, precisará romper o lacre, analisar a prova e, depois, colocar novo lacre, com nova numeração. Isso tudo deve ser descrito em laudos, para que se tenha a certeza que aquela prova nunca foi indevidamente manuseada.

Faço um parêntese para contar o ocorrido no caso Gil Rugai, em que atuo, ao lado do brilhante Thiago Anastácio, como defensor nomeado, em razão de convênio da Defensoria Pública paulista com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Achou-se um sangue na cena do crime que, aparentemente, não pertencia às vitimas. Esse sangue foi lacrado e o número do lacre consta de sua apreensão, ainda no local do crime. O sangue, em 2004, foi confrontado com o sangue de Gil Rugai e o resultado foi inconclusivo. Em 2011, diante de novas tecnologias que, talvez, permitiriam um exame conclusivo, a defesa requereu fosse novamente realizado o exame. Para nossa surpresa, o lacre que constava em 2011 era o mesmo que foi colocado ainda na cena do crime. A pergunta é: se o sangue foi analisado, como foi possível sua análise sem o rompimento do lacre? Possivelmente referido exame, apesar de assinado por perita com "fé pública", nunca foi realizado. Isso tudo apenas para dizer: se isso ocorre em caso high profile como o de Gil Rugai, dá arrepios imaginar o que é feito com Joões e Marias por aí.

Quinto ponto: a cena do crime deve ser devidamente isolada. Na Flórida, onde tive o privilégio de acompanhar um grupo de peritos em um curso voltado à investigação de homicídios, o primeiro policial que atende uma chamada responde, civel e criminalmente por qualquer violação do isolamento. Assim, ao atender uma chamada de crime que deixa vestígios, o policial isola a área e tem o dever de identificar cada um que entra na cena do crime. Um por um, incluindo os poderosos chefes, imprensa, etc. Lá, em um caso relatado pelo policial John Meeks, com quem fiz uma ronda noturna, todas as provas foram descartadas porque houve a entrada, na cena do crime, pela imprensa. Assim, como havia dúvida na integridade dos materiais coletados pela policia e analisados pela perícia (que poderiam ter sido plantados, contaminados, retirados, etc.), não havia como se dar credibilidade a elas. Ao contrário do que aconteceria no Brasil, a polícia não chiou da decisão judicial: Aperfeiçoou-se para os casos futuros.

A lista de possíveis problemas aqui apontada, definitivamente, não é taxativa. Com o tempo, outras duvidas surgirão e deverão ser discutidas. O Judiciário brasileiro, por sua vez, precisa ser intransigente. Qualquer falha, por menor que seja, deverá anular a força probatória da prova. Assim, ao invés de causar a impunidade, o Judiciário "ensinará" a polícia e a perícia como proceder sem falhas. Afinal, por mais garantista que se seja, todos torcem pela solução de crimes violentos. E por mais conservador e rígido o pensamento, ninguém pode negar: é melhor a sociedade que absolve dois culpados, do que aquela que condena um inocente.

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