Direito & Mídia

A ética jornalística na berlinda

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9 de maio de 2012, 14h01

Spacca
A profissão do jornalista também é regida por um código de ética. Revisado em 2007, ele afirma, no artigo 11, que “o jornalista não pode divulgar informações: I) visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica; II) de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes; III) obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração”.

Há tempos, tive problema em sala com um aluno da pós-graduação, repórter de uma emissora de TV, que saiu em defesa do uso da câmara oculta para a realização de uma reportagem sobre drogas. Pouco tempo depois, circulou na internet um vídeo em que este mesmo rapaz entrevistava alunos da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo fumando maconha (pode ser conferido no YouTube buscando “Alunos da USP fumando maconha”). Numa linguagem eivada de preconceito, o narrador informou que a reitora não quis se pronunciar sobre o assunto.

Eis a defesa do aluno: ele fazia jornalismo investigativo. A pergunta, no caso do filmete-denúncia no campus da USP, seria: a quem interessa semelhante esforço investigativo?

“Todo jornalismo tem de ser investigativo, por definição”, já disse o jornalista Gabriel García Márquez. A frase é ótima e tem efeito. Mas não contém tanta verdade como parece. Se for mesmo verdade que qualquer prática jornalística pressupõe investigação, há uma categoria que se diferencia pelo planejamento das etapas, tempo despendido e estratégias de pesquisa: ela é o jornalismo investigativo. Infelizmente, é a categoria menos praticada hoje.

Nenhuma empresa investe tempo e recursos humanos para apurar temas do interesse público. A maioria dos textos veiculados pela mídia chegam prontos às redações de jornais, emissoras de rádio ou de televisão e também para os portais de internet. Chegam na forma de releases (comunicando que haverá o coquetel de lançamento ou que houve uma coletiva em que o governador fez determinada declaração); notícias enviadas por agências (alguém apurou ou presenciou o fato ou tragédia); ou de outros sites ou programas de rádio. Nem tudo o que é publicado é fruto de investigação.

Mas jornalismo se faz com checagem das fontes, conversas demoradas com os responsáveis por um fato novo, com a confirmação dos dados com as autoridades. Nisso a prática da profissão se diferencia das outras.  

A imprensa é cortejada: laboratórios farmacêuticos, indústria automobilística, órgãos governamentais, presidentes de clube de futebol. Com o tempo, eles se aparelharam para produzir notícias, fatos, declarações, e ganhar espaço na imprensa. Mesmo com toda a “eficácia persuasória da publicidade”, o fato de um modelo da Honda ser apontado como “o preferido” pelos leitores de uma revista rende maior credibilidade do que o anúncio publicitário da montadora afirmando o mesmo. O aval da imprensa pesa mais do que o anúncio criado para a fábrica.

Na investigação, o repórter descobre documentos e provas de atividades desconhecidas do público. É o tipo de matéria-denúncia que desemboca em investigações oficiais, clássico exemplo da imprensa pressionando as instituições em nome do interesse público. Nesse trabalho, o repórter utiliza táticas similares às do policial, saindo em busca de informações, consultando documentos públicos, atuando como um detetive. Um bom exemplo é a histórica reportagem de Jânio de Freitas antecipando o resultado de uma concorrência pública para a construção da Ferrovia Norte-Sul no Governo Sarney.

Esse trabalho nem sempre exige helicópteros ou batedores. O jornalista Percival de Sousa e a investigação do affair Sacomani (ex-dirigente do Palmeiras) é um bom exemplo: o fio do novelo foi descoberto a partir da atenta leitura do Diário Oficial e a citação de uma audiência no Judiciário, detalhe que Percival pescou no ar.

Esse assunto da reportagem investigativa volta agora à discussão, por dois fatos. E ambos mostram que a ética está perdendo valor, como o sal do texto bíblico.

O primeiro caso foi a reportagem veiculada no programa Fantástico, da TV Globo, no domingo 18 de março. O repórter Marcelo Faustini, disfarçado de gestor de compras de um hospital público, no Rio de Janeiro, recebeu quatro representantes de empresas fornecedoras. Com três câmaras escondidas, dizendo-se novato na função, ele formulou perguntas básicas sobre como funciona o esquema das falsas licitações. Uma das representantes comerciais entrevistada explicava, aos risos, como se faz o dinheiro público ir para o ralo. A reportagem foi ao ar e teve grande repercussão.

Pouqíssimos questionaram o fato de que o repórter obteve as provas infringindo o código de ética: as imagens e confissões foram “obtidas de maneira inadequada, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfone oculto”, como diz o código.

O programa Observatório da Imprensa na TV tratou do assunto em sua edição de 27 de março, num debate que reuniu, entre outros, Luiz Garcia, articulista do diário O Globo; Caio Túlio Costa e Claudio Tognolli, este diretor-fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e professor da USP. Além de Cristiane Finger, professora da pós-graduação do Departamento de Comunicação da PUC-RS. O código de ética perdeu de goleada no debate.

Luiz Garcia afirmou que “um repórter que grava alguém propondo ou revelando ato ilícito está exercendo ‘jornalismo da maior qualidade’. Eles [os entrevistados] tiveram sua privacidade invadida, sim. E foi muito bem feito”. Tognolli acredita que o jornalista deve se valer de todos os instrumentos disponíveis para revelar informações relevantes para a sociedade. Mas Cristiane Finger ponderou que as imagens captadas por câmeras ocultas são sedutoras para quem assiste e facilitadoras para quem grava. Mas que a câmera escondida é uma armadilha contra o entrevistado. “A gente comete dois crimes ali. Um, contra os direitos individuais das pessoas. Nós não estamos em um regime de exceção, as pessoas têm direitos individuais. O segundo crime é de falsa identidade. Ou seja, estamos nos fazendo passar por outra pessoa. Isso é crime previsto no Código Penal”, criticou.

Esta semana, repercutindo longa matéria do programa Domingo Espetacular, da TV Record, a revista CartaCapital dedica sua capa à denúncia de que os dossiês publicados recentemente com alarido pela revista Veja, supostamente duro trabalho de jornalismo investigativo, não passaram de pacotes preparados pelo lobbista Carlos Cachoeira para desestabilizar secretários de Estado e favorecer a construtora Delta, que prontamente foi colocada à venda (seria comprada pelo grupo  JBS).   

A prática de publicar dossiês sem a necessária investigação da idoneidade e dos interesses de quem “dá de bandeja” um furo, contraria um dos conselhos do professor britânico Peter Burke, de que se deve sempre fazer a pergunta: “Quem está me mandando isso e qual o seu interesse na divulgação”. Uma das regras de ouro do jornalismo é o exercício do contraditório, ouvir a versão da outra parte.

O fato grave, no caso da Veja, é a revelação de que o lobbista chegou à ousadia de indicar em que edição e em que espaço da revista uma notícia deveria ser divulgada. Como escreve CartaCapital, o contraventor se arvora em “pauteiro da revista”. A Veja que se defenda.

O círculo virtuoso deveria ser o jornalista investigar e descobrir as fraudes, levando o tema para a esfera governamental: o Ministério Público e a Polícia Federal deveriam correr atrás do prejuízo, confirmando as denúncias e instaurando processos. Pois deve ficar clara a distinção do papel da imprensa e do jornalista e a função da polícia e da justiça. Nunca é demais lembrar: o jornalista pode investigar, mas sua função é informar; o policial tem a obrigação de investigar e de denunciar. E quem julga e quem condena (ou absolve) é o juiz. Há jornalistas fazendo de tudo: investiga, denuncia, julga e condena (absolver, jamais). Às vezes, até informa.

Infelizmente não é o que ocorre. Lembro-me do relato de uma aluna, Solange Cavalcanti, brilhante repórter que frequentava meu curso de Jornalismo em Revista em 2003. Convocada para cobrir férias de uma repórter na revista Época, Solange teve de redigir um pequeno texto sobre a rebelião num presídio do Rio. Sem meios de realizar uma apuração honesta, diante do desencontro das informações online, ela teve de decidir o desfecho do fato. Reproduzo um trecho de seu texto:

“24 de julho de 2003. Paulo Roberto Rocha, coordenador dos presídios de Bangu, no Rio de Janeiro, é assassinado. ‘Tem que publicar’, determina o editor. A reação é literalmente automática. A repórter escolhe, de forma aleatória, três sítios na internet para a ‘checagem’ da notícia. Neles, não há acordo nem quanto à hora do crime nem onde o tiro acertou. Entre informações que indicam a nuca e as costas, 20h30 ou 23h, é uma estagiária quem faz a escolha: Rocha foi assassinado às 23h com um tiro nas costas. Nenhum contato com a polícia do Rio, com o necrotério, com repórteres locais da mesma empresa, nada”.

Não é desse tipo de jornalismo que precisamos.

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