Consultor Tributário

O ICMS sobre a demanda contratada de energia elétrica

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

9 de maio de 2012, 14h30

Em 2009, o STJ pacificou a questão em favor dos Fiscos estaduais (“Súmula 391. O ICMS incide sobre a tarifa de energia elétrica correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada”[1]), mas pende de julgamento no STF o RE nº 593.824/SC, com repercussão geral reconhecida.

Numa primeira fase, que durou de 2000 a 2009, definiu-se erroneamente a demanda contratada como uma quantidade de energia que os grandes consumidores — sujeitos à tarifa binomial de energia elétrica, composta de energia consumida e demanda contratada — adquiriam antecipadamente, e que poderiam ou não vir a utilizar, a depender de suas necessidades.

Diante de tal enquadramento, consolidou-se a orientação primitiva do STJ no sentido de que tal parcela da tarifa binomial não deve ser onerada pelo ICMS.

Fundou-se essa jurisprudência na noção juridicamente correta (mas inaplicável) de que o mero contrato de compra e venda não basta para transferir a propriedade do bem, o que só ocorre com a tradição. Por isso, é esta — e não aquele — que define a ocorrência do fato gerador do ICMS.

Com apoio na legislação regulatória do setor elétrico (Resolução nº 456/2000 da ANEEL), as Fazendas estaduais trouxeram o tema novamente à baila, demonstrando que demanda contratada de potência não é uma reserva de quantidade de energia, mas sim a remuneração da infra-estrutura necessária à sua transmissão/distribuição.

Com efeito, energia consumida é a quantidade de energia elétrica, expressa em kWh, absorvida por um consumidor a cada mês. Por seu turno, a potência, expressa em kW, é a relação dessa quantidade de energia por unidade de tempo.

Assim, uma indústria que tenha uma máquina ligada 24h por dia tem o mesmo consumo de outra que tenha 48 máquinas idênticas ligadas apenas meia hora por dia. A demanda de potência, entretanto, será diversa, visto que a mesma quantidade de energia terá de ser entregue em período muito mais curto.

À primeira basta uma infra-estrutura de transmissão mais modesta, ao passo que a alimentação da segunda exige cabos de bitola mais larga, transformadores mais resistentes, etc., de sorte a evitar o colapso do sistema.

Para os pequenos consumidores (residenciais, v.g.), a demanda de potência é reduzida, de sorte que não há necessidade de contratação à parte de uma infra-estrutura de transmissão especial. O custo da transmissão vem diluído no preço da energia, dando lugar à chamada tarifa monômia de energia elétrica (composta de uma só parcela).

Já para os grandes consumidores, a potência necessária pode chegar a níveis elevadíssimos e, ademais, muito díspares de um para outro.

É justo, portanto, que cada um suporte o custo da infra-estrutura cuja instalação exige, o que se faz por meio da demanda reservada – cuja legalidade já foi atestada pelo STJ[2].

Reconhecê-lo não acarreta, porém, a conclusão imediata de que esta parcela da tarifa binomial deva submeter-se ao ICMS, o que só ocorrerá se corresponder ao preço de mercadoria ou de serviço de transporte interestadual ou intermunicipal ou de comunicação, pois estes são os únicos fatos geradores do imposto, segundo a Constituição.

De serviço de transporte ou de comunicação claramente não se trata[3]. Nem de contraprestação por operação de circulação de mercadoria, já que a energia consumida é cobrada em separado (pela outra parcela da tarifa binomial), e que a infra-estrutura custeada pela demanda reservada pertence e continuará a pertencer à concessionária, não havendo falar-se em alienação tributável.

Tampouco há falar em serviço de qualquer natureza não incluído na lista do ISS (CF, art. 155, § 2º, IX, b[4]), pois se trata de simples direito de utilização da infra-estrutura de transmissão/distribuição de energia, não havendo – da parte da concessionária – qualquer atividade consistente num facere que pudesse justificar a qualificação como serviço. Sobre a valia do conceito civil de serviço para a delimitação da competência tributária dos Municípios já se pronunciou o STF no RE nº 116.121/SP[5].A tese dos Estados é a de que a demanda reservada se incluiria no valor da operação de fornecimento da energia (base de cálculo do ICMS), visto que este não se faz sem recurso aos equipamentos por aquela custeados.

A conclusão, obtida por meio de raciocínio econômico, não tem as conseqüências jurídicas, nomeadamente tributárias, que se lhe deseja atribuir.

Primeiro porque formas diversas de contratar uma mesma utilidade podem atrair regimes tributários diferentes, uns mais e outros menos favoráveis a um certo Fisco. Pense-se no fornecimento de refeições por hotéis. Se estas estiverem incluídas nas diárias, sujeita-se o seu valor ao ISS, a teor do item 9.01 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003[6]. Do contrário, sujeita-se ao ICMS, na forma do art. 2º, I, da Lei Complementar nº 87/96[7].

E depois porque a forma de remuneração das concessionárias de energia elétrica pelos grandes consumidores não é opcional (como no exemplo acima), mas atende à legislação regulatória, que determina que a energia consumida e a demanda reservada sejam cobradas em separado. Assim, sequer de planejamento tributário se pode falar.

Na verdade, a inclusão pelos Estados da demanda contratada na base de cálculo do ICMS, considerando como preço da energia o que a lei federal tratou em separado, constitui usurpação da competência privativa da União para legislar sobre energia elétrica (CF, art. 22, IV).

Prova adicional de que a demanda reservada não tem relação com a venda da energia é que ela continua devida mesmo quando o consumidor não adquire qualquer quantidade desta, seja por ter dado férias coletivas aos seus empregados, seja por ter sofrido corte no fornecimento.

De fato, segundo o art. 49, I, da Resolução ANEEL nº 456/2000, o valor a ser faturado a título de demanda de potência corresponde ao maior valor entre a demanda contratada e a demanda medida – caso esta última seja igual a zero, prevalecerá a primeira.

Impossível, pois, sequer falar em acessório, pois não há acessório que subsista à falta do principal[8].

Como as parcelas da tarifa binomial remuneram coisas distintas, é descabida a invocação de julgados relativos aos encargos financeiros incluídos no preço da mercadoria pelo comerciante que financia as suas próprias vendas (ADI nº 84/MG[9], p.ex.), os quais partem da premissa de ser “único o negócio jurídico”, i.e., de ter um só objeto.

Situação similar à da demanda contratada acontece com a tarifa de assinatura mensal de telefones fixos ou móveis sem a inclusão de qualquer franquia de minutos, que as duas Turmas de Direito Público do STJ acertadamente declararam intributável pelo ICMS[10].

Tampouco impressiona o argumento, fundado na isonomia entre os grandes e os pequenos consumidores de energia, de que a tarifa paga por estes contém de forma diluída a demanda reservada, submetendo-se (e, pois, submetendo-a) ao ICMS que os grandes não querem suportar.

Deveras, o custo da energia integra o preço dos produtos e serviços dos grandes consumidores, a maioria dos quais exerce atividades tributadas pelo ICMS. Se o imposto atingiu apenas a energia efetivamente consumida, os créditos destes limitar-se-ão a esta parte da tarifa binomial, e o tributo alcançará, indiretamente, o valor da demanda reservada. Ao cabo, todos pagam.

No REsp. nº 960.476/SC, origem da Súmula nº 391, o STJ alterou o seu entendimento anterior sobre a matéria, equivocado na premissa, mas correto na conclusão.

Em seu voto, distanciou-se o Relator das teses dos contribuintes e dos Estados: nem afirmou que a demanda de potência é impassível de incidência do ICMS, como querem os primeiros, nem concordou com a incidência do imposto sobre a sua simples contratação, como querem os segundos.

Adotando solução média, mas insustentável, deu pela tributabilidade da potência efetivamente utilizada, impressionando-se com o termo (que tomou por sinônimo de consumida, daí extrapolando para conferir à demanda um tratamento idêntico ao da energia) e com o fato de aquela ser medida por meio de aparelhos próprios.

Começando pelo fim, tem-se que tal medição atende a fins regulatórios: saber se a potência exigida pelo consumidor é compatível com aquela por ele informada, com base na qual toda a rede elétrica é dimensionada.

No mais, impõe-se uma observação sobre o sentido do termo utilizada, quando associado à potência energética. A energia é coisa móvel que circula e pode ser consumida. A potência é a relação dessa circulação de energia por unidade de tempo. Não circula e – conquanto seja mensurável, como a temperatura ambiente e a pressão arterial – não é passível de consumo, tanto assim que nunca se ouviu falar em “furto de demanda”.

A energia consumida é medida de forma cumulativa, somando-se o consumo aferido em cada um dos registros periódicos de medição. A demanda de potência é medida de forma alternativa, comparando-se a potência aferida em cada um dos registros periódicos de medição e adotando-se o maior valor como a potência utilizada (mas não consumida) no mês.

A solução adotada pelo STJ suscita um problema adicional: como já anotado, a Resolução ANEEL nº 456/2000 define a demanda faturável contra o consumidor como o maior valor entre a demanda contratada e a medida. Dessa maneira, toda vez que a demanda medida for menor do que a contratada, o valor a ser cobrado do consumidor será o desta última, não se discriminando na fatura um valor menor correspondente à porção utilizada.

Assim, ou a distinção feita pelo acórdão recorrido é inútil, pois sempre se pagará ICMS sobre a demanda contratada, e não sobre a medida, exceto quando esta for maior do que aquela, ou o Judiciário – determinando a realização de uma regra de três obter-se o preço estimado da demanda utilizada (base de cálculo do ICMS, a teor da súmula) – terá agido como legislador positivo, em ofensa à separação dos Poderes.

Donde a urgência do reexame da questão pelo STF, para restaurar-se o primado dos arts 2º, 22, IV, e 155, II, da Constituição.


[1] O leading case que conduziu à edição da súmula foi o REsp. nº 960.476/SC (1ª Seção, Rel. para o acórdão Min. TEORI ZAVASCKI, DJe 13.05.2009), comentado adiante no texto.

[2] STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp. nº 1.089.062/SC, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJe 22.09.2009.

[3] Que a energia elétrica não é passível de transporte, reconhecem-no os próprios Estados, como se nota da Decisão Normativa CAT nº 4/2004, do Fisco paulista.

De fato, o transporte exige a identidade física entre a coisa recebida pelo prestador em um ponto e por ele entregue em outro (CC, arts. 743, 744, caput e 749, entre outros).

E tal identidade é impossível em relação à eletricidade. Mesmo nos contratos bilaterais de compra e venda, não há garantia de que a energia efetivamente consumida pelo adquirente terá sido aquela gerada e lançada pelo vendedor no sistema integrado de transmissão de distribuição.

[4] “Art. 155, § 2º. O imposto previsto no inciso II [ICMS] atenderá ao seguinte:

(…)

IX – incidirá também:

(…)

b) sobre o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios.”

[5] STF, Pleno, Rel. para o acórdão Min. MARCO AURÉLIO, DJ 25.05.2001, p. 17.

[6] “9. Serviços relativos a hospedagem, turismo, viagens e congêneres.

9.01. Hospedagem de qualquer natureza em hotéis, apart-service condominiais, flat, apart-hotéis, hotéis residência, residence-service, suite service, hotelaria marítima, motéis, pensões e congêneres; ocupação por temporada com fornecimento de serviço (o valor da alimentação e gorjeta, quando incluído no preço da diária, fica sujeito ao Imposto Sobre Serviços).”

[7] “Art. 2º. O imposto incide sobre:

I – operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares.”

[8] O termo é empregado em sentido diverso quanto à obrigação tributária acessória, que mantêm com a obrigação principal relação, não de dependência (tanto que podem subsistir à falta daquela, como nas imunidade e isenções condicionadas à manutenção de escrita regular), mas de instrumentalidade (servindo para garantir o cumprimento daquela, como aliás decorre expressamente do art. 113, § 2º, do CTN).

[9] STF, Pleno, Rel. MIn. ILMAR GALVÃO, DJ 19.04.96.

[10] STJ, 1ª Turma, REsp. nº 754.393/DF, Rel. para o acórdão Min. TEORI ZAVASCKI, DJe 16.02.2009; STJ, 2ª Turma, EDcl. no REsp. nº 1.022.557/RS, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJe 12.02.2009.

Autores

  • é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!