Coluna do LFG

A desigualdade, que gera delitos, não é ocasional

Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    é doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela USP. Jurista e cientista criminal. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi promotor de Justiça juiz de Direito e advogado.

3 de maio de 2012, 10h06

Spacca
Fica cada vez mais evidenciado que a desigualdade (social e econômica) está na raiz de muitos males de todas as nações. O Brasil é o sexto país do mundo mais violento, quando se consideram os homicídios: cf. www.ipcluizflaviogomes.com.br. A criminalidade, quando exagerada (Durkheim), é um desses grandes males que todos nós gostaríamos que fossem extirpados (ou, pelo menos, que fossem eliminados os seus excessos).

Agora que estamos evoluindo a hipótese de que a desigualdade constituiu forte fator na gênese dos delitos (cf. o livro The Spirit Level: Why Greater Equality Makes Societies Stronger – “O nível espiritual: porque uma maior igualdade torna as sociedades mais fortes”, de autoria de dois epidemiologistas britânicos, Richard Wilkinson e Kate Picket, que foi comentado por Nicholas D. Kristof, no jornal O Estado de S. Paulo de 04.01.11, p. A12), convém que ela seja devidamente focada (se é que queremos ir fundo à raiz do problema da criminalidade violenta epidêmica).

Caro leitor: vamos fixar duas premissas para nossa reflexão conjunta: (a) A América Latina é a região mais desigual do planeta e uma das mais violentas do mundo; (b) essa desigualdade não é ocasional, efêmera, passageira (ou seja: ela é estrutural).

A América Latina tem o mais alto índice de desigualdade do mundo, no campo da distribuição de renda[1]. Mas porque essa desigualdade, no nosso entorno cultural, é constante (permanente)? Há muitas explicações para isso. Uma delas está atrelada à nossa formação cultural segregacionista, escravagista, separatista e discriminatória (cf. Luís Mir, Guerra civil).

Uma outra razão: consiste em continuarmos acreditando que essa brutal desigualdade seja passageira, contingente. Há uma teoria (ideologia) que crê nessa transitoriedade e é precisamente ela que precisa ser contestada, com veemência, tal como vem fazendo o sociólogo Jessé Souza, A invisibilidade da desigualdade brasileira.

De acordo com seus argumentos, as velhas teses da ideologia liberal (tradicional) de que os desiguais (pobres, miseráveis) possuem as mesmas capacidades disposicionais das classes superiores, de que a miséria e o miserável são contingentes ou fortuitos (não estruturais), de que a grande quantidade de marginalizados é puro acaso do destino, que sua situação pode ser revertida facilmente, bastando um programa de assistência do governo, já não podem ser aceitas sem contestação.

Cada dia fica mais evidente que a clássica visão do liberalismo econômico de que a sociedade é composta de pessoas intercambiáveis e fungíveis (homo economicus), com as mesmas disposições de comportamento e mesmas capacidades de disciplina, autocontrole e auto-responsabilidade, não passa de pura ideologia, muito distante da verdade.

Não temos que necessariamente continuar aceitando os velhos clichês conservadores, enquanto o modelo sócio-econômico e cultural brasileiro e latino-americano, para não dizer mundial (fundado na desigualdade e na discriminação étnica e social), prossegue na reprodução das classes marginalizadas, gerando um inóspito estado de mal-estar, de insegurança, de intranqüilidade, de infelicidade e de criminalidade epidêmica.

Enquanto não buscarmos as verdadeiras causas da criminalidade violenta, só nos resta (desgraçadamente) ir colhendo todos os funestos frutos da nossa sangrenta guerra civil de todos contra todos, que parimos no e para o nosso país: 46 mil assassinatos por ano, 37 mil mortes no trânsito, uma mulher agredida a cada 15 segundos, 500 mil presos distribuídos de forma totalmente desigual , 20,6 milhões de pessoas vítimas de furto e de roubo só no ano de 2009 etc.


[1] Cf. Flávia Piovesan, Leis de anistia, Sistema interamericano e o Caso brasileiro, onde sublinhou: de acordo com o ECLAC: “Latin America’s highly inequitable and inflexible income distribution has historically been one of its most prominent traits. Latin American inequality is not only greater than that seen in other world regions, but it also remained unchanged in the 1990s, then took a turn for the worse at the start of the current decade.” (ECLAC, Social Panorama of Latin America – 2006, chapter I, page 84. Available at http://www.eclac.org/cgibin/getProd.asp?xml=/publicaciones/xml/4/27484/P27484.xml&xsl=/dds/tpli/p9f.xsl&base=/tpl-i/top-bottom.xslt (access on July 30, 2007). No mesmo sentido, afirmam Cesar P. Bouillon e Mayra Buvinic: “(…) In terms of income, the countries in the region are among the most inequitable in the world. In the late 1990s, the wealthiest 20 percent of the population received some 60 percent of the income, while the poorest 20 percent only received about 3 percent. Income inequality deepened somewhat during the 1990s (…) Underlying income inequality, there are huge inequities in the distribution of assets, including education, land and credit. According to recent studies, the average length of schooling for the poorest 20 percent is only four years, while for the richest 20 percent is 10 years.” (Cesar P. Bouillon e Mayra Buvinic, Inequality, Exclusion and Poverty in Latin America and the Caribbean: Implications for Development, Background document for EC/IADB “Seminar on Social Cohesion in Latin America,” Brussels, June 5-6, 2003, p. 3-4, par. 2.8). Acessar: http://www.iadb.org/sds/doc/soc-idb-socialcohesion-e.pdf, Julho 2007. Consultar ainda ECLAC, Social Panorama of Latin America 2000-2001, Santiago de Chile: Economic Commission for Latin America and the Caribbean, 2002.

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