Preservação da imparcialidade

É legítima a cessão de advogados públicos à Justiça?

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29 de junho de 2012, 13h47

O que dizer a um cidadão e ao seu advogado, que patrocina uma causa contra a Fazenda Pública, que o juiz que decidirá esse processo é diretamente assessorado pelo advogado da outra parte? Uma resposta possível seria dizer que a legislação brasileira não possui uma regra que vede tal assessoria. Contudo, a ausência de vedação legal não torna essa prática legítima, considerando os princípios constitucionais e de ética profissional que devem permear as instituições republicanas. Isto porque, por óbvio, o jurisdicionado ficará sempre com a sensação de desconfiança e de desvantagem frente ao seu ex-adverso. Essa foi a principal motivação que levou a seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil a questionar a legitimidade dessa cessão perante o Conselho Nacional de Justiça, o que suscitou a audiência pública ocorrida naquele órgão no dia 20 de junho de 2012, com maciça participação de órgãos representantes das mais diversas classes de advogados brasileiros.

É verdade que sendo a cessão de advogados públicos uma prática nacionalmente difundida nos tribunais brasileiros, a iniciativa de discutir o assunto deveria ter partido do Conselho Federal da OAB. Contudo, diante do seu silêncio, a OAB-RJ tratou da questão dentro do seu âmbito de atuação, ou seja, questionou a prática nos tribunais sediados no estado do Rio de Janeiro. Frise-se que não houve menção a nenhum caso concreto, apesar de diversos casos terem chegado ao conhecimento da instituição após o questionamento da legitimidade da cessão ora discutida. O objetivo da OAB-RJ não deve ser resumido a um caso específico ou a um determinado advogado público ou juiz, vez que pretende questionar e suscitar a reflexão sobre a legitimidade de uma prática, bastante corriqueira nos nossos tribunais, que consiste em ceder advogados públicos para trabalhar como assessores diretos de juízes, desembargadores ou ministros.

Aqueles que defendem a prática alegam, em síntese, que (i) não há qualquer regra constitucional ou legal específica que a vede, mas, pelo contrário, haveria a possibilidade expressa de cessão de servidores públicos para cargos em comissão entre órgãos ou entidades de diferentes Poderes da União (artigo 93 da Lei Federal 8.112/1990); (ii) os advogados públicos, ao assumirem cargos comissionados de assessores jurídicos, estariam licenciados da advocacia, passando a agir com a imparcialidade necessária ao exercício de suas novas funções, absolutamente subordinados aos juízes, autoridades que possuem poder decisório indelegável; e (iii) os advogados, de uma forma geral, podem exercer funções em outros Poderes: ingressar no Poder Judiciário, pelo instituto do quinto constitucional, exercer as funções de ministro da Justiça e até mesmo funcionar como procuradores e militar na advocacia privada, sem que tenham maiores impedimentos legais ou éticos em função do seu vínculo institucional de origem.

Os argumentos podem até impressionar, à primeira vista, mas sugerimos uma reflexão mais profunda sobre o tema.

Em primeiro lugar, a imparcialidade e a independência do Poder Judiciário são atributos essenciais à democracia. A Constituição Federal de 1988 dota o Poder Judiciário de especiais mecanismos para garantia dessas finalidades. O Poder Judiciário possui autonomia financeira, administrativa e funcional. Os magistrados são, regra geral, selecionados através de concurso público e gozam de garantias institucionais como a (i) vitaliciedade, (ii) inamovibilidade, e (iii) irredutibilidade dos subsídios, como condições instrumentais para assegurar a sua independência. Alie-se a isso todo o desenho constitucional e legal do Direito Processual, que regula o exercício da jurisdição, garantindo a todos o acesso à Justiça, ao mesmo tempo em que assegura o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e, principalmente, a imparcialidade dos juízes e a isonomia de tratamento em relação aos jurisdicionados.

E a atuação de advogados públicos na assessoria direta de magistrados vulnera exata e especialmente esses últimos princípios. Gera o desequilíbrio do que se denomina “paridade de armas” do jogo processual. Embora a Lei 8.112/1990, que disciplina o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, preveja a possibilidade da cessão de servidores entre Poderes, nos termos do seu artigo 93, deve-se considerar que ela é uma lei geral, aplicável a todos os servidores públicos, de uma forma indistinta e alheia às peculiaridades de cada caso. Assim, por exemplo, um analista de sistemas que exerce a função de técnico em informática na Advocacia-Geral da União pode perfeitamente ser cedido para chefiar a gerência de rede de informática de um tribunal. Não há, nesse caso, qualquer prejuízo, efetivo ou presumido, ao cidadão.

No entanto, não se pode tratar como uma simples questão de gerência administrativa da máquina pública a cessão de um advogado público para ocupar a assessoria de um juiz. Quando isso acontece, ele não deixa de ser um advogado público, ele não é exonerado de seu cargo. Na verdade, há um simples afastamento temporário de suas funções originais para atuar em um cargo de comissão. Veja-se: o procurador da Fazenda Nacional, por exemplo, continua vinculado à sua entidade de origem. Tanto é assim que, ao atuar como assessor no Poder Judiciário Federal, segue recebendo os seus vencimentos nessa qualidade (artigo 93, parágrafo 1º, da Lei 8.112/1990), acrescidos de uma retribuição adicional pela função no Poder Judiciário (artigo 62 da referida lei). Tão logo termine a cessão, ele retorna ao cargo de procurador e retoma o exercício de suas funções. Em suma, embora esse servidor se afaste temporariamente de suas funções, ele não deixa de ser um advogado público.

Por certo, advocacia e judicatura não são funções singelas e intercambiáveis. Muito ao contrário, envolvem vocações, ofícios, posições, posturas, mentalidades e comportamentos completamente distintos. A começar pelo dever de imparcialidade do juiz e o dever de parcialidade do advogado que, respectivamente, deve-se estender aos assessores tanto de um quanto de outro.

Ora, não se pode negar que a advocacia vinculada institucionalmente à defesa de um órgão, torna um advogado, como qualquer ser humano, sensível aos interesses desse órgão. Aliás, é isto que espera o administrado ao remunerar, através do pagamento de seus tributos, aqueles que devem proteger os cofres públicos, por exemplo. Espera o cidadão que este profissional seja vocacionado para o cargo. A advocacia é, por definição, uma atividade parcial e o advogado, ao defender os interesses do seu cliente, deve agir de modo eficiente e aguerrido, até porque, se não acreditar no direito de seu cliente,tem autonomia profissional para se recusar a defendê-lo, conforme reza o artigo 16 da Lei 8.906/1994, o Estatuto da OAB. Embora a advocacia e o Direito se baseiem fundamentalmente na razão, impossível imaginar um advogado leal e dedicado ao seu ofício e à defesa de seu cliente que não se deixe envolver por uma boa dose de paixão. Aliás, a própria legislação considera essa questão ao estabelecer incompatibilidades e impedimentos para o exercício da advocacia.

Exatamente essa paixão e esse dever de parcialidade do advogado o tornam indispensável à Justiça. Engana-se quem pensa que a justiça é feita apenas pelos juízes, no âmbito do Poder Judiciário. Como já ensinava Piero Calamandrei “imparcial deve ser o juiz, que está acima dos contendores; mas os advogados são feitos para serem parciais, não apenas porque a verdade é mais facilmente alcançada se escalada de dois lados, mas porque a parcialidade de um é o impulso que gera o contra-impulso do adversário, o estímulo que suscita a reação do contraditor e que, através de uma série de oscilações quase pendulares de um extremo a outro, permite ao juiz apreender, no ponto de equilíbrio, o justo” (Eles, os Juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000, p. 126). E a melhor forma de o advogado, público ou privado, auxiliar o Poder Judiciário é bem defendendo os interesses de seu cliente, atuando direta e parcialmente na causa e não na qualidade de assessor comissionado do Poder Judiciário.

Por óbvio, advogados podem integrar o Poder Judiciário, pelo instituto do quinto constitucional, bem como podem ser nomeados ministros da Justiça, sendo certo que essas possibilidades estão expressamente previstas no texto constitucional. Contudo, vale frisar, ao serem nomeados esses cidadãos são obrigados a desvincular-se completa e definitivamente da advocacia, não mais possuindo qualquer vínculo institucional com a classe e sendo proibidos de receber honorários ou salários pelo exercício desse ofício.

O que se pretende com o debate desta questão no âmbito do CNJ é demonstrar que a necessidade de especialização técnica na assessoria dos julgadores, uma exigência cada vez maior em um cenário de crescente complexidade e ramificação do Direito, não deve ser solucionada pela cessão de advogados públicos. Os magistrados que desejem assessores especializados em matéria tributária podem buscá-los no âmbito do próprio Poder Judiciário ou mesmo criar um concurso específico para assessores. A título de ilustração, a ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, tinha entre seus assessores o juiz federal e notável tributarista Leandro Paulsen, autor de diversas obras sobre Direito Tributário. Poderia ainda o Poder Judiciário buscar na Academia professores, mestrandos e doutorandos, em universidades de ponta, que tenham interesse em assessorá-los. O próprio ministro Luiz Fux, do STF, manifestou-se recentemente, mencionando que seus assessores possuem este perfil. É, aliás, essa a forma pela qual os juízes da Suprema Corte americana preenchem os seus quadros de assessores (law clerks). Renomados professores de grandes universidades americanas, como Ronald Dworkin, Owen Fiss e Cass Sunstein atuaram, no início de suas carreiras, como assessores de juízes. Por fim, apenas a título de argumentação, se eventualmente a advocacia pública continuar a ser a fonte dessas assessorias, certamente seria mais recomendável ter procuradores estaduais ou municipais atuando na Justiça Federal e procuradores da Fazenda Nacional assessorando a Justiça estadual.

A discussão que ora se apresenta não pretendeu lançar qualquer acusação de parcialidade sobre o Poder Judiciário. O objetivo é aperfeiçoar, dia a dia, a atividade judicante, aumentando sua força frente aos cidadãos, sendo certo que a prática de se ter advogados públicos atuando como assessores de juízes e trabalhando em processos nos quais está diretamente envolvida a entidade à qual estão vinculados não traz qualquer benefício e prejudica, sobremodo, a imagem do Poder Judiciário.

Ainda que os assessores não possuam poder decisório, função exclusiva e indelegável do juiz, é ingênuo imaginar que assessores não possuem qualquer inferência sobre pesquisas, elaboração de minutas de votos, e influência no posicionamento de juízes. Se não é para isso que estão lá, em cargo de comissão, para que outra finalidade seria, considerando todo o arcabouço prático e teórico que possuem? Espera-se que não para o exercício de funções meramente rotineiras e burocráticas, pois nesse caso estaríamos diante de um flagrante caso de desperdício de recursos públicos, pois não teríamos o advogado público, com todo o seu preparo, no exercício de suas funções originais, claramente importantes para nosso país, mas atuando como um assessor mal aproveitado. Assim, se exercem uma função digna da confiança do magistrado, esses assessores, ainda que sem poderes decisórios, não devem possuir quaisquer pré-compromissos ou vinculações. No futebol, por exemplo, ninguém duvida do poder decisório do árbitro dentro do campo, mas nem por isso os bandeirinhas podem ser vinculados a um dos times que estão jogando a partida.

O equilíbrio, a isenção, a imparcialidade e a moralidade do Poder Judiciário são princípios que devem ser constantemente perseguidos. Muitas vezes, não estão expressamente estampados nas leis. A esse respeito, cabe lembrar a recente atuação do CNJ coibindo o nepotismo no Poder Judiciário, por meio da Resolução 7/2005. O argumento de quem nomeava parentes para cargos de confiança no Poder Judiciário era que a lei não vedava essa prática e que as pessoas nomeadas eram capacitadas e dignas da confiança. São os mesmos argumentos dos representantes da advocacia pública no caso da cessão. Felizmente, com base nos princípios constitucionais da moralidade e impessoalidade, o STF chancelou a posição do CNJ e coibiu essa prática. Como o próprio CNJ, na pessoa do conselheiro Jorge Antonio Maurique, já se manifestou, nos autos do Processo 20081000003296, ao Poder Judiciário, no desenvolvimento de suas virtudes republicanas, deve-se aplicar à máxima de que não basta ser honesto, tem que parecer honesto. Portanto, que o Poder Judiciário de nosso país possa ser assessorado por juízes, professores e pensadores do Direito desvinculados de quaisquer pré-compromissos com a defesa do erário, sendo essa, assim esperamos, a real vocação profissional do advogado público que exerce sua função no âmbito tributário.

Ao suscitar esse debate no âmbito do CNJ, a OAB-RJ (i) reafirma o seu compromisso democrático na defesa dos interesses da cidadania e de todos os advogados, públicos ou privados, enquanto estiverem, evidentemente, nessa condição; (ii) baseia seu pleito no princípio de que ninguém é bom juiz de si mesmo; e (iii) convida a todos a refletir e zelar pela independência, imparcialidade, moralidade e força institucional do Poder Judiciário, porque esses atributos dizem respeito não apenas a uma ou outra classe de advogados, mas a todos os cidadãos que desejam confiar plenamente na Justiça.

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