Uso midiático da lei

Divulgar salário cria falsa sensação de controle

Autor

  • Bruno Hazan Carneiro

    é procurador do estado do Rio de Janeiro diretor-executivo da Aperj (Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro) e secretário-geral da Anape (Associação Nacional dos Procuradores de Estado).

29 de junho de 2012, 13h01

Não são poucas as manchetes divulgando a Lei Federal 12.527, de 18 de novembro de 2011, também chamada de Lei de Acesso à Informação, notando-se grande ênfase da mídia no ponto referente à divulgação de listagem nominal de servidores públicos e seus respectivos vencimentos.

Antes mesmo de buscar soluções para as dúvidas trazidas pela lei — se possui natureza federal ou nacional; se deverá ser editada lei local para regular a matéria ou bastará edição de decretos regulamentares (artigo 45); se houve extrapolação do Poder Regulamentar do chefe do Executivo Federal, especificamente no que concerne ao artigo 7º, parágrafo 3º, VI, do Decreto Federal 7.724/12, dispositivo que prevê a divulgação da listagem nominal, entendemos imprescindível uma breve análise da relação existente entre os verdadeiros objetivos e fins úteis da lei e os respectivos meios postos à disposição para concretizá-los.

Ora, é certo que a lei foi editada, diga-se, em bom tempo, com o objetivo de assegurar e materializar o direito fundamental de acesso à informação para todos (artigo 3º), direito este já previsto pela Constituição Federal de 1988 e, consequentemente, permitir maior fiscalização e controle sobre a gestão da coisa pública (aí incluídos os gastos com pessoal). Do mesmo modo certo também é que se preocupou com a forma da divulgação de tais informações, a fim de preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais (artigos 6º, III, 4º IV e 31), igualmente em harmonia com o texto constitucional.

Nessa ordem de ideias, em relação ao ponto específico que se analisa — divulgação de listagem nominal de servidores públicos com respectiva remuneração para toda a população, pergunta-se:
(i) tornar pública essa informação, embora assegure o livre acesso à informação (fim imediato da Lei), gerará maior fiscalização e controle do serviço público, permitindo um efetivo controle popular capaz, por exemplo, de reduzir os gastos públicos com despesas de pessoal (objetivos mediatos da lei)?
(ii) ou trata-se de medida que não atende aos fins desejados pela lei, tomando o aspecto de placebo ofertado à sociedade e à mídia em geral, que poderá saciar sua curiosidade acerca de quanto ganha determinado servidor público, nada trazendo de efetivo, além disso?
(iii) ainda pior, a publicação da referida listagem — além de não atingir os fins pretendidos — não servirá, encoberta pela justificativa do "amplo acesso a informação", para desnudar o servidor público, violando sua intimidade e privacidade, expondo-o e a sua família a constrangimentos e riscos desnecessários?

Para responder a tais indagações, temos inicialmente que fixar uma premissa principal, considerando os fins imediatos e mediatos da lei (recapitula-se: o amplo acesso a informação como forma de efetivar um maior controle da coisa pública). A República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito e já existem instituições e órgãos, previstos na própria Constituição Federal de 1988 e em legislação infraconstitucional, com a incumbência de promover fiscalização e controle dos gastos do funcionalismo público. Como por exemplo, citam-se os Tribunais de Contas, as Controladorias, as Corregedorias e, em casos de algumas categorias, ainda o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e até mesmo o Congresso Nacional.

Para tais órgãos, no que diz respeito ao assunto ora tratado, pouco, ou melhor, nada inova. Isto porque, vale a pena ressaltar, estes entes sempre possuíram amplo acesso a tais informações. Assim, de modo realístico, chega-se a uma primeira conclusão: para aqueles que receberam a missão de fiscalizar e controlar, quase nada muda.

Cria-se, portanto, um dilema inexorável: ou confiamos em tais instituições — algo fundamental em um Estado Democrático de Direito ou manifestamos nosso descontentamento e inconformismo com as mesmas, com os meios que nos são postos a disposição, inclusive, por meio das urnas, apoiando pelo voto popular, por exemplo, quem se proponha a alterar a atual forma legalmente prevista desse tipo de fiscalização e controle.

E se nada mudou para estes órgãos, o que a norma federal traz de diferente nesse particular? Simples, permite o acesso a tais informações, que antes eram restritas aos mencionados órgãos, a qualquer um do povo. E, quando dizemos qualquer um do povo, inclua-se aí, juntamente com a parcela da sociedade civil organizada, as ONGs, o cidadão comum, também os malfeitores!

Ora, cremos que é muito pouco provável, sem qualquer tipo de juízo de valor ou desmerecimento, que o homem comum, o homem médio, tenha como fazer uso adequado dessas informações, dada a alta complexidade e diversidade que envolve a matéria de pessoal nos três níveis de nossa Federação e seus respectivos poderes.

Se nem mesmo os 11 (onze) ministros do Supremo Tribunal Federal, considerados como alguns dos maiores juristas do país, chegam a um senso comum acerca de determinadas verbas vencimentais, do seu caráter indenizatório (ou não), de sua exclusão ou inclusão no limite do teto constitucional, quem dirá o homem comum, que na maior parte dos casos sequer formação jurídica possui. Chegamos, portanto, a uma segunda conclusão: a inovação trazida pela Lei e o Decreto, qual seja, a divulgação indiscriminada de tais informações a qualquer um do povo, da forma como vem sendo proposta, não se presta a um fim útil, pois não permitirá uma maior fiscalização ou controle dos gastos públicos de pessoal.

Resta-nos, então, avaliar as demais opções acima aventadas. A Lei de Acesso e o respectivo Decreto Federal, ao menos no ponto em que pretendem tratar a questão da divulgação dos salários dos servidores, destinam-se, ao nosso juízo, tão somente a criar uma falsa sensação de fiscalização e controle na sociedade. Aliás, poderão servir, no máximo, para satisfazer a curiosidade alheia de quanto ganha um parente, um vizinho, um conhecido, um amigo íntimo ou até mesmo um inimigo capital! Até aí, talvez apenas um constrangimento, um aborrecimento, mas que certamente não se encontra entre os objetivos da norma.

Desviamo-nos então, do propósito da lei. Afinal, permitir que todos bisbilhotem a vida íntima e privada dos servidores públicos já não é de se admitir: a uma, pois não atinge os fins imediatos ou mediatos da norma e, a duas, pois nada mais íntimo, nada mais privado e pessoal do que o seu salário. Nem mesmo com amigos mais próximos ou familiares o assunto é tratado com naturalidade, não sendo comum às pessoas explanarem sua renda aos quatro cantos. Daí o caráter midiático ao qual nos referimos acima.

O ponto transcende o senso de discrição e modéstia. A publicação do contracheque pode vulnerar situações existenciais. Exemplifica-se: não podemos desconsiderar a exposição do servidor que possui descontos em folha de pagamento oriundos de empréstimos consignados, de despesas de saúde ou até mesmo descontos de pensão alimentícia.

O dever de proteção a essas situações não é inédito no ordenamento jurídico: se o processo que cuida de um divórcio, de uma separação litigiosa com guarda de menores em que uma parte pede alimentos pode tramitar em segredo de justiça, como admitir então que a decisão de tal processo — o quanto será descontado em folha, seja tornado público?

Contudo, a situação piora drasticamente quando analisamos a última das hipóteses. Se levarmos em consideração que em uma nação como a nossa, com amplo acesso à internet — onde é público e notório que até mesmo bandidos presos alimentam seus perfis em redes sociais de dentro de penitenciárias —, a divulgação das informações ganha um viés temerário!

Imaginem o que não poderão fazer sequestradores, estelionatários e malfeitores em geral de posse de tais dados? Ora, a resposta é evidente! Ficaremos reféns destas pessoas, que já saberão quanto ganhamos e onde trabalhamos e, com uma rápida pesquisa na internet, poderão facilmente descobrir nossos endereços residenciais.

Infelizmente, muito embora os defensores da publicação apregoem que a vinculação ao teto remuneratório serviria para afastar o interesse no planejamento de atos criminosos, não se pode olvidar que vivemos numa sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, na qual, infelizmente, crimes capitais são perpetrados pela possibilidade de ganhos de poucos reais.

Dessa forma, a publicação mostra-se temerária e inaceitável! Coloca em risco a intimidade, o sigilo e, principalmente, a segurança dos servidores públicos e de seus familiares, bem como suas liberdades e garantias individuais, algo que como já ressaltado a norma visa preservar. Enfim, um total contrassenso.

E nesse ponto surge uma questão até agora pouco explorada. A responsabilização do próprio ente federativo (União, estados e municípios) ou de suas entidades por eventuais danos que seus servidores venham a sofrer. Será que aqueles que pretendem regulamentar a lei já refletiram sobre isso? Os altíssimos custos de indenizações por sequestros e outros males sofridos por servidores vítimas de marginais?

Sim, pois o artigo 34 da lei prevê que "Os órgãos e entidades públicas respondem diretamente pelos danos causados em decorrência da divulgação não autorizada ou utilização indevida de informações sigilosas ou informações pessoais, cabendo a apuração de responsabilidade funcional nos casos de dolo ou culpa…"

Enfim, não defendemos aqui a ausência total e absoluta de informações sobre os gastos com o funcionalismo público, entretanto contrapomo-nos à maneira como isso está sendo feito, repita-se, através da listagem nominal de servidores com a respectiva remuneração por, como demonstrado, não atingir fim útil algum e expor desnecessariamente o servidor e seus familiares. O acesso deve sim ser franqueado, mas harmonizando e ponderando todos os interesses e princípios envolvidos.

Cogita-se também da divulgação apenas da matrícula (ou CPF ou RG), mas tal medida não é em nosso entender satisfatória, uma vez que a matrícula, assim como o CPF ou o RG, é um numero único, individualizado e que pode facilmente ser correlacionado ao nome do servidor e acarretando todos os problemas já descritos.

Por isso, avaliamos que a divulgação da remuneração de cada carreira, classe, categoria, posto, graduação, função e emprego, com todas as gratificações, auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, com os respectivos quantitativos, ou, até mesmo, a lista dos vencimentos sem a correlação ao nome do servidor ou sua matrícula, CPF ou RG, se presta a dar uma real noção à sociedade dos gastos com o funcionalismo público, atingindo, destarte, o real objetivo da norma, disposto em seu artigo 3º, caput, que é o de assegurar o direito fundamental de acesso à informação constitucionalmente previsto sem, contudo, colocar em risco a intimidade, a privacidade e a segurança do servidor e de sua família (artigos 6 º, III, 4 º IV e 31).

Tal solução compatibiliza os interesses de todos os envolvidos, bem como os princípios tutelados pela norma, realizando o seu fim útil, não se prestando a tornar a mesma mero instrumento capaz de saciar a curiosidade alheia e, consequentemente, afastando de si o caráter apelativo que a mídia tem lhe emprestado, bem como evitando os constrangimentos e riscos à intimidade, à privacidade, ao sigilo e à segurança do servidor e de seus familiares. Por fim, é sempre bom rememorar que a Lei em momento algum obriga seja divulgada a listagem nominal, tendo tal obrigação sido trazida pelo Decreto Federal que, salvo melhor juízo, extrapolou de seu poder regulamentar e não concretizou os fins imediatos ou mediatos da norma, pelo contrário.

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    é procurador do estado do Rio de Janeiro, diretor-executivo da Aperj (Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro) e secretário-geral da Anape (Associação Nacional dos Procuradores de Estado).

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