Autodeterminação moral

Em novo Código Penal, vida começa por vontade da mãe

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27 de junho de 2012, 13h58

O crime de aborto, como qualquer crime, não resulta só de seu conceito, mas depende também da construção social de sua realidade: ele é em parte produto da sua definição social, operada em última análise pelas instâncias formais (legislador, polícia, ministério público, juiz) e mesmo informais (família, escolas, igrejas, clubes vizinhos) de controle social. Em resumo: a realidade do crime não deriva exclusivamente da qualidade “ontológica” ou “ôntica” de certos comportamentos, mas da combinação de certas qualidades materiais do comportamento com o processo de reação social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos ou delinquentes.

A respeito da definição social do crime pode-se afirmar, parafraseando Jorge Figueiredo Dias, que o comportamento criminal tem duas componentes irrenunciáveis — a do comportamento em si e a da sua definição como criminal. Por isso, qualquer doutrina que a ele se dirija não pode esquecer nenhuma delas. Na síntese final (naquilo que com razão se poderá designar o paradigma integrativo) tem de entrar o comportamento e sua definição social, ou seja, o conceito material de crime tem de ser completado pela referência aos processos sociais de seleção, determinantes, em última  análise, daquilo que é concreta e realmente (e também juridicamente) tratado como crime.

O aborto, um dos temas mais polêmicos quando se fala em sexualidade, possui enorme relevância social e jurídico-penal, razão pela qual existem ao menos três tendências nas legislações atuais no mundo: uma restritiva, uma moderada e uma liberal.

A visão mais restritiva é tal qual o Código Penal brasileiro vigente. A moderada consente o aborto num maior número de casos, como no caso de prole numerosa e casal sem recursos, idade avançada da mulher, morte ou incapacidade do pai e ainda mulher não casada. Um terceiro grupo de leis, bastante liberais, confia a decisão à mulher e permite que o médico decida quanto ao aborto. Exemplos disso são países como o Japão, a Suécia, a Rússia e a Hungria. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte decidiu, em 1973, com base na privacy, pela legalidade do aborto até o terceiro mês de gravidez.

No Brasil, o aborto foi inserido no Código Penal brasileiro em 1940, que em seuartigo 124 dispõe que a interrupção da gravidez é  um crime contra a vida e passível de pena de detenção de um a três anos; e nos artigos subsequentes o Código prevê os demais casos de aborto.

A Constituição Federal proclama em seu artigo 5º o direito à vida como garantia fundamental e inviolável, e estende sua proteção à vida intrauterina.

Embora seja omissa quanto ao feto, tudo leva a entender que a Carta se obriga a tutelá-lo,  de forma que ele não sofra violação. Se a Constituição considera inviolável o direito à vida e que todos, indistintamente, possuem tal direito, é evidente que o conceito de vida abarca, ainda, a vida em formação.

Tanto tutela-se a vida intrauterina que a lei penal a protege e criminaliza sua violação.No entanto, é preciso saber a partir de que momento é penalmente relevante o abortamento, já que o aborto, para fins penais, é a interrupção dolosa da gravidez, com a consequente morte do feto.

No entanto, o aborto é autorizado na legislação pátria, na qualidade de causa excludente de ilicitude, se feito para salvar a vida da gestante ou, ainda, se a gravidez resultar de estupro.

O anteprojeto do Código Penal inova  ao conceder a possibilidade da gestante interromper a gestação de até 12 semanas, desde que haja laudo médico de que ela não possua condições para assegurar o bem estar da criança. Outra inovação trazida pelo anteprojeto é a possibilidade de interrupção de gestação de anencéfalo ou com graves e incuráveis anomalias para viver, além de gestação decorrente de reprodução assistida sem o consentimento da mulher.

O anteprojeto reproduz uma tendência contemporânea analisada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu por 8 votos a 2 que o aborto de feto sem cérebro não é considerado crime, pois segundo o relator, ministro Marco Aurélio Mello, “aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal. (…) O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura.”

Segundo Luigi Ferrajoli, três meses bastam a partir da concepção para que a mãe atribua ao filho a qualidade de pessoa. Não que três meses signifiquem algo no plano biológico, mas apenas porque representam o tempo necessário e suficiente para permitir à mulher tomar uma decisão: para consentir o exercício da liberdade de consciência, ou seja, a autodeterminação moral da mulher e também a dignidade como pessoa.

Em suma, por essa nova proposta, a vida humana não está na concepção, nem nas fases seguintes do processo de gravidez, mas somente no momento em que a mãe reconhece a gravidez, incorporando-a no próprio projeto de vida, isto é, quando ela, por ato de vontade, cria a pessoa.

Por este contexto deve o legislador estabelecer outro prazo temporal para marcar de forma adequada a linha de permissão e proibição do aborto, que deve ser o de até três meses, segundo a doutrina penal mais avançada, dentro do qual a gravidez pode ser interrompida sem nenhum enquadramento típico e é exatamente nesse sentido que concluiu o anteprojeto.

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