Embargos Culturais

Beard e a interpretação econômica da Carta dos EUA

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

24 de junho de 2012, 8h00

O pensador político norte-americano Charles Beard nasceu em 1874 e faleceu em 1948. A compreensão que Beard tinha da História do Direito era realista no sentido de que nada se aprende do passado. Projetamos no pretérito nossas preocupações presentes, reinterpretando a história, a partir dos pontos de vista que detemos no momento em que fazemos história. Somos escravos de nossos preconceitos.

Beard afastou-se de historiografia piegas e romântica, que tanto prejudica a compreensão do Direito, porque baseada na falsa percepção de que o Direito seria resultado de uma evolução. Beard constatou que a construção da História do Direito é concepção discursiva, e pode se perceber em seu modo de ler e de escrever História do Direito mecanismo de compreensão que o aproxima de Antonio Hespanha, de Walter Benjamin e de Michel Foucault.

O tempo comprova as teses de Beard. Livros de História do Direito norte-americano refletem vínculos ideológicos e culturais de seus autores. Temos várias histórias do Direito. Exatamente como possuímos inúmeras soluções jurídicas para um mesmo caso, certamente admitimos a existência de várias possibilidades históricas para um idêntico problema historiográfico.

Por exemplo, Peter Irons, que estudou em Boston com Howard Zinn, leu a Suprema Corte norte-americana a partir de pressões populares. Bernard Schwartz, professor na Universidade de Tulsa, propiciou visão formal e otimista da ação da Corte Suprema. Kermit Hall, professor na Universidade de Utah, apropriou-se de passagem de Oliver Wendell Holmes Jr. e concebeu o Direito norte-americano como um espelho das tendências populares.

Essa leitura foi totalmente negada por Brian Tamanaha, sociólogo norte-americano, para quem a sociedade não se reflete no Direito; este é imposto. Lawrence Friedman, professor na Universidade Stanford, escreveu a mais festejada obra de história jurídica norte-americana, aderindo à historiografia bem comportada e dominada por concepções totalizantes. Morton Horwitz, professor em Harvard, quis entender o direito norte-americano a partir do desenvolvimento do capitalismo naquele país. Horwitz engendrou historiografia problematizadora e aproxima-se de Charles Beard.

O índice do grande livro de Beard — A Interpretação Econômica da Constituição os Estados Unidos — dá-nos conta da amplidão e dos nichos de interesse de sua pesquisa. Beard principiou com levantamento relativo aos fundamentos teóricos justificativos de leitura histórica da composição da constituição dos Estados Unidos, forte em Ferdinand Lassalle e em Karl Marx.

Em seguida, Beard fez levantamento dos interesses econômicos que estavam em jogo em 1787, ano da promulgação da Constituição norte-americana. Apresentou os passos que substancializaram o movimento que redundou no texto constitucional. Na premissa fundamental de que o poder segue a propriedade, Beard identificou os interesses econômicos dos membros da convenção constitucional norte-americana.

Em capítulo seminal, Beard qualificou a constituição norte-americana como documento prioritariamente econômico. Vinculando economia e política, o que é tema marxista, Beard reconstruiu as doutrinas políticas que animavam os membros da convenção constitucional.

Beard ocupou-se do processo de ratificação. Isolou a participação popular e qualificou os limites do voto popular. O livro de Beard afasta toda a historiografia jurídica ingênua, que oxigena manuais e apostilas de História de Direito, disciplina que muitas vezes cai no domínio de ingênuos que admiram o passado, sem que entendam os porquês do escapismo.

Tal tipo de livro é uma praga no Brasil. E ainda, alguns historiadores do Direito tudo justificam em nome de uma suposta cultura jurídica, que não conseguem explicar para que sirva. A História do Direito sem o filtro de historiografia crítica é mecanismo retórico, barroquismo inútil e conceitualismo fraudulento.

O livro de Beard suscita revolta pragmática, verdadeira insurreição contra o formalismo. Beard minou a veneração que havia para com a Suprema Corte, que acintosamente reprimia legislação crescente de preocupação econômica e social. Beard realizou obra de desconstrução, decompondo os termos da Constituição dos Estados Unidos, e comprovando que se vivia sob um governo de homens, e não de leis, ao contrário do que defendia historiografia jurídica romântica, cravada no ideário popular.

Para Beard, quando a Suprema Corte decidia sobre questões de interesse direto da população, esta deveria ser compelida a votar, anuindo ou discordando da decisão, que fora produzida por seres humanos, detentores de interesses e preconceitos, representantes de grupos de pressão, de lobbies e de conjuntos específicos, circunstância que se mascara com o ramerrão da neutralidade e da cientificidade.

Beard também despertou de sono dogmático próprio, lembrando que a descoberta de que os pais da Constituição percebiam que os conflitos em torno do texto constitucional eram efetivamente disputas de interesse econômico fora o maior choque de sua vida.

Beard pinçou no texto constitucional norte-americano todas as questões econômicas que agitavam os Estados Unidos, a exemplo de proteção tarifária, comércio internacional, transporte, indústria, comércio, trabalho, agricultura, temas que não podem ficar à mercê dos falsos problemas trazidos pelas leituras analíticas do Direito, que se perdem em formalismos, campo discursivo que engendra todos os tipos de solução.

Paradoxalmente, embora sob premissas de pensamento que negaria o ideário neoliberal, Beard aproximou-se de conclusões relativas à aproximação do Direito com a maximização da economia, circunstância que será percebida mais tarde em Friderich Hayek e em Richard Posner, embora, bem entendido, a partir de outro instrumental teórico.

Em introdução que preparou em 1935 para nova edição de seu célebre livro, Beard questionava que interesses poderiam estar por detrás de todo o modelo constitucional norte-americano. Para Beard, a recusa em se pesquisar respostas para esse problema essencial nos tornava vítimas da história, barro nas mãos de seus construtores, clay in the hands of its makers [1].

Beard questionava a fluidez de conteúdos jurídicos vagos como princípios, de entendimento abstrato, provocadores de todo o tipo de injunções conjunturais[2]. Beard duvidava de premissas fluidas, a exemplo de presunção normatizada dando conta de que o governo procede diretamente do povo[3]. Em passo convergente ao realismo jurídico Beard escreveu que:
“(…) é necessário se reconhecer desde o início que o Direito não é uma entidade abstrata, uma página impressa, um código, uma decisão judicial. Tanto quanto exista alguma consequência para observador, o Direito deve tomar uma forma real; o Direito governa ações, determina relações normativas entre as pessoas, prescreve comportamentos. Uma norma pode estar nos livros por algum tempo, porém a menos que seus preceitos sejam efetivados, esta norma existe apenas na imaginação. Separada da vida social e econômica para a qual é, em parte, condicionada e em relação à qual, é elemento condicionante, a norma não detém vida real[4].

Beard lembrou que boa parte da produção jurídica é relacionada com a defesa da propriedade e que há tentativa de se isolar o Direito Constitucional dessa circunstância, entre outros, por causa de construção cultural que fraciona o universo normativo em conteúdos de direito público e privado. Para Beard:
“Pode se tentar dizer que o Direito Constitucional seja um campo peculiar do Direito; que não esteja prioritariamente preocupado com propriedade ou com relações de direito de propriedade, porém, com órgãos do governo, com sistema de voto, com a administração em geral. A superficialidade desta visão torna-se aparente a partir de segunda e mais detida olhada. Na medida em que o objeto primário de um governo seja, além da mera repressão por meio da violência física, o de compor regras que determinam as relações de propriedade entre os membros da sociedade, as classes dominantes, aqueles cujos direitos devem ser determinados, precisam agir de modo a obter de quem quer que esteja no poder as regras que se apliquem a seus interesses, de modo que se dê continuidade ao processo econômico, ou então esses grupos tomarão pessoalmente o controle do governo”[5].

O interesse pelo controle da propriedade é central na atuação política, não apenas no sentido de se mantê-la, porém também na mira de se obtê-la. E assim:
“Aqueles que detém e aqueles que não detém propriedade sempre perfilaram interesses distintos na sociedade. Credores e devedores encontram-se no mesmo plano. Interesses de proprietários de terra, de industriais, de mercadores, de banqueiros (…) crescem em necessidade nas nações civilizadas e se dividem em interesses de classe, marcados por diversos sentimentos e pontos de vista. A regulamentação destes vários e correlatos interesses consistem na principal tarefa da legislação moderna, envolvendo espírito partidário e sectarismos, que se projetam nas atuações necessárias e ordinárias dos vários governos”[6].

Na abertura do capítulo relativo ao estudo dos interesses econômicos que se chocavam nos Estados Unidos em 1787 Beard apresentou as razões e o sentido de sua metodologia, de inspiração inegavelmente marxista, embora ele o negasse:
“A teoria da interpretação econômica da história escora-se no conceito de que o progresso social seja o resultado geral do conflito dos interesses sociais, alguns favoráveis, outros opostos, em mudança. Essa hipótese exige que pesquisemos, logo de início, quais classes e grupos sociais havia nos Estados Unidos no momento que antecede à adoção da Constituição, e quais deles, em razão do regime de propriedade que os interessava, esperavam benefícios imediatos e definitivos com a derrubada do antigo regime e com o estabelecimento de um novo modelo de governo. Por outro lado, deve se averiguar qual dos grupos poderia lutar por maior benefício, mantido o governo anterior e o modelo jurídico antigo”[7] .

Beard percebeu a relação que a Constituição dos Estados Unidos mantinha com projeto econômico de expansão[8]. O delicado problema da escravidão não passou despercebido a Beard, dado que a solução que o texto constitucional norte-americano preservou, lacônica, é causa concorrente para o conflito nacional que se alastrou de modo mais explícito a partir de 1861, e que foi a guerra que matou o maior número de norte-americanos, travada entre o norte e o sul.

Charles Beard pode ser inserido no planisfério conceitual do realismo jurídico, em sentido historiográfico, na medida em propugnou, e demonstrou exaustivamente, a impossibilidade de se divorciar a História do Direito de seus fatores determinantes, que se localizam na economia e na política. É o que os juristas precisamos compreender.

Bibliografia
BEARD, Charles A. An Economic Interpretation of the Constitution of the United States. New York: The Free Press, 1986.


[1] Charles Beard, An Economic Interpretation of the Constitution of the United States, p. liii.

[2] Charles Beard, cit., p. 9.

[3] Charles Beard, cit., p. 10.

[4] Charles Beard, cit., p. 12, versão livre do autor.

[5] Charles Beard, cit., p. 13, versão livre do autor.

[6] Charles Beard, cit., p. 15, versão livre do autor.

[7] Charles Beard, cit., p. 19, versão livre do autor.

[8] Cf. Charles Beard, cit., p. 23.

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