Obrigações acessórias

Princípio do não-confisco é problema esquecido

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23 de junho de 2012, 5h07

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 150, IV, CF, veda que a tributação tenha efeito confiscatório. No seio da sociedade, nas rodas de empresários, em reuniões de contadores, advogados e juristas, em geral, vez por outra se afirma que a tributação brasileira é muito alta e, por isso, seria confiscatória.

O que seja confisco, porém, é algo extremamente indeterminado, não havendo cidadão, jurista, ministro do STF que possa com certeza definir. Na Alemanha, já disseram que tributação confiscatória é aquela que atinja mais de 50% do patrimônio de alguém – pois só tem direito de propriedade quem possui controle majoritário sobre o patrimônio -, na Argentina chegaram a um critério de que é confisco tributo que incida sobre 33% do patrimônio a ser herdado ou já existente, não aplicável a tributos aduaneiros ou que incidam sobre o consumo, tendo em vista a repercussão econômica ser suportada por outrem, como se o tributo que era custo se transformasse em obrigação suportada pelo consumidor, que tem liberdade ou não de comprar produto ou serviço2.

O Supremo Tribunal Federal nunca chegou a um valor econômico a partir do qual tributo seria confiscatório, mas já sinalizou que a tributação confiscatória deve ser aferida a partir do que é cobrado e instituído no âmbito de cada ente político e, ainda, que essa análise deve ser casuística, e não em tese, já que em muitos casos os tributos pagos por um contribuinte sofrem deduções, isenções, imunidades etc3.

Na doutrina, já se afirmou que sobre a propriedade o confisco deve ser analisado em uma perspectiva estática, pois se a propriedade gera frutos – valorização imobiliária, alugueis, exploração direta para atividades econômicas -, ela não é aniquilada ao longo do tempo4. Se o tempo gera um acúmulo de tributos a ser pago, também gera o acúmulo de riqueza, em uma situação de normalidade econômica.

A tese, portanto, de que a carga fiscal brasileira é confiscatória deveria vencer dois argumentos fortes.

A um, o de que a Constituição brasileira é altamente pródiga na concessão de direitos fundamentais, de modo que se todo direito ou serviço público envolve custos5 a serem realizados com os créditos públicos6, as receitas públicas são do tamanho da Constituição da República Federativa do Brasil. Ela é pródiga, excessiva, mas se os direitos fundamentais são cláusulas pétreas, enquanto as promessas constituintes não forem atendidas, pensar em tributação menor se torna difícil.

A dois, como o sistema tributário brasileira apresenta a peculariedade de tributar renda e consumo, a análise do confisco deve variar em cada um dos pontos. Na tributação sobre renda, a vedação ao confisco deve ter aplicação mais direta; na tributação sobre o consumo, em tese, a incidência do princípio atrairia outras considerações de ordem material e processual.

Todas as considerações feitas até agora partem de uma análise sobre as obrigações tributárias principais, ou seja, sobre o dever de pagar tributo. No entanto, a vedação ao confisco também poderia ser analisada sob o viés das obrigações tributárias acessórias. Estudos recentes mostram que “a excessividade (sic, o excesso) de obrigações acessórias impostas pela legislação tributária aos contribuintes para o pagamento de seus tributos tem se mostrado ao longo dos anos um entrave ao desenvolvimento econômico do país, inibindo a realização de negócios e a atração de investimentos, conforme atesta o famoso estudo realizado pela PriceWaterhouseCoopers, em conjunto com o Banco Mundial, denominado "Doing Business", segundo o qual o Brasil figurou em 2011 no 127º lugar, dentre os 183 países pertencentes a OCDE também analisados no estudo”7.

Essas preocupações que sempre perpassam a mídia brasileira não têm sido alvos de maiores preocupações jurídicas, de certa forma por grande parte da doutrina tributarista ainda insistir em teses como a de que o tributo é norma de rejeição social e se apegar, com exagero, a premissas liberais não se coadunam com o modelo constitucional vigente.

Daí que se possa reverter um pouco a tendência brasileira em se preocupar muito com a possibilidade de a carga tributária ser confiscatória, mas verificar se a burocracia administrativo-tributária brasileira criada com a exigência de tantas obrigações tributárias acessórias é confiscatória.

Para as obrigações tributárias acessórias, o princípio da vedação ao confisco parece de aplicação mais notória. Considerando que não apenas o pagamento de tributos gera custos, mas o cumprimento dos deveres instrumentais também –e, segundo estudos, há contribuintes que chegam a gastar 2.600 horas do seu tempo com o cumprimento de obrigações tributárias acessórias -, a vedação ao confisco também aqui se aplica.

Com Cristiano Carvalho8 e Aldo Bertolucci9, chega-se a idéia de que os deveres instrumentais geram custos de conformidade para os agentes econômicos. O que se sugere, então, é que se reduzam os chamados custos e conformidade no Brasil – em linhas gerais, o dispêndio que se gasta com o cumprimento da legislação tributária -, até mesmo por um imperativo constitucional.

Claro que é constitucional exigir do contribuinte o dever de colaboração com o Fisco, mesmo na constituição do crédito tributário10, mas se mostra inconstitucional criar obrigações acessórias que não se justifiquem sob o enfoque eficiência-necessidade, o que pode levar ao uso da proporcionalidade e razoabilidade como critérios de controle. É dizer, o gasto excessivo de tempo e de recursos com obrigações tributárias acessórias pode, em situações extremas, levar ao confisco.

Algum conteúdo jurídico a essa preocupação já foi dado, quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional legislação tributária que condicionava o exercício da atividade econômica à prévia liberação de Fisco Estadual para o particular em passivo tributário11. Embora nas razões de decidir, o argumento principal tenha sido a vedação a cobrança de tributo por vias oblíquas, fato é que, se mesmo quem deve não pode ter sua atividade empresarial obstada – salvo casos extremos que agridam a própria concorrência12 – com muita mais razão alguma obrigação tributária acessória ou o cúmulo delas também não o poderia.

Esse tema precisa ser judicializado, embora se reconheçam algumas medidas dos Fiscos para simplificação tributária13 e isso esbarre no próprio caos e na complexidade que é o Sistema Tributário Nacional, com seus múltiplos tributos, cobrados nos níveis federal, estadual e municipal.

Notas de rodapé

1 DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Proibição de tributos com efeito de confisco. Dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação do Prof. Doutor Cezar Saldanha Souza Júnior, disponível em

http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7315/000498146.pdf?sequence=1, acesso em 09.06.2012. Ver, sobretudo, páginas 49 e seguintes.

2 STF, Pleno, RE 388312/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia, j. em 1º.8.2011.

3 BARRETO, Aires. Vedação ao efeito do confisco. In: “Revista de Direito Tributário, São Paulo:Malheiros, v. 64, pp. 96-10

4 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton & Co., 1999.

5 Lembre-se de que a atividade financeira do Estado é instrumental e as receitas auferidas atualmente são, em geral, derivadas – Estado cobra coercitivamente tributos e outras exações do particular -, auferindo algo que, quando previsto no orçamento, transforma-se em créditos públicos estimados para fazer frente às despesas públicas previamente fixadas.

6 RÊGO, Andressa Guimarães Torquato R. Reforma tributária viável. Obrigações tributárias acessórias e SPED: problemas e soluções para uma efetiva simplificação das obrigações tributárias acessórias. Disponível em http://www.fiscosoft.com.br/a/5hnf/reforma-tributaria-viavel-obrigacoes-acessorias-esped-problemas-e-solucoes-para-uma-efetiva-simplificacao-das-obrigacoes-tributariasacessorias-andressa-guimaraes-torquato-f-rego, acesso em 09.06.2012.

7CARVALO, Cristiano. Análise econômica do Direito Tributário. Disponível em http://www.cmted.com.br/restrito/upload/artigos/18.pdf, acesso em 09.06.2012..

8 Uma contribuição ao estudo da incidência dos custos de conformidade às leis e disposições tributárias: um panorama mundial e pesquisa nos custos das companhias de capital aberto no Brasil. Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, 2003.

9 Não parece reversível a jurisprudência que fixou que atos do próprio contribuinte constituem obrigações tributárias em créditos tributários (súmula 436, STJ), mas um tema que ainda aparecerá nos Tribunais brasileiros é se, dentro do direito a não auto incriminar-se, a presunção de inocência ou de não-culpabilidade, que tem sido ampliada também para as sanções administrativas, estaria incluída a impossibilidade de se obrigar o cumprimento de obrigações tributárias acessórias, como declarações que poderiam levar à cobrança de tributos ou aplicação de multas Para uma análise do panorama europeu, especialmente, o espanhol, ver RIU, Jorge Sarró. El derecho a no autoinculparse del contribuyente: vigência de las garantias frente a La autoincirminación el los procedimientos ante la Inspección de la Hacienda. Barcelona: Bosch Fiscalidad, 2009.

10 STJ, RE 413.782, Pleno, Min. Rel. Marco Aurélio, DJ em 03.06.2005.

1’1 STF, ACO-MC n. 1657, Rel. p/o ac. Min. Cezar Peluso,, j. em 27.06.2007, DJe em 31.08.2007.

12 À guisa de exemplo, cite-se que “a partir de janeiro de 2013, a Receita Federal deixará de exigir a Declaração Anual do Simples Nacional. Já a partir de janeiro de 2012 serão extintos o Demonstrativo de Notas Fiscais (DNF), a Declaração de Crédito Presumido de Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) e a Declaração do Imposto Territorial Rural (DITR) para imóveis imunes e isentos. Em 2014, será extinta a Declaração de Informações Econômico-Fiscais de Pessoa Jurídica (DIPJ). As medidas fazem parte de um pacote anunciado pelo Fisco para facilitar a vida dos contribuintes”, notícia disponível em http://universotributario.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1778&Itemid=374, acesso em 09.06.2012.

Autores

  • Brave

    é procurador da fazenda nacional e professor, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio e doutorando em Filosofia do Direito pela Universidade de Girona

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