Aforamento permitido

União pode dispor do domínio útil de terreno da marinha

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18 de junho de 2012, 8h00

A questão apresentada envolve conhecimento específico da legislação sobre terrenos da União, neles incluídos os de marinha, que são objeto de aforamento, o que demandou maior cuidado sobre o tema, bem como maior pesquisa na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Sabe-se que o domínio do terreno de marinha é da União, e que esta concede o aforamento, mediante condições específicas ao foreiro, o qual fica obrigado a pagar o foro anual e o laudêmio em caso de venda do domínio útil.

O terreno de marinha, conforme se verá, é de propriedade da União por força da Constituição Federal de 1988 e de Leis infraconstitucionais.

O que pode ser objeto de discussão de propriedade é o domínio útil do mesmo terreno, sendo este o objeto comum de contendas sobre a transferência do aforamento.

Contudo, deve-se ressaltar que a questão do aforamento possui legislação própria, não se aplicando a regra simples do Direito Civil de apenas transferir a propriedade no Cartório de Registro de Imóveis.

Mesmo em caso de desapropriação, esta deve ser referente ao domínio útil do terreno, pois, conforme dito antes, apenas este pode ser passado de uma pessoa para outra, pois a propriedade é da União. 

Aliás, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível ação possessória, usucapião, e, até mesmo, desapropriação, em relação ao domínio útil de terreno objeto de aforamento.

O que se verifica, contudo, é que, na prática, os enfiteutas  possuidores do domínio útil  não cumprem a legislação referente ao aforamento, estando, por isso, sujeitos a penalidades previstas na lei específica.

Outrossim, há irregularidades práticas, no que diz respeito à transferência do domínio útil  aforamento , seja quanto à necessidade pagar foros e laudêmio à União, como em relação a equívocos na própria transferência em Cartório e nos registros da Secretaria do Patrimônio da União (SPU).

Destarte, ninguém pode deixar de aplicar a lei alegando que não a conhece.

Legislação a ser obedecida
Assim dispõe o art. 3º, §2º, do Decreto-Lei nº 2.398/87:

“Art. 3° Dependerá do prévio recolhimento do laudêmio, em quantia correspondente a 5% (cinco por cento) do valor atualizado do domínio pleno e das benfeitorias, a transferência onerosa, entre vivos, do domínio útil de terreno da União ou de direitos sobre benfeitorias neles construídas, bem assim a cessão de direito a eles relativos. (Regulamento).

1° As transferências parciais de aforamento ficarão sujeitas a novo foro para a parte desmembrada. 

Parágrafo 2° Os Cartórios de Notas e Registro de Imóveis, sob pena de responsabilidade dos seus respectivos titulares, não lavrarão nem registrarão escrituras relativas a bens imóveis de propriedade da União, ou que contenham, ainda que parcialmente, área de seu domínio: (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)

 I – sem certidão da Secretaria do Patrimônio da União – SPU que declare:  (Incluído pela Lei nº 9.636, de 1998)

 a) ter o interessado recolhido o laudêmio devido, nas transferências onerosas entre vivos; (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)

 b) estar o transmitente em dia com as demais obrigações junto ao Patrimônio da União; e (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)

c) estar autorizada a transferência do imóvel, em virtude de não se encontrar em área de interesse do serviço público; (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)

 II – sem a observância das normas estabelecidas em regulamento. (Incluído pela Lei nº 9.636, de 1998)."

Observe-se que para se transmitir o domínio útil de terreno da União, os Cartórios de Notas e Registro de imóveis devem ter certidão da SPU que declare ter o interessado recolhido o laudêmio devido, nas transferências onerosas entre vivos, e estar o transmitente em dia com as demais obrigações junto ao patrimônio da União.

É de se observar que, não raro, os cartórios desconhecem esta norma, fazendo crer ao comprador do domínio útil do bem da União, que a transferência no Cartório por si só basta como formalidade jurídica para a transmissão da propriedade, inclusive, sem exigir certidão que comprove quitação de débitos perante a SPU.

Relembre-se a obrigação do foreiro de pagar o foro anual, bem como o laudêmio no caso de venda. É evidente que a regra de pagar o laudêmio permanece válida, também, no caso de desapropriação do domínio útil.

Observe-se que não há como se justificar a ausência de pagamentos de valores devidos por lei à União, real proprietária do bem objeto do aforamento.

Assim sendo, se houver erro por parte do cartório, esse é um problema que não diz respeito à União, até porque é o cartório delegatário do Estado, ente diverso da Federação, devendo eventual ação de indenização ser direcionada a quem houver dado causa aos danos sofridos, em razão de se perder algum direito quanto ao bem que não foi regularizado perante a SPU, segundo a legislação específica, conforme se verá.

O fato é que as dívidas não prescritas (observando-se que existem casos de suspensão e interrupção da prescrição) devem ser cobradas pela União para a transferência do aforamento, salvo em eventual parte que esteja sendo discutida judicialmente, que, em caso de vitória, será recebida depois, mediante os trâmites devidos.

Nesse sentido, é imperioso que a SPU informe eventual interessado, sobre a possibilidade de caducidade do aforamento, bem como os valores devidos e as obrigações correlatas, para que este, em razão de negócio jurídico envolvendo o domínio útil, realize a transferência na SPU, e pague as dívidas, desde que atenda os requisitos legais para tanto, para constar no cadastro de forma regular.

Importante informar que quem consta no cadastro da SPU é quem é cobrado por esta. Logo, a transmissão no Cartório, apenas, não elide a responsabilidade perante a União.

Quanto a quem realiza negócio jurídico envolvendo domínio útil de imóvel da União, assiste interesse em pagar a dívida existente, uma vez que o não pagamento do valor total devido poderá ensejar a caducidade do aforamento, conforme se verá.

Assim sendo, é sempre recomendável informar os interessados sobre as consequências da não regularização perante a SPU, para permitir-lhes o direito ao contraditório constitucionalmente assegurado, para que eventual caducidade depois não seja contestada sob esse fundamento (de falta de contraditório).

É, ademais, dever legal que a SPU cobre, também, para que pague os valores devidos, quem consta nos seus cadastros, mesmo que este tenha transferido o título no Cartório, uma vez que tal fato não é oponível à SPU, em razão de legislação própria.

Destarte, a recomendação acima de informar o interessado, é apenas para que este não sofra as consequências da caducidade do aforamento, entre outras. Mas a cobrança vai para quem está cadastrado na SPU, independentemente de acordo entre as partes.

Legislação sobre a transferência do aforamento
Sobre a transferência do aforamento, assim dispõe o art. 116 do Decreto-Lei 9760/46, in fine:

"Artigo 116 – Efetuada a transação e transcrito o título no Registro de Imóveis, o adquirente, exibindo os documentos comprobatórios, deverá requerer, no prazo de 60 (sessenta) dias que para o seu nome se transfiram as obrigações enfitêuticas.

Parágrafo 1º – A transferência das obrigações será feita mediante averbação, no órgão local do SPU, do título de aquisição devidamente transcrito no Registro de Imóveis, ou, em caso de transmissão parcial, do terreno mediante termo.

Parágrafo 2º – O adquirente ficará sujeito à multa de 0,05% (cinco centésimos por cento), por mês ou fração, sobre o valor do terreno e benfeitorias nele existentes, se não requerer a transferência dentro do prazo estipulado no presente artigo."

Da análise supra, caso o “adquirente” do domínio útil não tome as providências acima, ficará sujeito às sanções cabíveis.

O tema “transferência” se encontra na seção III do Capítulo IV, que versa sobre o aforamento – Decreto-Lei nº 9760/46.

Assim dispõe o artigo 101 da lei em espeque sobre a caducidade do aforamento:

"Artigo 101 – Os terrenos aforados pela União ficam sujeitos ao foro de 0,6% (seis décimos por cento) do valor do respectivo domínio pleno, que será anualmente atualizado. (Redação dada pela Lei nº 7.450, de 1985)

Parágrafo único. O não-pagamento do foro durante três anos consecutivos, ou quatro anos intercalados, importará a caducidade do aforamento. (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)"

A seção IV do suprareferido capítulo da Lei em espeque traz a seguinte previsão sobre a caducidade do aforamento:

"Artigo 118. Caduco o aforamento na forma do parágrafo único do art. 101, o órgão local da SPU notificará o foreiro, por edital, ou quando possível por carta registrada, marcando-lhe o prazo de noventa dias para apresentar qualquer reclamação ou solicitar a revigoração do aforamento.(Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998).

Parágrafo único. Em caso de apresentação de reclamação, o prazo para o pedido de revigoração será contado da data da notificação ao foreiro da decisão final proferida.

Artigo 119.  Reconhecido o direito do requerente e pagos os foros em atraso, o chefe do órgão local da Secretaria do Patrimônio da União concederá a revigoração do aforamento. (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007)

Parágrafo único.  A Secretaria do Patrimônio da União disciplinará os procedimentos operacionais destinados à revigoração de que trata o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)

Artigo 120. A revigoração do aforamento poderá ser negada se a União necessitar do terreno para serviço público, ou, quanto às terras de que trata o artigo 65, quando não estiverem as mesmas sendo utilizadas apropriadamente, obrigando-se, nesses casos, à indenização das benfeitorias porventura existentes. 

Artigo 121. Decorrido o prazo de que trata o art. 118, sem que haja sido solicitada a revigoração do aforamento, o Chefe do órgão local do S.P.U. providenciará no sentido de ser cancelado o aforamento no Registro de Imóveis e procederá na forma do disposto no art. 110. 

Parágrafo único.  Nos casos de cancelamento do registro de aforamento, considera-se a certidão da Secretaria do Patrimônio da União de cancelamento de aforamento documento hábil para o cancelamento de registro nos termos do inciso III do caput do art. 250 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)."

Como se pode observar há consequências graves, em caso de caducidade do aforamento, e do descumprimento dos prazos legais, motivo pelo qual deve ser informado tanto a quem conste no cadastro da SPU, como a eventual interessado, sobre as consequências previstas na Legislação sobre a necessidade de regularização de procedimentos e dívidas em domínio útil de terreno de marinha, que pertence à União, oportunizando o contraditório e ampla defesa, para depois adotar as medidas previstas na legislação, em caso de descumprimento das determinações legais.

Trago à colação Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema:

"EMENTA – ADMINISTRATIVO. TERRENO DE MARINHA. TRANSMISSÃO DE DOMÍNIO ÚTIL. FATO GERADOR DA OBRIGAÇÃO DE PAGAR O LAUDÊMIO. REGISTRO DO IMÓVEL EM CARTÓRIO. BENFEITORIAS REALIZADAS APÓS A CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DO TERRENO E ANTERIORES AO FATO GERADOR. EXCLUSÃO NA BASE DE CÁLCULO DO LAUDÊMIO. IMPOSSIBILIDADE.

1. Cuida-se, na origem, de mandado de segurança impetrado pelos ora recorrentes contra ato do Gerente do Serviço do Patrimônio da União em Fortaleza, cuja ordem, que objetivava afastar do cálculo do laudêmio as benfeitorias realizadas em terreno de marinha após a celebração do contrato de compra e venda deste, foi denegada.

2. Em verdade, laudêmio é a compensação assegurada ao senhorio direto por este não exigir a volta do domínio útil do terreno de marinha às suas mãos ou de direitos sobre benfeitorias nele construídas. Tal vantagem tem por fato gerador a alienação desse domínio ou desses direitos e uma base de cálculo previamente fixada pelo art. 3º do Decreto n. 2.398/87.

3. A propósito, o art. 3º do Decreto n. 95.760/88, ao fixar como será efetuado o cálculo do valor do laudêmio, não deixa dúvidas.

4. Como se depreende da redação dos dispositivos acima, a base de cálculo do laudêmio consiste não meramente no valor atualizado do domínio pleno, mas também das benfeitorias.

5. Por sua vez, esta Corte já firmou que o fato gerador da debatida exação não ocorre quando da celebração do contrato de compra e venda nem da sua quitação, mas, sim, da data do registro do imóvel em Cartório de Registro de Imóveis, momento da transferência do domínio útil do aludido direito real, razão pela qual deveriam incidir 5%, não meramente sobre o valor do imóvel ao tempo do ajuste, mas sobre o valor atualizado do bem.

6. Nesse sentido, diante do princípio da legalidade e da indisponibilidade dos bens ou faculdades inerentes à titularidade do domínio público, muito embora as benfeitorias tenham sido comprovadamente construídas após a celebração do acordo de compra e venda, estas não podem ser excluídas da base de cálculo do laudêmio, sobretudo se ainda não ocorreu o registro do imóvel em Cartório de Registro de Imóveis.

7. Recurso especial conhecido e não provido. (Processo REsp 1257565/CE – RECURSO ESPECIAL 2011/0124988-1 – Relator(a) Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES (1141) – Órgão julgador T2 – SEGUNDA TURMA – Data do julgamento 23/08/2011 – Data da Publicação/Fonte Dje 30/08/2011)."

"EMENTA – ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. IMÓVEIS DA UNIÃO. TERRENO DE MARINHA. TAXA ANUAL DE OCUPAÇÃO. .EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE.  TRANSFERÊNCIA DA OCUPAÇÃO DO IMÓVEL A TERCEIRO. CESSÃO DE POSSE. NÃO OPONÍVEL EM FACE DA UNIÃO. AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO. PAGAMENTO. RESPONSABILIDADE DE QUEM FIGURA COMO OCUPANTE NO CADASTRO DA SECRETARIA DE PATRIMÔNIO DA UNIÃO – SPU.

(…) 8. É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o título de propriedade do particular não é oponível à União nesses casos, pois os terrenos de marinha são da titularidade originária deste ente federado, na esteira do que dispõem a Constituição da República e o Decreto-lei n. 9.760/46.

9. Recurso especial não provido. (Processo REsp 1201256/RJ – RECURSO ESPECIAL 2010/0123786-0 – Relator(a) Ministro BENEDITO GONÇALVES (1142) – órgão Julgador T1 – PRIMEIRA TURMA – Data do Julgamento 07/12/2010 – Data da Publicação/Fonte Dje 22/02/2011)."

Disposição para o aforamento
A União possui a propriedade do terreno de marinha; todavia, pode dispor de seu domínio útil. Com o aforamento, há esta disposição, que deve ocorrer de acordo com legislação específica; atenua-se, aqui, o paradigma de que a transcrição do título no Cartório de Registro de Imóveis é suficiente para a transmissão da propriedade, pois, em relação ao terreno de marinha, há a obrigação de transferência no cadastro da SPU, sob pena de caducidade do aforamento, após os trâmites legais.

O negócio realizado entre as partes não é oponível à SPU, uma vez que esta deve cumprir a Lei, sendo indisponível o bem público; “contratos de gaveta” muito menos são oponíveis à União.

Nota-se desconhecimento da Legislação específica, inclusive, por parte dos titulares de cartórios, os quais deveriam transferir o domínio útil de terreno de marinha apenas após a comprovação de que não há dívidas perante a SPU.

O domínio útil de imóvel objeto de aforamento pode ser objeto de disputa entre particulares, sendo, contudo, a propriedade do imóvel da União; desse modo, pode haver ação possessória, usucapião, ou, até mesmo, desapropriação envolvendo o domínio útil. Contudo, o que importa é obedecer os trâmites legais, pagando-se os valores à União, através da SPU, pela utilização do domínio útil desse bem.

O artigo acima é um capítulo do livro "Direito Público, Estudos Temáticos", de Rodrigo Passos Pinheiro e Ricardo Macedo Duarte, que será lançado nas próximas semanas pela Scortecci Editora.


Bibliografia

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Admi-nistrativo. 25ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas S.A., 2002.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Método, 2007.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRAN-CO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

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