Procedimentos automáticos

Caso de idosa que matou assaltante no RS traz discussão

Autor

  • Paulo Afonso Brum Vaz

    é desembargador federal coordenador do Sistema de Conciliações da 4ª Região — Sistcon/Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e mestre em Poder Judiciário pela FGV.

16 de junho de 2012, 8h00

 Vem causando forte estrépito social a morte de um suposto assaltante por uma idosa na cidade de Caxias do Sul, restando deflagrado, não apenas dentre os operadores do Direito, mas, principalmente, no seio da comunidade, um debate acerca do procedimento estatal diante do inusitado caso havido na serra gaúcha.

Questiona-se até sobre a desnecessidade de instauração do inquérito policial em relação ao episódio e sobre o próprio indiciamento da octogenária. Defende-se, em posições mais extremadas, o pronto arquivamento do caso, numa espécie de absolvição sumária, diretamente pela autoridade policial, e, por outro lado, ser imperativo e imediato indiciamento. Estes os dois aspectos a serem analisados, que não escapam aos profissionais forenses, mas que são estranhos ao leigo em matéria jurídica.

Os órgãos de polícia investigativa não detêm a faculdade de deflagração do inquérito policial, sendo-lhes cogente a determinação processual de tal procedimento tão logo tenham conhecimento da prática de uma infração penal de ação pública – como é a hipótese do homicídio –, a  teor do artigo 5º, I, da Lei Adjetiva Penal. É o que se denomina de inquisiti ex officio.

Assim, cabe ao delegado responsável pela condução da averiguação, pautando com rigorismo a sua atuação, coletar todos os elementos probatórios relacionados ao acontecimento (artigo 6º do CPP), para, somente após, indiciar o autor do fato criminoso perscrutado. 

Isto porque o indiciamento consiste no ato através do qual se aponta determinada pessoa como executora de uma infração penal. Ora, na hipótese em que se investiga um crime que teria sido praticado em legítima defesa, o indiciamento não pode ocorrer prematuramente, ainda que confessado pelo seu agente, pois em discussão a existência de causa excludente de ilicitude (artigo 23, inciso II, do Código Penal), o que, consequentemente, impede de se falar em autoria de um crime, que pode não ter ocorrido. 

Reclama-se, para o ato de indiciar, portanto, acima de tudo, uma apuração policial detalhada quanto às circunstâncias em que se deu o fato. Somente então, diante de um panorama amplo e pormenorizado, poder-se-á concluir pela efetiva ocorrência, ou não, de crime, a autorizar o indiciamento do suspeito. 

Nesta exata linha de conta, inclusive, vem a reforma do Código de Processo Penal proposta pelo artigo 8º do Projeto de Lei nº 4.209/01, o qual pretende deixar expresso que, apenas quando "reunidos elementos informativos tidos como suficientes, a autoridade policial cientificará o investigado, atribuindo-lhe fundamentadamente a situação jurídica de indiciado, com as garantias dela decorrentes". 

Em suma, não pode o delegado de polícia deixar de instaurar o inquérito, bem como, concluída a investigação, de elaborar minucioso relatório do que tiver sido apurado (artigo 10, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal). Deve ele, todavia, proceder à coleta dos informes de prova aprofundadamente para somente então realizar, ou não, o gravoso indiciamento, que, diga-se de passagem, é ato privativo da autoridade policial, mas não se compreende no seu discricionarismo ou subjetivismo. 

Neste contexto, cumpre à polícia judiciária, em situações tais como a da idosa caxiense, uma vez confirmada a tese da defesa legítima, deixar de indiciar o agente e, ao concluir o inquérito, relatá-lo no sentido de que, sob sua ótica, não obstante comprovada a autoria e a materialidade, caracterizada estaria a causa de exclusão de ilicitude pertinente à prática delituosa ter decorrido do legítimo exercício de defesa (artigo 23, inciso II, do Código Penal). Não lhe compete o arquivamento, de ofício, do inquérito, mesmo que, a seu ver, esteja devidamente confirmada a tese da legítima defesa que acompanha a notícia desde a sua divulgação. Clara, a propósito, é a redação do artigo 17 do Código de Processo Penal, segundo a qual a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito. 

Ainda, a despeito de qualquer que seja a conclusão policial, não se pode suprimir a oportuna manifestação sobre o fato criminoso pelo titular da ação penal, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Realmente, considerando que em nossa ordem constitucional somente o parquet pode propor ação penal pública (artigo 129, inciso I, da Constituição Federal), caberá ao promotor natural do caso emitir um juízo sobre a ocorrência, ou não, de crime. Caso o agente ministerial venha a requerer ao juiz o arquivamento do inquérito, restará ao magistrado acolher a proposta do Ministério Público ou, discordando do encaminhamento do promotor da comarca, remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça para deliberar, definitivamente, sobre a deflagração, ou não, da persecução criminal em juízo (artigo 28 do Código de Processo Penal).

Vale lembrar, outrossim, que, na eventualidade de o Ministério Público oferecer denúncia, entendendo devidamente perfectibilizada a conduta típica e descaracterizada a excludente de ilicitude, assegurado encontra-se ao Juiz da causa, presidente do Tribunal do Júri, em visualizando, sim, a comprovação da tese de legítima defesa, o poder de não apenas rejeitar a denúncia por carência de justa causa para o exercício da ação penal (artigo 395, inciso III, do CPP), mas, também, de promover a absolvição sumária sob o fundamento de que, a despeito da existência do fato, demonstrada a ocorrência de uma causa de isenção de pena ou de exclusão do crime (art. 415, inciso IV, do CPP), deixando de pronunciar a ré e, por conseguinte, de submetê-la ao Júri Popular.

Portanto, sem realizar qualquer juízo de mérito sobre a conduta atribuída à senhora de Caxias do Sul, nem ao procedimento da autoridade policial, que não conheço amiúde, parece fora de dúvida que os procedimentos regularmente previstos em nossa ordem processual penal vigente devem ser rigorosamente observados por todos os agentes estatais envolvidos, não vingando a opinião pública sobre uma eventual "absolvição sumária policial", nem, por outro lado, a defesa do “automático” indiciamento, sobretudo porque vivemos sob a égide do Estado Democrático de Direito.

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    é desembargador federal, coordenador do Sistema de Conciliações da 4ª Região — Sistcon/Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e mestre em Poder Judiciário pela FGV.

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