Bela e Infiel

Que Santa Catarina não se omita e crie a Defensoria

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16 de junho de 2012, 8h00

A Constituição brasileira elenca, em seu artigo 5º, os “Direitos e Garantias Fundamentais”, inalienáveis direitos de todo cidadão, cláusulas supremas, até mesmo em cotejo com as demais normas da Magna Carta. Outros direitos e garantias fundamentais existem, também na CF/88, embora fora do artigo 5º, como o artigo 196, que garante saúde gratuita para todos.

No artigo 5º merecem destaque os incisos que estabelecem o “Direito de ter Direitos” (expressão cunhada pelo ministro Celso de Mello, do STF), a saber, incisos XXXV e LXXIV, que garantem a todo o cidadão, inclusive ao pobre, o direito de acesso à Justiça, em todos os seus níveis — estadual e federal — e em todos os graus de jurisdição, inclusive ao Supremo Tribunal Federal.

XXXV a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
LXXIV
o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
Prever um direito ou uma garantia sem instrumentalizá-lo seria o mesmo que negá-lo. Por isso, o legislador constitucional determinou, no artigo 134 da Magna Carta, a criação da Defensoria Pública, nos níveis estaduais e federal:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.

Pois bem, em franca violação ao mandamento constitucional insculpido no artigo 134, o estado de Santa Catarina entregou as funções privativas da Defensoria Pública à Ordem dos Advogados do Brasil, OAB-SC, estabelecendo na Lei Complementar 155/97 que:
Art. 1º Fica instituída, pela presente Lei Complementar, na forma do art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina, a Defensoria Pública, que será exercida pela Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita, organizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina – OAB/SC.

Após mais de 17 anos da citada usurpação (expressão empregada pelos Ministros do STF, não por mim), finalmente o Supremo Tribunal Federal julgou as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) número 3.892 e 4.270, ajuizadas pelas Associações de Defensores Públicos dos Estados e de Defensores Públicos da União.

Antes disso, há cerca de oito anos, enderecei representação pela inconstitucionalidade da malsinada norma usurpadora ao Procurador-Geral da República, único membro do Ministério Público Federal com atribuição para ajuizar perante o STF ações diretas de inconstitucionalidade de leis estaduais. Antes que o PGR adotasse alguma providência no sentido de analisar meu pedido de ajuizamento de ADI, as duas nobres associações de defensores públicos se anteciparam em combater a flagrante inconstitucionalidade.

Em 14 de março de 2012, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento histórico, guilhotinou, por 11 votos a zero, a Lei Estadual usurpadora (chamada pelo ministro Marco Aurélio de lei esdrúxula), determinando ao estado de Santa Catarina que, no prazo de um ano, até março de 2013, seja editada lei criando a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina e, incontinenti, promovendo-se concurso público para provimento de cargos de defensor público nos moldes mandamentais do artigo 134 da Constituição da República.

Nesse julgamento histórico, a OAB-SC, chamada aos autos como amicus curiae (interessada no feito), deixou de comparecer ao plenário do STF para promover a defesa de seu interesse em “defender” a população desassistida de Santa Catarina. Perdeu, pode-se dizer, por W.O.

O julgamento foi marcado pela indignação dos ministros do STF, cuja magnitude chegou ao ponto de registrarem que a omissão do governo do estado de Santa Catarina em criar a Defensoria Pública nos moldes da Constituição Federal caracteriza “crime de responsabilidade”.

Diante da “usurpação manifesta” ou, também nas palavras do ministro relator, Joaquim Barbosa, “a substituição do interesse público pelo interesse corporativo dos membros da OAB”, a lei estadual foi julgada inconstitucional e banida do ordenamento jurídico pátrio.

“Santa Catarina falhou e falhou de modo grave. Santa Catarina é a única Unidade da Federação que ainda não cumpriu o seu dever constitucional de prover as pessoas necessitadas daquele estado de um aparato institucional que permita o acesso de pessoas pobres, de pessoas miseráveis, de pessoas desassistidas ao aparelho judiciário do estado”, afirmou o ministro Celso de Mello, ao proferir seu voto. E disse mais: “Essa incompreensível transgressão ao texto constitucional pelo estado de Santa Catarina traduz claramente um inaceitável atentado a um direito fundamental, cujos titulares são precisamente pessoas necessitadas e desassistidas”.

Prosseguiu o ministro Celso de Mello em seu voto: “O estado de Santa Catarina não está sendo fiel às pessoas desassistidas que moram naquela unidade da Federação. E essa infidelidade tem que ser suprimida por essa Corte. O inaceitável comportamento do estado de Santa Catarina, porque transgressor da CF, foi infiel aos mandamentos constitucionais dos artigos 134 e 5 LXXIV”. Afirmou ainda que “não há mais que se cogitar de uma república Juliana” ao referir-se ao que denominou de “direitos sonegados aos marginalizados necessitados de Santa Catarina, na frustração injusta do acesso ao aparelho judiciário do estado”.

O ministro Celso de Mello registrou que a absoluta inércia do estado de Santa Catarina em criar a Defensoria Pública acabou por sobrecarregar outros órgãos, em especial o Ministério Público, aos quais acorreram os necessitados e desassistidos. Com razão o ministro, pois, nos últimos 12 anos, apenas o Ministério Público Federal em Joinville ajuizou centenas de ações civis públicas na busca do direito à assistência integral à saúde dos desamparados, desassistidos e mais pobres cidadãos do norte catarinense.

Ao reafirmar a “essencialidade da Defensoria Pública, criada nos moldes da Constituição Federal, com cargos de defensores públicos providos por concurso público, para a orientação judicial e assistência das pessoas desassistidas”, o ministro Celso de Mello disse ainda que: “É necessário proclamar que toda pessoa tem o direito a ter direitos. Por isso é que a Constituição Federal impõe ao Poder Público e aos estados membros em particular o dever de atribuir aos desprivilegiados, que são verdadeiros marginais do sistema jurídico nacional, porque eles não têm um ponto de conexão com o sistema jurídico que lhes permita obter uma efetiva e plena proteção estatal, notadamente no âmbito jurisdicional.”

Concluiu, então, o ministro do Supremo Tribunal Federal que “a proteção jurisdicional de milhares de pessoas, carentes e desassistidas que sofrem inaceitável processo de exclusão social e jurisdicional depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado”, a Defensoria Pública, criada nos moldes preconizados pela Constituição Federal, em seu artigo 134. Deveras, a Constituição Federal não termina no artigo 133. Ela vai além, e o artigo 134 também a integra.

Que não se omita, pois, o estado de Santa Catarina, por seus líderes políticos, depois do histórico puxão de orelhas dado pelo STF, a dar cumprimento à ordem emanada da Suprema Corte, sob o risco de enfrentamento da responsabilização política a que se referiram os ministros do Supremo. E nós, catarinenses, estamos atentos. Por isso, é de se esperar que o estado de Santa Catarina cumpra a soberana decisão da mais alta Corte de Justiça da Federação e empreenda, respeitado o prazo final de 12 meses, a edição da lei estadual criando “a” Defensoria Pública, nos moldes do artigo 134 da Magna Carta, abrindo concurso público para provimento de cargos efetivos (de dedicação exclusiva) para defensores públicos.

Aos órfãos do banido sistema, pelo menos àqueles que ostentarem verdadeira vocação e anseio para a defesa jurisdicional dos desassistidos e miseráveis, como vi alguns excelentes advogados fazerem, caberá, em regime de democrática concorrência, habilitarem-se a uma vaga na novel instituição, pelas vias do concurso público. E, aos que se demonstrarem aptos, uma vez habilitados pelo certame público, abrir-se-ão as portas daquela que julgo a mais bela das carreiras públicas, no nobre cargo de defensor público. 

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