O julgamento do mensalão

Defesa da democracia e manipulação do Judiciário

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14 de junho de 2012, 14h56

Diante da despudorada desfaçatez do golpe — verdadeiro tapa na cara — desferido pelos senhores do mais recente imbróglio desta pobre República, como reagirá o cidadão comum? Ainda que parcialmente postas em dúvida por seus protagonistas, as versões sobre o episódio ofendem o sentimento de respeito à democracia, república e separação de poderes, postas em xeque por avantajadas doses de audácia, prepotência e cinismo.

Troquemos as versões em miúdos, de preferência raciocinando, até onde seja possível, sobre os pontos em que coincidem. O ex-deputado federal Nelson Jobim, também ex-ministro da Justiça e do Supremo, agora, depois de defenestrado pela presidente Dilma de seu ministério, advogado e militante do PMDB, recebeu em seu escritório brasiliense no final de abril o ex-presidente Lula e o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Lá, conversaram sobre o processo do mensalão e a conveniência do adiamento de seu julgamento para após as eleições de outubro, que teria sido insinuada pelo ex-presidente da República, ao que o ministro Gilmar teria afirmado — aqui começou a divergência de opiniões e também de versões — que o tribunal não deveria considerar qualquer ideia de adiamento, muito ao contrário realizando logo que possível o julgamento, ao que se noticia, em agosto.

Segundo as versões em choque, Lula teria indagado a Gilmar sobre uma viagem deste a Berlim, ao que o ministro respondeu que para lá vai com alguma frequência em razão de ter uma filha ali residindo. Na verdade, o ex-presidente estaria se referindo a uma viagem específica, realizada na companhia do senador Demóstenes Torres — acusado em processo por quebra de decoro em razão de suas apontadas estreitas ligações com o contraventor e empresário Carlinhos Cachoeira, personagem de rumorosa CPI mista no Congresso Nacional. Daí a oferecer, na versão do ministro Gilmar, blindagem na CPMI cujos cordéis controlaria, não seria preciso mais do que um pequeno passo, prontamente repelido, ainda conforme o relato deste último, que, ao recusar a desnecessária proteção, teria sugerido ao ex-presidente que fosse fundo em suas articulações políticas no âmbito da CPMI.

Já Nelson Jobim confirma a versão de Lula, embora, assim como este último, não converse muito com a imprensa sobre o assunto, preferindo lacônicas e quase monossilábicas negativas. O ex-presidente nega qualquer insinuação ou pressão sobre Gilmar ou o STF, afirmando-se, por meio de sua assessoria de imprensa, indignado (supõe-se que com a versão apresentada pelo ministro). Ao que parece, embora só o próprio pudesse afirmar com precisão, tão indignado hoje como, na eclosão do escândalo do mensalão, se disse traído.

O burlesco enredo também teria contado com referências à tentativa de envolvimento de outros ministros do STF na manobra protelatória do julgamento, que a esta altura, diante da firme reação do tribunal por seu presidente Ayres Britto e diversos de seus integrantes, bem como da enorme repercussão na mídia e na opinião pública — sempre no repúdio da grotesca iniciativa —, acabou se esvaindo.

Assim, a farsa não terá logrado êxito, embora a audaciosa tentativa já possa ser considerada um atentado à democracia, à república e à separação de poderes. O ministro Celso de Mello, decano do STF, chegou a afirmar que, se devidamente apurados os fatos fosse confirmada a manobra e estivesse o ex-presidente Lula no exercício do mandato, a extrema gravidade da situação justificaria a abertura de um processo de impeachment. Até porque soa muito estranho que Lula — hoje fora da presidência, mas conservando um enorme capital de poder político e partidário — passe melancolicamente a agredir valores que já lhe coube proteger por dever de ofício.

Se a responsabilidade de homem público, calcada em bela trajetória política de lutas democráticas e no exercício da presidência, não basta para imunizar sua carismática personalidade contra os riscos do abuso de poder, que, para preservar a outra face, os mecanismos institucionais de defesa da democracia e da república possam brecar a execução dessa ópera bufa em limites que permitam à cidadania exercer resistência às manipulações e repulsa a essa perigosa afronta.

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