Joio e trigo

Repatriação de dinheiro não deve incentivar crime

Autor

  • Fábio Martins de Andrade

    é advogado doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

12 de junho de 2012, 7h13

No dia 5 de junho tivemos a oportunidade de acompanhar a audiência pública realizada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados sobre o repatriamento de recursos depositados no exterior ou a anistia fiscal sobre a legalização de tais recursos não declarados, na forma do PL 113/2003 e do PL 5.228/2005.

O encontro contou com a participação de 12 especialistas, representativos dos principais setores da sociedade que atuam diretamente com as questões jurídicas submetidas ao crivo dos ilustres deputados federais relacionadas ao repatriamento, dentre eles magistrados, procurador da República, agentes da Receita Federal, do Ministério da Justiça, do Banco Central e advogados.

Os principais temas variaram em torno dos aspectos criminal, tributário e cambial da questão jurídica relacionada ao repatriamento de recursos depositados no exterior. É interessante notar o espectro das diferentes posições, que variaram desde um extremo (que ressaltou a pertinência e a urgente necessidade de medida de tal natureza, especialmente à luz do emaranhado legislativo criado em torno do tema para as chamadas “pessoas de bem”) até o extremo oposto (de negação e rechaço absoluto dos projetos em razão de suposta “legalização do dinheiro sujo”).

De um lado, as principais críticas, todas levantadas pelos representantes dos diferentes setores da Administração Pública, que foram dirigidas contra o projeto cuidaram de impugná-lo de inconstitucionalidade em razão de suposta violação ao princípio da isonomia, previsto no inciso II do artigo 150 da Constituição da República, na medida em que os contribuintes “beneficiados” pelo diploma legislativo teria tratamento “privilegiado” em relação aos demais cidadãos “ordeiros e de bem” (que são obrigados a declarar seus bens e direitos ao Fisco em determinado momento e se submetem às penalidades cabíveis quando assim não procedem).

Além disso, severas críticas foram levantadas quanto a possibilidade de extinção da punibilidade para aqueles que aderirem aos termos da anistia proposta. Aqui, a principal justificativa gira em torno do argumento de que se estaria permitindo “limpar o dinheiro sujo” oriundo dos piores crimes catalogados pela legislação penal, como o tráfico de pessoas, de órgãos, de drogas, o contrabando, a pornografia, o terrorismo e aqueles relacionados ao conhecido Direito Penal Econômico, dentre outros.

Outra crítica, igualmente à isonomia, refere-se ao incentivo para os maus contribuintes com a redução de alíquota do tributo que incidiria no montante declarado, vez que para ser “atrativo” deve ser reduzido em relação à incidência ordinária (dos tributos que são recolhidos nas situações normais).

Exemplo do levantamento dos argumentos que atendem a posição contrária à aprovação do projeto pode ser encontrado na Nota Técnica 15, referente “A Injusta Repatriação de Bens e Direitos: Análise dos Projetos de Lei em Trâmite no Congresso Nacional”, elaborado pelo Departamento de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional, em maio de 2010 (disponível na internet a partir do endereço http://www.sindifisconacional.org.br).

De outro lado, os advogados que defenderam a pertinência e a urgente necessidade da anistia e do repatriamento dos depósitos mantidos no exterior destacaram relevantes e corriqueiros aspectos da atuação profissional nas áreas tributária e criminal.

De fato, o principal fundamento de legitimidade do projeto é que a inserção institucional do país no âmbito internacional em termos da regulação (e tributação) do fluxo de capitais tem sido claudicante. O problema, em realidade, tem 40 anos. A Lei 4.131/62 disciplinou o tema nos artigos 17 a 19. Pouco tempo depois, a Lei 4.506/64 suspendeu tal disciplina (art. 83). O artigo 14 do Decreto-Lei 94/66 revogou a disciplina anterior (arts. 17 a 19 da Lei 4.131/62). Em 1969, o Decreto-Lei 1.060 restabelece a obrigação de declaração, mas pende de regulamentação. Em 1970, a Resolução 139 prevê a delegação ao Ministro da Fazenda, que remanesce pendente de regulamentação. Passados 11 anos, em 1981, a ADN 07 dispõe que para a pessoa física basta a DIPF. Em 1986, a Lei 7.492, que dispõe sobre os crimes do sistema financeiro nacional, criminaliza a falta de declaração em relação aos depósitos no exterior. Em 2001, chegou a regulamentação esperada com a Resolução 2.911 e a Medida Provisória 2.244.

Enfim, a criminalização da falta de declaração de depósitos mantidos no exterior como crime permanente e, ademais, a circunstância de que até o final dos anos 80 o país experimentou regime cambial extremamente rígido (com pouca mobilidade de capitais), foram suficientes para que uma miríade de situações triviais e corriqueiras viesse ao conhecimento dos advogados tributaristas e criminalistas. Com efeito, exemplo disso é o recebimento de montante no exterior pelos incautos, seja em razão de estudo, profissão, herança e prêmio, dentre outras tantas possíveis.

Além disso, o repatriamento e o ingresso de tais montantes no sistema financeiro nacional permitiria incrementar a arrecadação tributária (já que se cuida de dinheiro difícil de ser rastreado e, ainda mais difícil de ser repatriado pela via coercitiva) e criar maior transparência, como instrumento a serviço do combate a corrupção (flagelo endêmico e permanente da sociedade brasileira).

Ademais, os advogados tributaristas que sustentaram a pertinência da proposta registraram que a experiência internacional é francamente favorável à sua realização. De fato, projetos parecidos foram levados a cabo em países como Portugal, Espanha, Itália, África do Sul, Argentina, México, Bélgica, Alemanha e os Estados Unidos da América do Norte.

É curioso notar que os resultados alcançados foram diferentes. Quando as alíquotas aplicáveis foram altas, houve pouco êxito em relação ao dinheiro esperado e efetivamente repatriado. Ao revés, quando as alíquotas aplicáveis foram menores e, por conseguinte, mais “atrativas” aos contribuintes, então o montante repatriado foi muito maior. De fato, a definição da alíquota depende de conveniência política, a ser calibrada consoante a intenção do legislador: repatriar o maior número de depósitos mantidos no exterior e incrementar a arrecadação tributária com montantes até então inesperados (e que passam a fazer parte do sistema de modo legítimo). Exemplo do levantamento dos principais argumentos que atendem a posição favorável à aprovação do projeto pode ser encontrado na apresentação do advogado convidado André Martins de Andrade (disponível na internet a partir do endereço http://www.netinternacional.org).

De todo o debate promovido naquela tarde, alguns pontos parecem ter ficado suficientemente claros. São eles: a) de certa forma é dívida do Poder Legislativo criar um mecanismo que permita as “pessoas de bem” repatriar seus recursos depositados no exterior, em condições relativamente facilitadas (que levará a sua regularização fiscal e ao incremento da arrecadação tributária); b) não é desejável, e muito menos esperado, que a anistia que se busca seja capaz de abranger todo e qualquer depósito mantido no exterior, ou seja, é necessário que se cuide da origem lícita do montante repatriado, sob pena de permitir legitimamente a “lavagem de dinheiro sujo”, que não parece ser a intenção de ninguém que participou da referida audiência pública; c) a extinção da punibilidade deve-se limitar aos primeiros casos referidos anteriormente; e d) há ajustes que precisam ser discutidos, compreendidos e aprimorados no âmbito do trâmite legislativo restante, tanto na Câmara dos Deputados como também no Senado Federal.

Parece ter ficado claro que a polêmica do projeto é muito menor do que a sua necessidade; as chamadas “pessoas de bem” devem ser abrangidas pela anistia e o chamado “dinheiro sujo” (oriundo de crimes “pesados”) não pode entrar (ou pelo menos, não com a extinção da punibilidade) e o atual cenário de crise internacional é mais do que oportuno para incrementar a arrecadação tributária (a depender de como será a sua disciplina e regulamentação).

Cabe agora aos nossos nobres parlamentares equacionar essas questões de modo a viabilizar o projeto que, no entender de todos, é pertinente para as “pessoas de bem” e que estão sofrendo com a impossibilidade de resolver problemas corriqueiros e triviais em razão do emaranhado legislativo atualmente em vigor. Uma coisa é certa: a questão está madura e pronta para ser examinada e votada na Câmara dos Deputados. Vamos acompanhar e ver o que virá do nosso Congresso Nacional.

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