Direito & Mídia

O pensamento anacrônico na atual guerra das mídias

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6 de junho de 2012, 11h48

Spacca
Comunicação não é o que se diz, mas o que o seu interlocutor entende. Esse chavão tão utilizado em cursos de midia training está coberto de razão. Alguns comentários postados por leitores nessa coluna deixam isso claro. Então, inicio este texto reiterando meu respeito pelo jornalista Mino Carta, criador de publicações como a revista Quatro Rodas, que tive o privilégio de dirigir 30 anos após sua passagem por lá, além de diários como o Jornal da Tarde, República (de curta duração, infelizmente), Veja, Senhor, IstoÉ e sua atual CartaCapital.

Esse esclarecimento se faz necessário diante do acirramento ideológico que acontece na atual batalha entre os meios de comunicação, no que se convencionou chamar de estratégia de ataque à liberdade de imprensa, organizada desde o segundo mandato do Governo Lula. O mesmo que em algum momento afirmou “Feliz o país que tem uma imprensa livre e democrática”, pelo que recolho em alguns sites sobre o tema (da liberdade de imprensa). Esse movimento de cerceamento do “livre pensar é só pensar”, como dizia Millôr Fernandes, vem se expandido das iniciativas sindicais em exigir controles, até a atitude de atribuir todos os males à imprensa, como se ela fosse culpada em divulgar o que acontece. Como naquela antiga história do “já que a notícia é ruim, mate-se o mensageiro”.

Já foi dito que o melhor controle dos excessos da imprensa é mais liberdade de imprensa. Algo que em nosso país apenas Pedro II de fato praticou. Como os primeiros republicanos (Floriano Peixoto à frente, terminando com a festa da imprensa livre), os atuais governantes não gostam de ouvir críticas. Reinaldo Azevedo (seu blog é acessado em média 120 mil vezes por dia, com pico de 236.640, segundo ele mesmo informa) escreveu: “Eu ataco este governo Lula como ataquei o outro [FHC], o problema é que o outro aceitava ser atacado, e este não aceita ser atacado porque acha que faz tudo certo”. Num contraponto, o professor e filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. comenta no blog do filósofo: “A base da militância do PT não tem tanto apreço pela liberdade quanto tem pela igualdade. Ela prefere acreditar que toda e qualquer frase da Veja, do Estadão e da Folha, quando criticam o PT, até mesmo por questões técnicas como o caso do Enem, é farsa arquitetada pelo que chama de ‘Partido da Imprensa Golpista’ (PIG), um título chavista que entrou na cabeça do militante petista”.

Mas esses desdobramentos da atual guerra da mídia acontecem numa espécie de circuito fechado. Pequena parte da população acompanha a troca de ataques, embora esse clima tenha o efeito paralisante num momento em que o país precisa mais do que nunca de um projeto claro para resolver tantos problemas. Esse circuito curto já foi analisado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, quando escreveu, no livrinho Sobre a Televisão, que quem mais lê jornais são os próprios jornalistas e que os meios pautam os meios, no que ele chamou de “circulação circular da notícia”. De fato, jornalistas são os únicos profissionais que iniciam a leitura de periódicos com uma vista de olhos no expediente, para inspecionar a relação dos colegas ou conhecidos que ali escrevem. E se preocupam mais no furo que outro órgão deu, do que em realizar um trabalho de informação sobre o que realmente faz a diferença na vida do cidadão. Isso sem falar no descambo que vem sendo a cobertura das intimidades dos famosos, mas é tema demais para uma única página.

Mas a batalha a que estamos nos referindo, envolvendo principalmente a maior revista semanal brasileira, Veja, e a mais pequena, CartaCapital, num embate que faz lembrar Davi e Golias, tem por trás interesses diversos, de partidos e grupos de mídia e poder. E a realidade preocupante do que ocorreu na Venezuela e do que vem se desenrolando na Argentina aponta para a possibilidade de tempos ainda mais complicados.

Diante disso tudo, fiquei pasmo com o texto “De volta ao passado”, assinado por Mino Carta em sua revista na edição deste 6 de junho (como de costume, a revista circulou no sábado, dia 2). “Nunca imaginei que algum dia escreveria este texto”, diz Mino logo no que em linguagem jornalística se chama de “olho de abertura”. E ele está coberto de razão. Após a longa folha corrida de tantos anos de atuação, é meio constrangedor ter de se defender de ataques como os que vêm sendo veiculados nos blogs de Reinaldo Azevedo e de Fábio Pannunzio.

Como professor de História da Comunicação insisto com os alunos sobre o problema da análise anacrônica, que é tirar um fato ou relato de seu contexto histórico. Exemplifico com um dos casos mais notáveis de anacronismo na área do jornalismo. É comum ler que o brasileiro Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774-1823) foi o criador do primeiro jornal nacional, o Correio Braziliense (1808-1822). E por ser editado em Londres, sem a censura oficial, exerceu um papel crítico contra o colonizador português.

O que há de errado nesse texto, repetido por quase todos e em todos os manuais?

Comecemos pelo designação gentílica de brasileiro atribuída a Hipólito da Costa. Ele nasceu em Colônia do Sacramento na então província da Cisplatina, anexada ao Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves. Seria tão errado dizer que Hipólito era uruguaio como chamá-lo de brasileiro em 1774. Ele era um cidadão português nascido no território sempre em disputa entre Brasil e Argentina, que só se independizou em 1828 por ser dos interesses ingleses a pulverização das regiões colonizadas pelos ibéricos. A rigor, só há cidadão brasileiro após 1822. Hipólito, portanto, era cidadão português.

Também é anacrônico chamar o Correio Braziliense de jornal. As designações jornal, revista, e correlatos só fazem sentido na segunda metade do século XIX, quando o telégrafo e o telefone possibilitaram o informativo noticioso diário, em contraposição com a revista semanal ou mensal de fundo. As gazetas do início daquele século costumavam ter apenas quatro páginas e apareciam duas ou três vezes por semana. O Correio tinha de 80 a 120 páginas e era mensal, com artigos de fundo e análises doutrinárias. O próprio subtítulo, Armazém Literário, remete a revista, como as designações Bazar ou Magazine. No Dicionário Histórico de Portugal, se diz que “Em 1821 e 1822 foi o Correio Braziliense o órgão das associações brasileiras de independência e prestou grandes serviços à causa do Brasil”. Mas o titular da cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras consta desse dicionário português justamente por ser cidadão daquele país.

Parece um longo desvio mas não é. Ao analisar as coberturas e as reportagens que Veja publicou nos anos 60 com os olhos de hoje, os meninos Azevedo e Pannunzio estão incorrendo em muitas leituras anacrônicas. Claro que eles não são dois garotos, como os alunos que hoje têm dificuldade em entender que Collor não sofreu o impeachment, pois renunciou às vésperas da finalização do ritual conduzido pelo STF. Teve, sim, seus direitos cassados. Ou que a expressão “ditadura militar” ou “golpe militar” é de extração relativamente recente. Durante anos os livros de história e as reportagens da imprensa falavam em governo militar ou movimento revolucionário, ou revolução de 31 de março. Reinaldo Azevedo e Fabio Pannunzio tinham menos de 10 anos quando foram publicadas as reportagens agora analisadas por eles (“Como a equipe de Mino Carta na Veja comemorou o 6º aniversário do golpe de 64”). Criticar o ontem com os olhos de hoje é uma escorregadela no pensamento anacrônico.

Buscar no passado interpretação para as posições assumidas agora por Mino Carta é reduzir seu tamanho e importância em nossa imprensa. Também não cabe estender esse tipo de análise para um grande da imprensa como Elio Gaspari. Espera-se que Gaspari, como Silvio Romero no episódio já citado aqui da provocação de Assis Chateaubriand, não use seu tempo para esquentar a polêmica.

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