Dois pais na mão

A paternidade revelava que afeto não tem cor

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5 de junho de 2012, 8h13

— Qualquer homem decente teria feito a mesma coisa, dona juíza. Imagina se eu ia deixar o moleque morrer sem atendimento porque não tinha registro. Não era meu filho, mas era como se fosse.

Antes de completar um ano, Juninho precisou de uma intervenção cirúrgica. Não tinha certidão de nascimento. O pai sumiu e nunca providenciou o documento. Cristiane e Emerson foram vizinhos durante a infância. Na adolescência, cada um tomou seu rumo. Poucas vezes se encontraram.

Em momento de desespero, sem o apoio da família, rejeitada pelo companheiro, reencontrou o amigo que, sem pestanejar foi ao cartório e declarou que era o pai. O único pedido era dar o seu nome à criança, no que foi prontamente atendido pela mãe, naquelas circunstâncias.

O que teria sido apenas um ato de solidariedade transformou-se em exercício real de paternidade. Nascia ali uma geração espontânea de pai, sem sêmen, sem cadeia genética. Apenas uma vontade inexplicável de cuidado e um vínculo fortalecido todos os dias pelo afeto.

Emerson permaneceu ao lado de Cristiane no hospital e, como seu trabalho era no turno da noite, não fazia qualquer sacrifício para cuidar de Juninho enquanto a mãe do menino trabalhava.

Nunca foram namorados. Jamais dividiram o mesmo teto. Uma ponta de amor platônico era percebida pela moça, que cultivava cuidadosamente a dependência, com manifestações de carinho que poderiam ser confundidas no máximo com proximidade fraterna.

Ele nunca foi capaz de abordar a amiga de uma forma mais ousada. Não sentia segurança e temia perder a intimidade que lhe fazia tão bem. Se Emerson tinha qualquer desejo, escondeu até mesmo de si, contrariando aquela verdade conhecida de que não há amizade sem mais nada entre um homem e uma mulher.

Emerson tinha uma vida previsível. A grana nunca sobrava. Trabalhava, namorava, estudava no supletivo. Incorporou Junior à sua rotina e, mesmo depois de casar com Selene, continuou a conviver com o menino que passava todos os fins de semana na sua casa.

Era tão natural o vínculo entre ele e Júnior que ninguém nunca se preocupou em ter uma conversa sobre o assunto. Mas, para Júnior, aos seis anos, ainda não era um incômodo a brincadeira das crianças mais velhas, no colégio, sobre o filho loirinho do pai negão. Crianças também sabem ser cruéis, nessa idade.

Cristiane precisou viajar repentinamente. Disse que ia cuidar de uma avó doente, em outra cidade. Durante oito meses, o menino morou com Emerson. Na volta, as grandes e profundas transformações exigiram do rapaz uma postura menos tolerante e dócil com a mãe da criança.

Cristiane, na verdade, partira para reencontrar Túlio, o pai de seu filho. Ele mudou muito nesses anos. Deixou a vida errada e estava pronto para assumir sua família. Já alugara uma casinha e estavam morando juntos.

A resistência feroz de Emerson obrigou Túlio a ajuizar um processo de reconhecimento da paternidade. Ele queria anular o registro de nascimento e mudar o nome do filho. Não era razoável o filho ser dele e ter o nome de outro homem.

Nem foi preciso um exame de DNA. Juninho e Túlio, branquinhos e loiros, tinham o mesmo cabelo encaracolado e a mesma covinha na bochecha direita.

Na audiência, Cristiane preferia não opinar. Era louca por Túlio. Já perdoara o abandono. Em nome dessa paixão, deixou o filho, sem notícias suas, durante meses.

Por outro lado, era grata a Emerson. Sabia que, se não fosse por ele, Juninho não estaria vivo.

O seu lugar de mãe estava preservado, reinava hegemônica do alto de seu trono, sem qualquer ameaça. A decisão sobre quem era o pai era um problema da Justiça. Para isso existiam os juízes.

Testemunhas foram ouvidas, psicólogos entrevistaram os pais, a mãe e o menino. Parecia uma decisão simples. Não era.

Enquanto os fatos e as versões desfilavam na minha frente, a dúvida foi se aprofundando. Era justo condenar o pai biológico à impossibilidade de assumir seu filho por uma decisão impensada da juventude? Era correto, depois de tanto tempo, negar a Emerson o direito de ser pai, ainda que o registro tenha sido feito de maneira ilegal e falsa?

No auge das minhas reflexões silenciosas, pedi para Juninho entrar na sala. Já havia terminado a audiência.

Correndo, rindo muito, passou ao largo do lugar onde sentava Túlio e, de braços abertos, mergulhou no colo de Emerson, acariciando seu rosto.

O contraste entre as cores das peles e a intensidade do afeto era o quadro eloqüente de que o preconceito é uma invenção despropositada e decadente que não deveria encontrar eco na humanidade.

Juninho, aos seis anos, já era um indivíduo. Sabia seu nome. Reconhecia seu lugar. Tinha referência da figura paterna e identificava Emerson como seu pai.

Uma certidão de nascimento era somente um corte no enredo da existência. Um corte importante, é verdade, um instrumento de inclusão social. Mas…

Decidi preservar a história de Júnior escrita a partir do documento. Muito mais que um vínculo biológico, a paternidade é uma obra de construção cotidiana.

Mesmo insegura para definir a paternidade e as referências daquela criança, como se eu estivesse usurpando um de seus maiores direitos, o direito à identidade, conclui que, se preservada sua segurança, o tempo se encarregaria de contar outras histórias possíveis, que não cabiam numa certidão de nascimento.

Além disso, pareceu, naquele momento, que Túlio estava mais preocupado em consolidar sua relação com Cristiane.

Mantive a paternidade de Emerson. O convívio com o pai biológico viria naturalmente, com as portas abertas para o estabelecimento de mais esse vínculo afetivo.

A vida é muito maior e muito mais imprevisível do que a burocracia que cabe numa certidão.

As múltiplas formas de paternidade e as mais diversas manifestações de amor, se conjugadas, fortalecem uma sociedade mais democrática.

É, no fim, uma equação simples. Quanto mais afeto, maior a possibilidade de justiça.

*Esta crônica faz parte de uma experiência literária da juíza Andréa Pachá que, junto com outros textos, deverá em breve se transformar em livro.
 

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