Justiça Tributária

Anistia para evasão de divisas pode ser boa para todos

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

4 de junho de 2012, 9h04

Spacca
O Projeto de Lei do Senado 354 de 2009, de autoria do senador Delcídio Amaral (PT-MS), propõe que seja concedida anistia para as pessoas físicas que possuam investimentos, bens ou direitos no exterior e que não tenham sido anteriormente declarados ao fisco. Permite ainda a regularização de omissões nos bens das pessoas jurídicas.

Aqueles bens ou valores omitidos podem ter sido desviados para fora do país por várias razões e invariavelmente representam sonegação fiscal, além da possível combinação com outros atos ilícitos. Podem se originar até de desvios de dinheiro público (obras superfaturadas, corrupção, propinas etc) ou ainda outros crimes (sequestros, tráfico de drogas etc).

Não é difícil descobrirmos as razões pelas quais alguém possa ter enviado valores para o exterior. No mais das vezes é o temor pela tributação confiscatória, aliada à impossibilidade de justificar legalmente a origem dos recursos.

Os benefícios desse projeto não são tão amplos quanto os de propostas anteriores. Assim, excluem-se da anistia e não permitem legalização os recursos obtidos com tráfico de drogas, terrorismo, sequestro e contrabando de armas e munições, delitos previstos na Lei 9.613/98.

Não se trata, porém, de anistia pura e simples, pois quem desejar legalizar tais valores pagará o Imposto de Renda com desconto de até 5% e a possibilidade de parcelamento em até dez cotas mensais. Se o volume dos recursos que retornarem for expressivo, haverá um razoável acréscimo de receita.

Também é admitido que as pessoas jurídicas regularizem eventuais omissões nos valores de seus ativos, igualmente com pagamento de tributo com desconto e parcelamento.

Não se trata de uma anistia sem critério. Perdoa-se apenas a necessidade de comprovar a origem. Esse é o projeto mais adiantado em tramite no senado sobre o assunto e o que consolida várias discussões que já foram feitas em documentos similares.

Um dos mais antigos (de 2003) era o do deputado Luciano Castro (PR-RR), extremamente simples e que já no início trazia um equívoco técnico, ao vincular a arrecadação do imposto ao programa assistencial chamado “Fome Zero”. A legislação em vigor não permite essa vinculação, pois impostos destinam-se ao orçamento geral. Somente taxas e contribuições podem ser vinculadas. Faltou ler o Código Tributário Nacional.

Depois, em 2005, foi apresentado projeto do deputado José Mentor, bem mais aperfeiçoado que o anterior, prevendo incidência de tributo, ainda que em alíquota menor. Na sua justificação, menciona-se que haveria uma estimativa de até R$ 150 bilhões remetidos ilegalmente para o exterior.

Esse projeto apresentava uma redação bem melhor, com adequado embasamento e com uma preocupação maior de não proteger crimes que merecem ser punidos com mais rigor. Matéria divulgada à época pela revista Forbes informava que, concedendo uma anistia parecida, a Itália fez com que retornassem cerca de 63 bilhões de euros para sua economia.

A permanência de recursos de brasileiros fora do país dificilmente traz algum benefício para a sociedade, servindo apenas para alavancar especulação financeira. Os titulares de tais valores podem retorná-los para o Brasil, desde que se lhes forneçamos garantias de que não se sujeitarão a procedimentos criminais e que a tributação seja razoável.

Parece-nos que este é o momento adequado para fazer andar o projeto. A economia mundial passa por dificuldades e já há países que fazem incidir tributos mais pesados sobre bens de estrangeiros não residentes. Além de, em alguns casos, só aceitar depósitos sem juros ou mesmo com juros negativos. Ou seja, cobram taxas para manter depósitos.

O retorno desses recursos pode ser muito bom para o nosso país, ante a necessidade de ampliarmos os investimentos privados em nossa economia. Por mais intensivo que seja o investimento público, seu custo é sempre mais elevado, pois depende do resultado da arrecadação, hoje muito acima do que é razoável suportar. Não podemos esquecer que nossa carga tributária já se aproxima de 40% do PIB, com uma distribuição bastante injusta dos benefícios dela decorrentes.

Na justificativa do projeto que tramita hoje no Senado, Delcídio Amaral registra que se pretende: “Atenuar os efeitos do longo período inflacionário que induziu poupadores e investidores a buscarem proteção contra a desvalorização da moeda em outros ativos financeiros ou moedas estrangeiras ou sistemas econômicos”

 

Certamente tem razão a proposta nesse particular. Em 1993 chegamos a cerca de 2.780% de inflação anual! Tal índice já não era caso de economia, mas de psiquiatria. Ou seja: a Casa da Moeda imprimia apenas papel pintado, cujo valor esfacelava-se em curtíssimo prazo. Com as reformas monetárias de 1994 fomos aos poucos readquirindo uma moeda.

Num cenário de moeda quase inexistente, os ativos precisavam de proteção, estivesse ela onde estivesse, ainda que nas barras de ouro, nos imóveis ou mesmo em outros países. Aplicar os benefícios da anistia a pessoas jurídicas, sob as condições previstas no projeto, em nada desnatura ou macula o projeto. A pessoa jurídica é reunião de pessoas físicas, direta ou indiretamente.

Por outro lado, a correção monetária ou reavaliação de bens do ativo a preços de mercado é medida salutar para corrigir os efeitos da inflação. Registre-se, por oportuno, que a legislação em vigor (RIR, artigo 434) já permite a reavaliação com base em laudos técnicos, nos casos de transformação, cisão ou incorporação de empresas.

Vemos ainda na justificativa do projeto que estão sendo reconhecidas as dificuldades e problemas enfrentados pelos contribuintes, que em boa parte justificam as evasões de divisas e recursos que foram feitas.

Outro ponto da explanação anexa ao projeto afirma que:

“O emaranhado da legislação tributária brasileira, de difícil compreensão e entendimento pela complexidade de suas regras e quantidade exagerada de atos normativos (Leis Complementares, Leis Ordinárias, Decretos, Portarias, Instruções, Atos Declaratórios etc.), acarreta a insatisfação do cidadão com o baixo retorno social dos tributos em termos de:

a) pouca contrapartida de investimentos na educação, habitação,

saúde, segurança pública, infra-estrutura etc.;

b) tolerância do Estado com a economia informal que gera enormes

distorções no sistema produtivo, tais como sonegação fiscal, descumprimento de direitos trabalhistas e previdenciários, contrabando, pirataria, concorrência desleal e outras práticas lesivas aos saudáveis princípios da economia de mercado;”

 

Registra ainda o projeto, mesmo que de forma reduzida, as enormes dificuldades do contribuinte face ao seu relacionamento com o fisco. Parece-nos relevante transcrever também essa parte do anexo, ainda que correndo o risco de parecermos prolixos ou enfadonhos.

Vemos lá no projeto:

“Paralelamente, a Fazenda Pública reagiu, desenvolvendo postura

extremamente conservadora, focada exclusivamente na arrecadação, ignorando pleitos mínimos de justiça fiscal, tais como:

 

a) limites à dedução de gastos com instrução e cultura;

 

b) tabelas desatualizadas de retenção de imposto de renda na fonte;

 

c) exigência desnecessária de certidões negativas para atos

importantes da vida empresarial e civil;

 

d) volumoso contencioso fiscal judicial e administrativo provocado pelo

excesso de exação que viola as limitações constitucionais do poder de tributar,levando a conflitos frequentes entre fisco e contribuinte inserto em um regime processual administrativo defasado e arcaico.”

Esses problemas apontados pelo senador já foram aqui apresentados em mais de uma oportunidade, não sendo novidade. Realmente o fisco ignora os pleitos mínimos de justiça fiscal; a dedutibilidade de investimentos com educação e cultura não deveria ter limites. As tabelas de retenção do IRPF deveriam ser automaticamente corrigidas sempre pelos índices inflacionários. E, finalmente, como já escrevemos aqui mesmo, as certidões não servem para nada, pois seu valor é relativo e deveriam ser extintas.

 

O projeto reúne as normas contidas nas propostas anteriores, dando-lhes uma estrutura jurídica mais ampla, o que o torna realmente adequado para as finalidades a que se destina: incentivar o retorno dos investimentos levados para fora do país, sem permitir abusos e aproveitamento por parte de entidades criminosas. Trata-se de um projeto que merece ser aprovado com a maior urgência, até porque há normas acessórias que deverão ser baixadas pela administração e isso leva algum tempo.

Não podemos deixar passar essa oportunidade e nem podem nossos legisladores ignorar matérias tão relevantes, enquanto dão prioridade para coisas sem importância como, por meio da Lei 2.762/2003, criar o Dia da Saci Pererê, que se comemora em 31 de outubro!

Finalmente, não sejamos hipócritas e não venhamos com aquele discurso que, invocando princípios éticos de mão única, pretende alimentar o sonho impossível de punir com rigor os sonegadores, como se todos os nossos sofrimentos fossem causados por eles. Durantes alguns momentos de nossa história recente a sonegação chegou muito próxima de ser justificada com a legítima defesa: o cidadão sonegava porque estava sendo furtado. Converter o projeto em lei certamente é uma boa solução para todos.

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    é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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