Reforma da legislação

Código Comercial vai acompanhar crescimento econômico

Autores

  • Tiago Asfor Rocha Lima

    é ex-juiz titular do TRE-CE. Presidente do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados) seção do Ceará. Doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo).

  • Bruno Leonardo Câmara Carrá

    é juiz federal; doutor em direito civil (USP); professor nos cursos de graduação e pós-graduação em sentido estrito (mestrado acadêmico) da UNI-7; foi pesquisador visitante nas Universidade de Bolonha Paris V e Oxford.

4 de junho de 2012, 11h11

Na aula inaugural de seu curso no ano letivo de 1888, um então jovem professor de Direito Comercial (com pouco mais de trinta anos) sugeriu a seus ouvintes uma indagação que em pouco tempo se tornaria célebre. Suas palavras foram as seguintes: “Uma dúvida insistente domina já faz muito tempo os meus estudos: porque é que o Direito Privado ainda é dividido em dois campos, o Civil e o Comercial?”

O discurso proferido na Universidade Bolonha por Cesare Vivante, um dos maiores expoentes do Direito Mercantil de todos os tempos, logo se espalhou pela Europa e acendeu um debate até hoje não completamente resolvido, o da unificação do Direito Privado.

Apoiado em uma bem trabalhada lógica universalista, Vivante considerava que a abertura dos mercados geraria uma tendência quase que natural no Direito Comercial para se espraiar mundo afora. Isso produziria, como reflexo quase imediato, a necessidade de uniformização das normas jurídicas de cunho obrigacional. Tal uniformização, que já não era propriamente uma novidade em alguns campos específicos do Direito Comercial, poderia ser estendida a todo o Direito Civil, já que era cada vez mais presente que “o comércio e seus costumes penetravam com vivacidade todos os aspectos da vida civil”.

A separação entre o Direito Comercial e o Direito Civil representaria um obstáculo à formação desse Direito cosmopolita, além de constituir um retrocesso sob o aspecto da equidade. Não era inexato que, em muitas situações, não havia mesmo motivo algum para justificar um tratamento diferenciado entre os civis em geral e os comerciantes.

É certo que já no ano de 1911 a Suíça editaria seu famoso Código de Obrigações, até hoje em vigor. Seu objetivo foi (e continua sendo) o de tratar de forma unitária todas as relações obrigacionais (inclusive as laborais e, agora, as de consumo). A norma em referência (Lei Federal RS 220, de 30 de Março de 1911, com suas posteriores reformas) é auto-intitulada de uma lei de complemento ao Código Civil. Pouco mais de cinquenta anos depois disso, o Código Civil de 1942 finalmente realizaria a pretendida uniformização postulada por Vivante em terras italiotas.

Em muitos outros países, contudo, prevaleceu a distinção entre o Direito Civil e o Comercial. Aliás, tirante a Inglaterra (e isso por questões mais culturais que propriamente jurídicas) pode-se dizer que nos países ocidentais onde o comércio possui maior pujança continua a vigorar uma autonomia legislativa entre o Direito Civil e o Comercial. Possuem, assim, Códigos Comerciais próprios em relação a seus estatutos civis os Estados Unidos, a França, a Alemanha e a Holanda.

Nos Estados Unidos, mesmo ligado à tradição do common law, o setor empresarial tomou a iniciativa de propor a formação de um Código Comercial, promulgado em 1952 sob o título de Uniform Commercial Code, para regulamentar (de maneira uniforme) as operações consideradas de natureza mercantil, deixando que os Estados membros normatizem as relações de Direito Civil.

Os Códigos de Comércio francês e alemão (HGB) foram promulgados ainda no Século XIX e estão em vigor até hoje. Em ambos os casos, obviamente, foram objeto de constantes atualizações ao longo dos anos.

No caso brasileiro, como se sabe, vigorou a distinção entre o Direito Civil e o Comercial até o advento do Código Civil de 2002. A nova lei civil, ideologicamente influenciada pelo Direito Italiano, patrocinou a uniformização do Direito obrigacional, passando, inclusive, a dispor sobre boa parte das antigas sociedades comerciais, hoje denominadas de empresárias.

Nosso Código Comercial, promulgado quando o Brasil ainda era um Império (pela Lei 556, de 25 de Junho de 1850), em teoria, ainda continua vigorando, embora somente na parte relativa ao direito marítimo (segunda parte). Na prática, não existe mais, pois a parte que ainda vige possui âmbito de validade extremamente restrito. Ao longo de todo Século XX, ele foi alvo de sistemáticas supressões que lhe retiraram a amplitude e prestígio originários, as quais culminaram com a revogação de sua parte geral (artigos 1o a 456) pelo Código Civil de 2002.

Mas se tanto se discutiu, se tanto se debateu desde o famoso Projeto de 1975, capitaneado por Miguel Reale, para que se fizesse uma opção em prol da uniformização, qual é o sentido de ressuscitar a discussão, propugnando, agora, o retorno à antiga dicotomia legislativa entre o Direito Comercial e o Direito Civil?

A resposta, ao modo de Ockham, não precisa ser complexa. E não é, podendo ser resumida, na verdade, em duas razões muito fáceis de entender e demonstrar: a primeira consiste no fato de que, efetivamente, nunca se vivenciou uma real unificação do Direito Privado; a segunda é que, ao contrário do que proposto por Vivante, a realidade do Direito Comercial (Empresarial, para utilizar a expressão mais conforme nosso Direito Positivo vigente e mais moderno) demonstra que ele continua sendo setor peculiar e que, por isso mesmo, continua necessitando de regras e princípios próprios.

A uniformidade no Direito Privado brasileiro, com efeito, fica no campo da ficção jurídica. Se levarmos em consideração que, ao momento da entrada em vigor do Código Civil, outros sistemas obrigacionais já coexistiam e continuaram a coexistir, demandando dos doutrinadores e tribunais a criação de instrumentos interpretativos para diferenciá-los, até no âmbito do Direito obrigacional fica difícil afirmar que existe um só Direito Privado.

É esse próprio Código Civil uniformizador, para começar, que permitiu que temas de relevância fundamental continuassem sendo tratados por meio de legislação específica. Assim é o caso das Sociedades Anônimas (artigo 1089) e dos títulos de crédito já existentes (artigo 903).

Contudo, talvez o exemplo mais sensível dessa pluralidade de sistemas, por sinal, ironicamente teorizada por outro destacado jurista peninsular (Natalino Irti), é a dualidade entre os sistemas normativos existentes entre o Código Civil e o de Defesa do Consumidor. E hoje, sequer se cogita de incorporar a legislação consumerista ao Código Civil, pena de se soterrar uma das normas mais avançadas de nosso ordenamento, aplaudida e reverenciada tanto aqui como alhures.

Não seria, pois, interessante que tudo isso fosse verdadeiramente unificado, porém dentro de uma lógica distinta: a de voltar a tratar pormenor e diferenciadamente as relações de natureza comercial, pois entre o discurso de Vivante e o Século XXI muita coisa aconteceu?

É que, ao longo dos séculos XIX e XX, as diferenças entre os comerciantes e os particulares, no geral, foram encurtadas. Contudo, a evolução tecnológica e os avanços nas relações econômicas mudaram a própria feição do Direito Comercial.

Um novo Direito Comercial precisa ser repensado, certamente não mais em bases medievais como fora no passado. Necessário abrir os olhos à nova realidade que nos cerca. O avanço galopante da economia brasileira nos últimos anos (já somos o 6º PIB do mundo, ultrapassando o Reino Unido), aliada à posição estratégica que o País tem alcançado nas relações globais, não podem ser desprezados. A tudo isso se soma a complexa e indiscutível especialidade das operações comerciais, em suas mais diversas propensões, as quais impõem a necessidade de um tratamento igualmente especializado.

Deflui-se, portanto, inegavelmente oportuna e adequada a ideia de uma nova codificação comercial no Brasil (Projeto de Lei 1.572/2011), na qual venham a ser compilados, de forma harmônica, temas de fundamental interesse para o empresariado nacional e estrangeiro interessado no mercado brasileiro e ainda particulares em geral, na medida em que um sistema jurídico mais previsível e seguro, especialmente no âmbito das relações empresariais, refletirá positivamente na economia e reduzirá parte dos custos repassados aos consumidores.

Confortante ainda saber que vozes autorizadas do meio jurídico têm ratificado e abraçado essa ideia. Nessa linha se pronunciaram o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em recente palestra na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, instituída para discutir o Projeto de Lei do Novo Código Comercial, e os Ministros do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio Noronha, também como palestrante na referida Comissão, e Luis Felipe Salomão, na qualidade de Presidente da comissão de magistrados instituída pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para apresentar sugestões ao PL 1.572/11.

Imperioso registrar ser esta a oportunidade de o Parlamento regulamentar não apenas temas novos e próprios da atividade empresarial (v.g., os contratos eletrônicos e de cartão de crédito) como também de consolidar e reconhecer a importância de verdadeiros monumentos legislativos, como é o caso da Lei 6.404/76 (Lei das S.A.). Inclusive, essa tem sido a tônica dos trabalhos da Comissão de Juristas, coordenada pelo professor Fábio Ulhôa Coelho e instituída para auxiliar a Comissão Especial de Deputados responsável pela análise do PL do Novo Código Comercial. Tanto é que referida Comissão de Juristas, em reunião realizada no dia 30.05.2012, já se manifestou favoravelmente à manutenção tanto da Lei das S.A como da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei 11.101/2005).

Vê-se, assim, que a proposta de elaboração de um novo Código Comercial tem por escopo fomentar uma harmonia legislativa que modernizará e, assim, fornecerá, sob o ponto de vista jurídico, as condições adequadas para o acompanhamento do crescimento econômico que se prognostica para a próxima década. Não é, portanto, um simples retorno ao passado, o que faria evocar a conhecida frase do Príncipe de Salinas (“Tudo deve mudar para que tudo fique como está”). Nesse caso, é justamente o contrário: algo a ser feito para que as coisas passem a fluir em sintonia com um mundo que é, literalmente, cada vez mais cambiante.

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