Embargos Culturais

Machado de Assis e a subjetividade do intérprete

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

3 de junho de 2012, 9h08

— O subjetivo… O subjetivo… Tudo através do subjetivo — costumava dizer e velho professor Morais Pancada. Machado de Assis, Questões de Maridos, in Contos, Belo Horizonte: Itatiaia, 2008, p. 1005.

Questões de Maridos é um conto de Machado de Assis, datado de 15 de julho de 1883. Trata-se de intrigante estória de duas moças, Luísa e Marcelina. Eram sobrinhas de um professor, Morais Pancada, para cuja mulher, a tia, enviavam cartas nas quais descreviam como iam os respectivos casamentos. Segundo Machado de Assis:

Luísa e Marcelina eram os nomes das sobrinhas. O pai delas, irmão do professor, morrera pouco depois da mãe, que as deixou crianças; de maneira que a tia é quem as criou, educou e casou. A primeira casou com dezoito anos, e a segunda com dezenove, mas casaram no mesmo dia. Uma e outra eram bonitas, ambas pobres[1].

O professor e a esposa concordaram com os pretendentes das sobrinhas, e apoiaram os respectivos casamentos. As irmãs, em regozijo, preparam-se para os casamentos. Apaixonadas, percebiam que realizariam no matrimônio as ambições mais importantes da vida, segundo se intui do próprio Machado de Assis.

O professor Morais Pancada, segue o bruxo do Cosme Velho, foi morar em Nova Friburgo. Deixou as sobrinhas na Corte. O contato, a partir de então, se fez mais pela troca de cartas, do que por visitas. O professor e sua esposa perceberam que o tom das cartas revelava que as irmãs viviam de modo muito diferente. Isto é, a percepção do casamento, para cada uma delas, era totalmente diversa da percepção da outra. Segundo Machado de Assis, eis a primeira carta de Luísa:

Titia. Estimo que a senhora tenha passado bem, em companhia do titio, e que dos incômodos vá melhor. Nós vamos bem. Candinho agora anda com muito trabalho, e não pode deixar a corte nem um dia. Logo que ele esteja mais desembaraçado iremos vê-los. Eu continuo feliz; Candinho é um anjo, um anjo do céu. Fomos domingo ao teatro da Fênix, e ri-me muito com a peça. Muito engraçada! Quando descerem, se a peça ainda estiver em cena, hão de vê-la também. Até breve, escreva-me, lembranças a titio, minhas e do Candinho. LUÍSA[2].

Mais tarde, cerca de dez ou doze dias depois, chegou epístola de Marcelina, que reclamava de tudo, ainda que de modo esfíngico:

Titia. Não lhe escrevi há mais tempo, por andar com atrapalhações de casa; e aproveito esta abertazinha para lhe pedir que me mande notícias suas, e de titio. Eu não sei se poderei ir lá; se puder, creia que irei correndo. Não repare nas poucas linhas, estou muito aborrecida. Até breve. MARCELINA.

Na medida em que o professor e a esposa continuavam a receber cartas de Luísa e de Marcelina, uma perspectiva diversa se revelava, para surpresa dos tios, que acreditavam que as sobrinhas muito bem casadas viviam. Segue outra carta de Marcelina, que copio do texto de Machado de Assis:

Titia. Recebi a sua carta, e estimo que não tenha alteração na saúde nem o titio. Nós vamos bem e por aqui não há novidade. Pergunta-me por que é que uma moça, casada de fresco, pode ter aborrecimentos? Quem lhe disse que eu tinha aborrecimentos? Escrevi que estava aborrecida, é verdade; mas então a gente não pode um momento ou outro deixar de estar alegre? É verdade que esses momentos meus são compridos, muito compridos. Agora mesmo, se lhe dissesse o que se passa em mim, ficaria admirada. Mas enfim Deus é grande… MARCELINA[3].

Marcelina se mostrava muito angustiada, infeliz no casamento, desapontada com o marido:

Titia. Gastei todo o dia a pensar na sua carta, sem saber se obedecesse ou não; mas, enfim, resolvi obedecer, não só porque a senhora é boa e gosta de mim, como porque preciso de desabafar. É verdade, titia, padeço muito, muito; não imagina. Meu marido é um friarrão, não me ama, parece até que lhe causo aborrecimento. Nos primeiros oito dias ainda as coisas foram bem: era a novidade do casamento. Mas logo depois comecei a sentir que ele não correspondia ao meu sonho de marido. Não era um homem terno, dedicado, firme, vivendo de mim e para mim. Ao contrário, parece outro, inteiramente outro, caprichoso, intolerante, gelado, pirracento, e não ficarei admirada se me disserem que ele ama a outra. Tudo é possível, por minha desgraça… É isto que queria ouvir? Pois aí tem. Digo-lhe em segredo; não conte a ninguém, e creia na sua desgraçada sobrinha do coração. MARCELINA[4].

Por outro lado, garbosa e feliz na Corte, Luísa insistia em como tudo ia tão bem, como era tão feliz, sempre em júbilo:

Titia. Há muitos dias que ando com vontade de escrever-lhe; mas ora uma coisa, ora outra, e não tenho podido. Hoje há de ser sem falta, embora a carta saia pequena. Já lhe disse que continuo a ter uma vida muito feliz? Não imagina; muito feliz. Candinho até me chama doida quando vê a minha alegria; mas eu respondo que ele pode dizer o que quiser, e continuo a ser feliz, contanto que ele o seja também, e pode crer que ambos o somos. Ah! titia! em boa hora nos casamos! E Deus pague a titia e ao titio que aprovaram tudo. Quando descem? Eu, pelo verão, quero ver se vou lá visitá-los. Escreva-me. LUÍSA[5].

Interessante, intrigante, espantava-se o professor, a propósito do fato de que um destino tão diferente tocara a duas irmãs, cujas trajetórias se prometiam convergentes e idênticas. Sigo com Machado de Assis:
E o professor, empunhando as cartas lidas, continuou a comentá-las, dizendo que a mulher não deixou de advertir na diferença dos destinos. Casadas ao mesmo tempo, por escolha própria, não acharam a mesma estrela, e ao passo que uma estava tão feliz, a outra parecia tão desgraçada[6].

Ao que parece, a felicidade tocava uma das irmãs, do mesmo como a desgraça era recorrente na vida da outra. Tamanha divergência de caminhos exigia uma explicação. Ainda que os maridos pudessem ser diferentes e efetivamente se intui que poderiam sê-lo o professor apostou em explicação convincente a partir da personalidade das sobrinhas casadouras.

Para Morais Pancada, o enigma se resolvia na subjetividade e nas idiossincrasias das sobrinhas. Machado de Assis fecha o conto com a explicação que segue. Segundo o professor:

Está explicado, ou adivinhado, pelo menos. Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza… O subjetivo… o subjetivo…[7]

Este interessante conto permite a retomada de alguma obviedade, por vezes esquecida, e que nos mostra que situações idênticas contam com instâncias interpretativas distintas. Para isso, não há necessidade de apelo a fórmulas gadamerianas enunciadoras de pré-compreensões não textuais, ou de matizes estruturalistas ou foucaultianas indicativos da absorção do eu interpretativo pela coisa interpretada.

Simples, direto, cético e irreverente, Machado de Assis persiste como o mestre que nos provoca ao tornar tão estranhas ideias que reputamos tão familiares.


[1] Machado de Assis, Joaquim Maria, Contos, Belo Horizonte: Itatiaia, 2008, p. 1005.
[2] Machado de Assis, Joaquim Maria, cit., loc. cit.
[3] Machado de Assis, Joaquim Maria, cit., p. 1006.
[4] Machado de Assis, Joaquim Maria, cit., p. 1007.
[5] Machado de Assis, Joaquim Maria, cit., loc. cit.
6] Machado de Assis, Joaquim Maria, cit., p. 1008.
[7] Machado de Assis, Joaquim Maria, cit., p. 1009.

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