Paternalismo federativo

Súmula contra guerra fiscal pode cristalizar desigualdades

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31 de julho de 2012, 16h28

O Supremo Tribunal Federal discute a Proposta de Súmula Vinculante 69, cuja redação considera inconstitucional a concessão, sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, de qualquer benefício fiscal em matéria de ICMS, como a isenção, o incentivo, a redução de alíquota ou de base de cálculo, o crédito presumido e a dispensa de pagamento. Caso a proposta seja aprovada fica cristalizada e universalizada uma jurisprudência que não deve ser aplicada a todos os casos de renúncia de receita por partes dos estados.

Sendo a exigência de convênio para a concessão de isenções de ICMS, prevista no artigo 155, parágrafo 2º, XII, g, Constituição Federal, uma salvaguarda do regime federativo no plano horizontal, impedindo que os estados violem o princípio da conduta amistosa federativa, causando com isso lesão aos direitos de outros estados, não há como deixar de reconhecer que o dispositivo diminui a autonomia local e, indiretamente, a dimensão vertical do princípio federativo.

Deste modo, à luz do princípio da proporcionalidade, a restrição à autonomia local só será válida na medida em que for necessária à preservação da própria Federação, a fim de evitar a guerra fiscal. De logo, cabe, por isso, afastar a exigência do convênio em relação a benefícios fiscais que não estejam relacionados à guerra fiscal, por não se traduzirem em incentivos setoriais, mas se basearem na baixa capacidade contributiva ou na extrafiscalidade dissociada do fomento ou da atração de empreendimentos econômicos.

Nesse sentido, o STF, na ADI 3.421/PR relatada pelo ministro Marco Aurélio, considerou constitucional a Lei 14.586/04 do estado do Parará que concedeu isenção de ICMS sobre o serviço público de água, luz, telefone e gás sobre os imóveis destinados a templo de qualquer culto. No caso em questão, questionava-se a legitimidade da norma em face da ausência de convênio, tendo o tribunal, em decisão unânime, dispensado a exigência do convênio sob o entendimento de que na situação concreta não se estava diante do estímulo à atração do contribuinte de direito ao desempenho de determinada atividade econômica, mas de benefício dirigido ao contribuinte de fato, já contemplado pela imunidade dos templos nas situações em que pratica o fato gerador.

Nos parece que o aspecto mais importante da referida decisão reside no reconhecimento de que a exigência do convênio somente é necessária quando o benefício fiscal insira-se no contexto de competição da guerra fiscal.

Desenvolvendo um pouco mais essa ideia, baseada na preservação da autonomia local sempre que a sua restrição não seja indispensável à preservação do federalismo fiscal no plano horizontal, conclui-se que os convênios não são necessários em relação aos benefícios fiscais vinculados à exploração de atividade que, pelas suas características, não poderia ser efetivada em outro estado, como a extração mineral, por exemplo. É que sendo a atividade circunscrita a determinado limite espacial, os benefícios concedidos por outros estados não teriam o condão de afastar o empreendedor do local onde a operação precisa ser desenvolvida, não havendo que se falar em guerra fiscal que enseje a limitação da autonomia local.

Seguindo o mesmo raciocínio, fica dispensada a exigência do convênio em benefícios fiscais destinados ao consumidor final em razão da sua hipossuficiência econômica, como na fixação de alíquotas reduzidas aos produtos da cesta básica, bem como em isenções conferidas em razão da especial tutela a determinados segmentos, como aos deficientes físicos, incentivos à preservação do patrimônio histórico, cultural, artístico e paisagístico, à educação, à cultura, à ciência, à preservação do meio ambiente, ao combate à pobreza, ao desenvolvimento da habitação popular e a outros interesses materialmente caros aos valores constitucionais, cuja tutela não é reservada à União, mas atribuída também aos estados, de acordo com o artigo 23, CF.

Por outro lado, mesmo no que se refere ao incentivo à atração de investimentos para o território dos estados, seara em que é inafastável a interpretação que vincula a concessão de benefícios ao procedimento previsto na LC 24/75, é preciso reconhecer a obsolescência da atual disciplina legal, cunhada no auge da centralização do autoritarismo militar, e por isso mesmo produto de um federalismo orgânico em que a figura da União predominava sobre a autonomia estadual.

É que, no plano vertical, o princípio federativo exige que o ente central respeite a autonomia local, a fim de que as entidades periféricas possam eleger as suas prioridades com base no interesse regional ou local e na busca do desenvolvimento econômico e na superação das desigualdades regionais a partir de seus próprios esforços, e não apenas da intervenção paternalista da União.

De fato, exigir, como faz a lei atual, a unanimidade entre os estados para a aprovação de qualquer benefício fiscal, equivale a quase sempre inviabilizar todas as propostas desoneradoras, abrindo espaço para medidas unilaterais abusivas por parte dos governos estaduais. É preciso adotar um critério legal que, ao mesmo tempo em que coíba o exercício do abuso de direito caracterizado como guerra fiscal, seja capaz de permitir aos estados a possibilidade de estabelecerem sua política tributária em seu principal imposto incentivando a atração de investimentos que, sem os benefícios, tenderiam a se concentrar nas regiões mais ricas, por serem mais próximas do mercado consumidor, da mão-de-obra qualificada e dos canais de acesso ao comércio internacional.

Por isso, é inadequada a adoção da súmula neste momento, por cristalizar as desigualdades entre as regiões do país, sendo primordial a alteração da lei que regula a matéria, a fim de preservar a autonomia tributária e administrativa dos estados.

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