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Nem tudo foi apenas falta de brilho na Rio+20

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25 de julho de 2012, 8h00

Spacca
Ao contrário das previsões de Monteiro Lobato, a obra do grande escritor Júlio César de Mello e Souza não ficou imune às vassouradas do tempo. Quando era um jovem estudante li diversos livros desse autor, que os assinava com o pseudônimo (ou heterônimo, como se diz hoje) de Malba Tahan. Embora sua obra mais conhecida, traduzida e recomendada fosse O Homem Que Calculava, gostava mais de sua série de lendas, com o Maktub à frente. Seu livro mais famoso apresentava um calculista persa propondo problemas e curiosidades matemáticas, num ritmo narrativo que lembrava as histórias de Sheherazade nas Mil e Uma Noites. Malba Tahan foi precursor de uma didática não impositiva, de aprender com um toque de diversão e imaginação.

Por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, lembrei do hoje esquecido escritor carioca (nasceu na então capital federal em 1895 e faleceu no Recife em 1974, e foi quando descobri que Malba Tahan era brasileiro). Em um de seus livros, As Lendas do Bom Rabi, esse professor de matemática descrevia a cena em que diversas pessoas rodeavam um cachorro morto, já em estado de putrefação. Todos comentavam a falta de brilho dos pelos, o aspecto horrível, o mau cheiro que exalava. E então o bom Rabi interrompe e comenta: “que lindos dentes ele tinha”.

Foi mais ou menos isso o que ocorreu com a cobertura realizada pela mídia sobre os nove dias (13 a 22 de junho) das discussões ocorridas no Rio e que deram origem a um texto de 49 páginas, “O Futuro Que Queremos”. Com poucas exceções, o tom da cobertura já previa, antes de iniciar, que a conferência seria um fracasso. Essa era a tese a ser demonstrada. E não foi preciso muito empenho para isso. Por outro lado, como de costume, o encontro rendeu boas fofocas, como é do gosto. A chegada da secretária de Estado americana Hillary Clinton, por exemplo, com a controvérsia sobre sua comitiva, dividiu as atenções com a decoração de sua suíte. Segundo a Polícia Federal, a comitiva da ex-primeira dama era composta por 200 pessoas, mas o governo americano contrapunha que o grupo era bem menor, com apenas 69 delegados. Já a suíte presidencial do hotel que a hospedou pela bagatela diária de R$ 6 mil fora decorada com flores do campo, as preferidas de Hillary, segundo dava conta o site do jornal O Globo. Que também informou sobre o cão farejador pastor-alemão que procurou vestígios de explosivos no percurso entre a base aérea do Galeão e o hotel.

Mas voltando ao lado sério do tema, a ciência prova e há uma consciência geral de que nosso planeta chegou ao limite da sustentação ecológica, ultrapassando em alguns casos essa barreira. Sem ser alarmistas, há um consenso de que se nada for feito já, estaremos no que em aviação se chama de situação “no comebacks”, o ponto além do qual não há retorno (limite para o avião voltar a sua base). Caminhamos perigosamente para a ruptura de ecossistemas e ciclos ecológicos essenciais para manter a vida humana. É necessária mudança radical no nosso estilo de desenvolvimento, em busca de uma economia de preservação, com uso mais eficiente de recursos naturais, menos consumo de energia e emissão de carbono. Diante dessa urgência, a posição dos governos na conferência do Rio deixou a desejar, é certo.

Mas julgar aqueles nove dias apenas pelas páginas do texto produzido e assinado é pouco. A Rio+20 foi um encontro com mais de 500 eventos oficiais e talvez um número até maior de conferências e discussões paralelas, não apenas no espaço do Centro de Convenções Riocentro, mas em diversos outros pontos do Rio. Falar em desenvolvimento sustentável foi a tônica das discussões e das palestras e hoje está na agenda das conversas de quase todos, desde a controvertida extinção das sacolas de plástico dos supermercados ao cuidado com a água desperdiçada. A Rio+20 foi a maior reunião já realizada no âmbito da ONU, com 45.381 participantes, delegações de 188 países membros e três observadores, mais de uma centena de chefes de Estado e de governo, 12 mil delegados, 9.856 grupos e organizações não governamentais, além de 4.075 colegas dos meios de comunicação. Na segurança, atuaram 4.363 pessoas, segundo o site da ONU.

O texto aprovado pelos países presentes ao encontro não é o bastante para enfrentar a séria crise de sustentabilidade ecológica, pobreza e desigualdade social que o mundo tem pela frente, mas merece ser analisado cuidadosamente. “Trata-se de um grande esforço, liderado pela diplomacia brasileira, de renovar os compromissos dos países em caminhar rumo à sustentabilidade. Editorialmente, é uma revisão das ações em andamento no âmbito da ONU, com referências a dezenas de tratados, acordos e declarações adotados nas últimas décadas. Os princípios defendidos e a abrangência do texto são bons”, observa o engenheiro florestal Virgílio Viana, ex-secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas e atual superintendente geral da Fundação Amazonas Sustentável (confira seu sensato comentário no site Planetasustentavel, da Abril.

Ainda segundo Viana, faltou “ambição” ao encontro: metas mais claras e compromissos específicos. Mas se isso tivesse constado no texto final, certamente não haveria o documento, como se chegou a prognosticar quando a reunião chegava aos finalmente. Com uma postura realista, a diplomacia brasileira escolheu encaminhar um texto que embora não determine imposições, sanções ou obrigações de repasses financeiros, nem fixe prazos concretos para a adoção de medidas em favor do meio ambiente, atende a um dos objetivos centrais da Rio+20: renovar o compromisso dos países em alinhar-se com a sustentabilidade.

O chefe da delegação do Brasil na Rio+20, embaixador André Corrêa do Lago, reiterou que o saldo da conferência foi positivo: “O principal ganho foi fazer com que o desenvolvimento sustentável se transforme em paradigma em todos seus aspectos  social, ambiental e econômico”. As discussões mostraram que as divergências econômicas e o momento da crise por que passa o mundo afetaram os debates ambientais. Os países desenvolvidos e em desenvolvimento entraram em conflitos, principalmente nos temas que envolvem recursos e suporte. A União Africana (formada por 54 países) foi o bloco que mais reagiu às reticências e à falta de engajamento dos países desenvolvidos. “Não há um grupo de negociadores que tenha admitido ganhar em tudo. O Brasil conduziu muito bem os temas divergentes. Depois, chegamos a um acordo e agora temos um caminho. Mas há ainda muito a ser percorrido”, comentou o ministro do Desenvolvimento, Economia Florestal e Meio Ambiente do Congo, Henri Djombo.

A verdade é que houve nas últimas três ou quatro décadas uma mudança radical na maneira como vemos o mundo. Países como a China alteraram seu enfoque sobre o uso de recursos, buscando reduzir os efeitos de seu desenvolvimento na deterioração ambiental. Hoje ninguém é visto lavando o carro e desperdiçando água como no passado. Um bom exemplo dessa mudança é rever o filme Crin Blanc (Crina Branca, traduzido por O Cavalo Branco), do roteirista, diretor e produtor de cinema francês Albert Lamorisse. Um dos grandes nomes do cinema infantil, ele ficou conhecido pelo poético filme O Balão Vermelho, de 1956, ganhador da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de Melhor Roteiro Original em 1957 (com apenas 34 minutos, pode ser visto facilmente no Youtube). Três anos antes, em 1953 Lamorisse havia dirigido o também belíssimo O Cavalo Branco. Rever esse filme causa hoje certo espanto. Na tentativa de prender o cavalo Crina Branca, um fazendeiro e seus capangas prendem fogo à vegetação rasteira sem nenhuma hesitação; há perseguição de animais silvestres; uma fascinante e brutal briga entre dois cavalos selvagens, se mordendo até sangrar; pesca com rede e alçapão, são algumas das cenas mostradas como algo natural, o que seria inconcebível hoje, quando os produtores de cinema deixam claro nos créditos das películas que os animais não sofreram maus tratos, ou empresas se desculpam pelo uso de animais em shows. Até a tradicional tourada espanhola está em discussão e tende a desaparecer do cenário ibérico. Resultado de outra maneira de ver o mundo.

Ou seja, voltando ao cachorro do bom Rabi, nem tudo foi apenas falta de brilho e mau cheiro na Rio+20. Se no âmbito governamental será necessário que países, estados e comunidades locais adotem políticas de incentivo ao desenvolvimento sustentável, descartando a velha economia poluidora e adotando medidas concretas, como controle de emissão veicular, coleta seletiva do lixo reciclável, caberá a todos ações práticas. Como lembra Virgílio Viana, mais de 75% da economia global é privada. Portanto, compete também a esses agentes privados fazer acontecer as mudanças necessárias.

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