Consultor Tributário

Poder Legislativo deve respeito ao Poder Judiciário

Autor

  • Gustavo Brigagão

    é sócio fundador do escritório Brigagão Duque Estrada – Advogados presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) presidente honorário da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) vice-presidente do Fórum Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro former member of the Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA) membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação (Caeft) da Associação Comercial de São Paulo membro do Conselho de Administração da Câmara Britânica (Britcham) diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE) e professor na pós-graduação de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

25 de julho de 2012, 8h00

Desde 1995, uma série de projetos foram postos em discussão com o objetivo de promover a cobiçada reforma tributária, de que o nosso país tanto necessita.

Todos esses projetos tiveram o mesmo destino: ou foram arquivados, após longas e infrutíferas discussões, ou foram fatiados para atender a interesses absolutamente casuísticos dos entes políticos tributantes, consistentes em alterar a Constituição Federal ou leis complementares com o único intuito de “reformar” jurisprudência pacífica dos nossos tribunais favorável aos contribuintes.

É o exemplo da taxa de iluminação pública, que, julgada inconstitucional pelo STF, por ser relativa a serviço público indivisível, foi, por pressão dos municípios, “constitucionalizada” sob as estranhas vestes de “contribuição de iluminação pública”; o da progressividade do IPTU decorrente da capacidade econômica do contribuinte, em que, apesar de o STF tê-la entendido inadmissível, por tratar-se de imposto de caráter real, o Congresso Nacional promulgou a EC 29, de 13.09.2000, pela qual determinou-se que esse tributo poderia “ser progressivo em razão do valor do imóvel”; e o da “norma interpretativa constante da Lei Complementar 118, de 09.02.2005, que procurou usurpar a competência do Judiciário (no caso, o STJ), dando interpretação diversa da que predominava na sua jurisprudência no que concerne ao prazo de decadência para a repetição de indébitos tributários.

E essa prática vem de longa data.

Por ser tributo não-cumulativo, reputava-se inerente ao antigo ICM o abatimento de todos os valores cobrados em operações anteriores atinentes à circulação da mercadoria.

Discutiu-se, então, se, nas operações anteriores amparadas por isenção, teria o contribuinte direito ao crédito correspondente ao valor que seria pago não fosse o benefício fiscal. Argumentava-se que a isenção importava em renúncia fiscal por parte do Estado e que, se o direito ao crédito não fosse reconhecido, haveria mero diferimento e o Fisco acabaria por receber o valor ao qual renunciara. Argumentava-se, também, que, pelo sistema da não-cumulatividade, o contribuinte teria direito ao crédito sempre que houvesse incidência do (antigo) ICM em operações anteriores. Como, no Direito brasileiro, a isenção configura modalidade de exclusão do crédito tributário, que pressupõe a referida incidência, ela equivaleria a pagamento, dando fundamento, consequentemente, ao direito do contribuinte de se creditar do respectivo valor.

Apesar de, à época, esse entendimento ter prevalecido de forma pacífica no STF (RE 87.610/SP, Relator: min. Bilac Pinto; Em 18/1 1/1977; órgão Julgador. Primeira Turma, Publicação: DJ 17.02-1978 pág. 587; e RE 94177/SP, Relator: Min. Firmino Paz, Em 07/08/1981, órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação: DJ 28.08.1981 pág. 8766, entre outras), a EC 23/83 alterou a redação do art. 23, II, da CF/69, que passou a ser a seguinte:
“Art. 23 — … II — operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais e comerciantes, imposto que não será cumulativo e do qual se abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado. A isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito de imposto para abatimento daquele incidente nas operações seguintes” (o grifo não consta do original)

Com o advento da Constituição de 1988, essa vedação se tornou ainda maior com a determinação constante do artigo 155, parágrafo 2°, II, abaixo transcrito:
“Ar t. 155,
§2º
II — a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes,
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;”

Ou seja, criou-se vedação constitucional, antes inexistente, que tornou absolutamente inaplicável a jurisprudência então pacífica do STF.

A EC 33/01 é também exemplo de alterações de regras constitucionais motivadas exclusivamente pelo anseio dos estados de “reformar” jurisprudência pacífica do STF sobre determinado tema.

Na Constituição anterior, já se fazia expressa referência à possibilidade de o então ICM incidir sobre as entradas de mercadorias importadas do exterior, ainda que se tratasse de bens destinados a consumo ou ativo fixo do estabelecimento.

Na CF/88, essa incidência foi originariamente prevista da seguinte forma:
“Art. 155
§2………………………………………………………………
IX ………………………………………………………………
a) sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço.”

Com base nesse dispositivo, a 1ª Turma do STF decidiu no sentido de que o ICMS não incidiria sobre importações realizadas por pessoas físicas que não praticassem atos que envolvessem circulação de mercadorias (RE 203.075/DF; Relator: min. ILMAR GALVÃO; Rei. Acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA; Julgamento: 05/08/1998; Órgão Julgador: Primeira Turma; Publicação: DJ 29.10.1999, p. 18).

Em 11 de dezembro de 2001, a EC 33/01 alterou o artigo 155 da CF/88, que passou a prever expressamente a possibilidade da incidência do imposto na entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não fosse contribuinte habitual do imposto (Art. 155, § 2°, IX, a), mais uma vez, com o claro objetivo de tornar inócuo o precedente do STF acima referido.

Houve também “reformas” feitas com absoluta falta de técnica legislativa, que deixaram o contribuinte em estado de perplexidade.

Foi o que ocorreu quando a EC 42/03, no que concerne às regras de incidência e creditamento do ICMS nas exportações, alterou a redação do artigo 155, parágrafo 3, da CF/88, para ampliar o âmbito da não-incidência do imposto nas vendas ao exterior de bens e serviços e colocar em nível constitucional a regra que permite a manutenção dos créditos referentes às aquisições internas, antes prevista apenas em lei complementar.

De fato, a EC 42/03 (i) ampliou a não-incidência para alcançar operações que destinassem ao exterior todo e qualquer produto (e não apenas os industrializados) e, ainda, os serviços prestados a destinatários no exterior, e (ii) assegurou expressamente a manutenção e o aproveitamento dos créditos relativos ao imposto pago nas operações anteriores.

Confira-se a redação dada pela EC 42/03 ao artigo 155, parágrafo 2°, X, a); da CF:
“Art. 155.
§2° O imposto previsto no inciso 11, atenderá ao seguinte:
…………………………………………………………………………………….
X — não incidirá:
a) sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegura da a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores,”

Não obstante — e agora demonstra-se a que grau pode chegar a falta de técnica legislativa e até mesmo de atenção do nosso legislador — manteve-se no artigo 155 da CF o disposto no inciso XII, e) e f), como segue:
“XII — cabe à lei complementar:
e) excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X “a”,
f) prever casos de manutenção de crédito, relativamente à remessa para outro estado e exportação para o exterior, de serviços e de mercadorias,”

Ora, se a própria CF já estendeu a não-incidência do ICMS às operações que destinem ao exterior toda e qualquer mercadoria e já assegurou a manutenção e o aproveitamento dos créditos cobrados nas operações anteriores a essas exportações, que campo restaria para o legislador complementar?

Para corrigir esse ERRO, tramitou na Câmara dos Deputados, na Comissão de Reforma Tributária, a PEC 285, de 2004, que previa a adequação dos referidos dispositivos constitucionais à redação dada ao art. 155, § 2º, X, a), da CF pela EC 42/03. A referida PEC suprimia a atual alínea e) do inciso XII do art. 155 e dava à alínea f) redação clara no sentido de que ela não se aplicaria aos casos de créditos decorrentes de exportação (mas somente de remessas interestaduais e aquisições destinadas ao ativo permanente). Pasmem! Até hoje, o texto constitucional não foi corrigido!

Continuando o exame do nosso tema principal, também já houve “reformas” pelas quais se promoveu a constitucionalização de inconstitucionalidades.

Explico. Com o advento da EC 31/00, foi instituído o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, com o objetivo maior de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência.

Para o financiamento dos Fundos Estaduais e Distrital, determinou-se que poderia ser criado adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do ICMS, ou do imposto que viesse a substituí-lo, sobre os produtos e serviços supérfluos definidos em lei federal.

Esses limites impostos pela EC 31/00 (relativos ao percentual máximo e à necessidade de previsão dos produtos e serviços supérfluos em lei federal) não foram observados pela legislação fluminense. De fato, não só instituiu-se no estado do Rio de Janeiro adicional de um ponto percentual relativo a quase totalidade dos produtos, e não só sobre aqueles que fossem considerados supérfluos por lei federal, mas desrespeitou-se o limite de dois pontos percentuais quando se determinou que o adicional seria de cinco por cento (5%) no caso de se tratar da prestação dos serviços de telecomunicações e energia elétrica, que, obviamente, não são serviços que possam ser considerados supérfluos. A inconstitucionalidade é manifesta!

E, no entanto, a EC 42/03, atendendo mais uma vez à pressão ilegítima dos estados, veio, de forma absolutamente injurídica, estabelecer que teriam validade, e até mesmo sobrevida, normas que, como a do estado Rio de Janeiro, tivessem sido criadas em dissonância com a CF (EC 31/00), fato esse que levou o meu querido sócio e eterno guru, Condorcet Rezende, de forma obviamente jocosa, a denominar a EC 42/03 de “Emenda Lázaro”, por ter ressuscitado norma natimorta.

Eis a redação do dispositivo:
“Art. 4º Os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal até a data da promulgação desta Emenda, naquilo em que estiverem em desacordo com o previsto nesta Emenda, na Emenda Constitucional nº 31, de 14 de dezembro de 2000, ou na lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII, da Constituição, terão vigência, no máximo, até o prazo previsto no art. 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

É preciso que o Poder Legislativo se imbua da convicção de que o país necessita de verdadeira reforma tributária, que faça com que venhamos a ter novamente um real Sistema Tributário Nacional. Só se alcançará esse fim quando projetos que não sejam amparados em meros casuísmos ou em objetivos utópicos sejam levados, com seriedade e com um mínimo de técnica legislativa, a bom termo no Congresso Nacional.

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